O antirracista depois de George Floyd

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O mundo protesta contra a morte de George Floyd e milhões de pessoas empunham bandeiras, vão às ruas mesmo em meio a uma pandemia, colocando suas próprias vidas em risco, publicam palavras de repudio, indignação e cobram do Estado transformações necessárias para que possamos viver como iguais.

Chama a atenção, por absolutamente necessária, a autoafirmação antirracista.

Mas ser antirracista transpõe todas as condutas antes mencionadas e exige comportamentos efetivos, a fim de que boas condições de vida e oportunidades não estejam localizadas em um mesmo grupo racial.

Para ser antirracista é preciso que pessoas brancas rompam com o pacto narcísico, tão bem definido por Cida Bento, enxergando além de suas imagens, dores, afetos e amores, respeitando e compreendendo pessoas que, marcadas pela cor da pele, ocupam lugar social diferente em razão de seus próprios comportamentos egoístas.

É preciso romper o silêncio e reagir a condutas racistas por gestos, palavras e omissões. Piadas jocosas, olhares preconceituosos, ações e reações a partir de conceitos estereotipados, que colocam negros sempre como criminosos ou suspeitos da prática de ilícitos de todas as ordens precisam ser eliminados do cotidiano dos brasileiros.

Reformular a base da educação é primordial, de modo que se promova o letramento racial de crianças e jovens. É preciso exigir que as escolas sejam ambientes efetivamente inclusivos e diversos nos quadros docentes, discentes e de direção. Não há como ser antirracista permitindo que seres em desenvolvimento vivam segregados, construindo identidades que compreendem pessoas brancas como as únicas legitimadas a pensar, dizer e fazer o mundo.

Além disso, é necessário reconhecer pessoas negras como interlocutoras legítimas, concedendo-lhes palavra e voz. Por óbvio, não há antirracismo quando intelectuais negros não são lidos e estudados com a mesma seriedade e respeito que intelectuais brancos; não há antirracismo quando não se colocam em evidência os saberes negros.

Para ser antirracista é preciso eleger representantes críticos de todas as raças, renunciando a privilégios da cor da pele, acolhendo a negritude, evidenciando aqueles que sempre foram alijados dos espaços e não podem com isso vocalizar demandas próprias para melhorar suas condições de vida.

Em nosso país a cor da pele determina quem possui os melhores empregos, salários, saúde, educação, bens materiais e imateriais.

Por isso, antirracismo exige promover a inclusão no mercado de trabalho, oferecendo postos a pessoas negras em todos os escalões das grandes empresas e viabilizando sua ascensão nas carreiras, para que não permaneçam uma vida inteira sem incentivo, adoecendo o trabalhador, que acaba por não performar profissionalmente.

Outrossim, há médicos, advogados, odontólogos, fisioterapeutas, psicólogos, entre tantos outros, negros e negras que se encontram no mercado de trabalho, buscando postos à altura da formação que conquistaram. Portanto, o antirracista deve conceder oportunidades, consumindo e usufruindo seus serviços, para que possam exercer suas profissões e melhorar as condições de vida de todos aqueles que estão no seu entorno.

Para denominar-se antirracista é preciso procurar a presença e estranhar a ausência de pessoas negras em todos os lugares; é surpreender-se com a não participação das minorias nos espaços públicos e organizações, reivindicando sejam diversificados racialmente em todos os níveis.

Mais: é não consumir produtos e serviços de empresas, organizações, corporações que não sejam inclusivos.

Por outro lado, a branquitude frequenta praças, clubes, restaurantes, parques, desfruta, enfim, de muitos momentos de lazer, mas poucos — ou nenhum deles — são compartilhados com pessoas negras. Ora, para que sejamos antirracistas devemos caminhar de mãos dadas, como irmãos, onde todos tenham rosto, voz, expressão e sejamos sendo valorizados e reconhecidos socialmente.

O verdadeiro antirracismo impõe que os olhos de cada um de nós não sejam voltados apenas para um lado da história, com a escolha de um caminho em que há apenas semelhantes. O antirracista compreende que os caminhos são muitos e que sua batalha não é a única possível e legítima.

O antirracista percebe que pessoas negras ainda não estão livres, nem emancipadas, e assume o compromisso nessa luta.

De todo o dito, o que fica é que os protestos passarão e voltaremos ao nosso dia a dia, para os nossos afazeres, rotinas e relações habituais, mas será somente neles que, enfim, poderemos ser verdadeiramente antirracistas.

O mundo não pode ser mais o mesmo depois de George Floyd porque vidas negras importam!

Estejamos juntos nessa nova caminhada!


Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 11 de junho de 2020. 

*Juíza de Direito na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

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