Censura e as charges da vida

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Repudiemos cada barbárie construída pelos reacionários que governam o país

A imprensa noticia que os cartunistas Benett, Mor, João Montanaro e Laerte sofreram uma interpelação por parte de uma associação de policiais em razão de charges publicadas em 2019, nesta Folha, após ação da Polícia Militar na favela de Paraisópolis, em São Paulo. Elas apontam para o abuso e a violência policial, a sua naturalização e a seletividade racial na conduta policial.

Também noticia que Aroeira terá inquérito criminal instaurado, requerido pelo ministro da Justiça, André Mendonça, imputando-lhe crime contra a lei de segurança nacional em razão da charge de sua autoria. No desenho humorístico, o chargista critica Jair Bolsonaro por incentivar seus apoiadores a entrarem em hospitais para checar a ocupação dos leitos.

O Brasil reconstruiu-se sobre a base de um Estado democrático de Direito, que tem como marco a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu um rol de direitos e liberdades e foi forte na liberdade de expressão, como sustentáculo da democracia.

Grande parcela da normativa que trata das liberdades está no artigo 5º da Carta. E, no artigo 220, ainda temos a proteção da manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, sem restrição, salvo a da própria Constituição, vedada a censura de natureza política, ideológica e artística.

Tais conquistas refletem o patamar civilizatório, com densidade no século 20, à vista do regramento estabelecido no âmbito da ONU e da OEA. Em documentos encontramos três funções primordiais da liberdade de expressão, que é o centro do sistema de proteção dos direitos humanos: a) é um dos direitos que, de maneira mais clara, reflete a virtude que acompanha os seres humanos: pensar o mundo desde a perspectiva própria e de comunicar-se com outros para a construção da sociedade; b) tem relação estrutural com a democracia, qualificada como estreita, indissolúvel, essencial, fundamental, de modo que fortalece o sistema democrático pluralista, mediante a proteção e o fomento da livre circulação de informações, ideias e expressões; e c) é a ferramenta chave para o exercício dos demais direitos fundamentais.

Desde o ano de 2019 vivemos a ascensão sorrateira da censura institucional. Jair Bolsonaro usa a lógica do combate aos que lhe criticam, transformando a imprensa num inimigo a ser aniquilado. Pratica diversos expedientes, a começar pelo tratamento indigno destinado aos jornalistas atendidos no "cercadinho", ao lado de bolsonaristas, que são instigados à destratá-los; há desrespeito, menoscabo, misoginia e homofobia em relação aos profissionais; possível direcionamento de publicidade; ameaça de cancelamento de assinaturas de jornais; instigação para que empresas não façam publicidade em certos veículos de comunicação; alteração de horário de fornecimento de informações para que não sejam publicadas em um jornal televisivo; ameaças de não renovação de concessão de emissora de televisão etc.

O discurso de ódio de Jair Bolsonaro, que cerceia a liberdade, reverbera e ganha espaço. Lembremos das charges censuradas em 2019, na exposição "Independência em Risco", de diversos artistas, na Câmara Municipal de Porto Alegre, quando a presidência da Casa determinou que o material fosse retirado e a exposição acabou por ser cancelada.

No caso dos chargistas interpelados e do possível indiciado, nos deparamos com um instrumento inibitório da liberdade de expressão, o acosso judicial. Ou seja, a perseguição pela via judicial, consistente em pressão realizada, mediante ações judiciais, de natureza criminal ou civil, que objetivam paralisar a ação e o pensamento, com o potencial de gerar a autocensura, não apenas aos envolvidos diretamente.

Espera-se que o Poder Judiciário responda a essas perversões bradando a Constituição Federal, em alto e bom som. Repudiemos cada barbárie construída diuturnamente pelas forças reacionárias que governam o país.

A liberdade não é negociável.


* Ex-desembargadora do TJ-SP (1989-2019), é cofundadora da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), especialista em direitos humanos e consultora da OAB-SP

Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo  no dia 22 de junho de 2020.  

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