Prisão preventiva e Covid-19: O Diabo no meio do Redemoinho

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“Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia”
Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas

Claudia Dadico, invocando Harari, já fez a advertência: o maior perigo, na pandemia do COVID-19, não é o vírus em si, pois o grande problema a enfrentar “são nossos demônios interiores, nosso próprio ódio, a ganância e a ignorância”[1]. É verdade. “O diabo vige dentro do homem”[2]. Somente nossos demônios interiores, íncubos do ódio, da discriminação e do preconceito ou súcubos da ignorância e da irracionalidade de um sistema penal comprometido exclusivamente com o controle social e com a criminalização da pobreza, podem justificar a mantença da prisão preventiva, neste contexto pandêmico, afirmando, sob o arnês de concepções pessoais e subjetivas, sem qualquer fundamentação empírica, que os encarcerados estarão mais seguros enquanto estiverem isolados nos cárceres ou que não correm risco de contaminação no sistema prisional ou que somente merecem o desencarceramento se demonstrarem específica situação de vulnerabilidade.

De feito, “solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”. Livre, para opinar e decidir, só quem não tem preconceito nenhum, nem ódio nem ignorância, e que se liberta da cultura do encarceramento, nociva, ineficaz, discriminatória e excludente.

O Dubá-Dubá, o Azarape, o Danado, o Arrenegado, o Drão, que vige dentro de nós, é que nos impede de entender que todas as pessoas privadas de liberdade estão em situação de vulnerabilidade durante a pandemia e que a mantença do aprisionamento, em geral, representa um risco para o preso e para a população carcerária, mas, também para toda a sociedade [3]. “E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta.” É o Satanazim, o Sujo, o Dos-Fins, o Diacho, o Solto-Eu, pois, que não nos deixa ver “o alto índice de transmissibilidade do novo coronavírus e o agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais, em razão da aglomeração de pessoas, da insalubridade dessas unidades, das dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, insuficiência de equipes de saúde, características inerentes ao ‘estado de coisas inconstitucional’ do sistema penitenciário brasileiro reconhecido pelo STF na ADPF 347” [4].

Mas, o Que-não-Ri, o Sem-Gracejos, o Tristonho, o Sempre-Sério, o Austero, que vige em nossas entranhas, também não nos permite ouvir o ILANUD [5] nem OEA proclamar que essa pandemia afeta, diretamente, a todas as pessoas, mas, de modo mais profundo, aquelas em vulnerabilidade, entre as quais estão as encarceradas [6]. 

E o Coisa-Ruim, o Cujo, o Oculto, o Tal, o Não-sei-que-Diga, o Que-não-Fala não quer lembrar que, segundo o sistema interamericano de direitos humanos, os Estados estão em uma posição especial de garante de todos os direitos das pessoas que estão sob a sua custódia [7]. “Mire, veja”. Enfrentando “o diabo no meio do redemoinho”, o CNJ está exortando os juízos criminais a realizarem a revisão das prisões preventivas: é preciso proteger a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade, mas, também, a saúde coletiva. Debalde. “Obedecer é mais fácil do que entender”. É mais fácil obedecer o Severo-Mor, o Galhardo, o Dião, o Pai-da-Mentira, o Maligno, os ditames da criminalização e da segregação opressora, irracional e seletiva. É mais fácil ignorar que “viver é muito perigoso e sempre acaba em morte”, especialmente em um cenário de contaminação em grande escala no sistema prisional, que produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública de toda a população, extrapassando os limites, as grades e os muros das prisões.

“Pão ou pães, é questão de opiniães”. É verdade. Mas, quando se trata de garantir o direito das pessoas, não. “Uma coisa é por ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas”. É por isso que a CIDH [8], neste momento de necessidade de adoção de medidas de emergência e contenção diante da pandemia do COVID-19, determina que os Estados devem, sob a égide do princípio pro persona, dar prioridade às pessoas historicamente excluídas ou em risco especial, entre as quais estão aquelas privadas de liberdade, reconhecendo que as prisões preventivas devem ser reservadas para casos excepcionais e aplicadas somente diante de absoluta imprescindibilidade [9]. Mas, o nosso Tendeiro, o Mafarro, o Canho, o Coxo, o Capeta, o Capiroto, o Das-trevas, o Tisnado, o Cão, o Gramulhão, o Xu, o Temba não aceita que a CIDH determinou que devem ser reavaliados os casos de prisão preventiva para serem identificados aqueles que comportam a substituição da privação de liberdade por outras medidas alternativas à prisão. Aliás, diante da necessidade de adoção de medidas desencarceradoras para minimizar os impactos da atual pandemia, o CNJ também afirmou a necessidade de que seja observada a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva [10].

É por isso que “tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto”, para entender, de uma vez por todas, forte nos estândares internacionais de garantia dos direitos humanos, a urgência de considerar a privação de liberdade como uma medida de último recurso e adotar medidas cautelares alternativas para as pessoas que estão em prisão preventiva, como há muito determinam as Regras de Tokio, reduzindo, assim, drasticamente, a população prisional.

Enfim, “o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada”, mas, “há muitos diabos por aí, de todas as formas, cheiros, charmes e tamanhos. Cuidado com eles”.


 Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 11 de junho de 2020. 

Membro da Associação Juízes para a Democracia - AJD.

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