Justiça brasileira viola direitos de mulheres e outras minorias*

Para a juíza aposentada Kenarik Boujikian, responsável pela condenação de Roger Abdelmassih, em 2010, o judiciário ainda é muito machista, racista e discrimina populações vulneráveis

O Judiciário brasileiro, em seu cotidiano, ainda legitima a discriminação contra as mulheres. É o que diz a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Kenarik Boujikian.

A reflexão da desembargadora soma-se ao forte desabafo que ela fez nas redes sociais como reação ao recente caso de Mariana Ferrer. A jovem catarinense que, além de ter sido fortemente destratada, humilhada, em uma sessão de julgamento no Tribunal de Santa Catarina, viu seu agressor sexual ser absolvido por não possuir o dolo de a estuprar, o que rendeu jocosamente na imprensa a tese do Estupro Culposo.

Boujikian sabe bem o que é ser mulher num Judiciário estruturalmente machista. Ela foi a juíza responsável pela condenação de Roger Abdelmassih, em 2010, a 278 anos de prisão por mais de 50 estupros e tentativas de abuso de pacientes de sua clínica de fertilização. A sentença proferida por Kenarik completou dez anos no último dia 23 de novembro.

Kenarik era, então, a juíza responsável pelo caso. “Nunca tinha fixado uma pena tão alta”, diz ela, ao revelar ter até se assustado com a somatória, muito embora tenha se fixado no mínimo previsto em lei.

Na conversa a seguir, ela faz uma forte reflexão sobre como a Justiça no Brasil, que nas palavras dela mesma é “violadora dos direitos das mulheres” e, em geral, também com outras minorias. “Minha hipótese é que nem todos os juízes sabem qual é o seu papel no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana”, afirma.

Nascida em uma aldeia de armênios, na Síria, Kenarik chegou ao Brasil com seus pais aos três anos de idade. Passou a infância em São José do Rio Preto, onde seu pai trabalhava como comerciante, em São Paulo, onde estudou na Escola Armênia e mais tarde num colégio salesiano. Foi voluntária no presídio do Carandiru. Trabalhou também na Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ). Atualmente, aos 61 anos, milita pelos direitos humanos. Ela foi co-fundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Em 2002 recebeu 19º Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, da OAB/SP

Extra Classe – Sobre o recente caso Mariana Ferrer, a senhora fez uma manifestação emocionada. Para começar, disse que “Passa ano, entra ano e o Judiciário e o Sistema de Justiça continuam a ser grandes violadores dos direitos das mulheres”. Pode nos falar mais sobre isto?
Kenarik Boujikian – Aquela audiência, no trecho que circulou nas redes sociais, é de uma tristeza sem tamanho. É dantesco, pois coloca à nu o quanto o Estado é violador dos direitos humanos  que,  sabemos, se dá pela ação dos poderes de Estado. Com o Judiciário, evidentemente, incluído. O que se observa do cotidiano é que o Judiciário ainda legitima a discriminação contra as mulheres, ainda que haja esforços, especialmente na última década, para superação.

EC – E como essa legitimação discriminatória se dá?
Kenarik – Há uma importante pesquisa, antiga, realizada por Silvia Pimentel, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjairdian, chamada Crime ou Cortesia? Abordagem Sociojurídica de Gênero, que analisou processos judiciais de estupro, referentes ao período de 1985 a 1994.  As autoras concluíram que estereótipos, preconceitos e discriminações em relação às mulheres interferem negativamente na realização da Justiça, na qual prevalece um “julgamento moral da vítima em detrimento de um exame mais racional e objetivo dos fatos” e que os “comportamentos da vítima, referentes à sua vida pregressa, são julgados durante o processo, em conformidade com os papéis tradicionalmente determinados a homens e a mulheres”. Ou seja, a pesquisa revelou a “ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários operadores do Direito”.

EC – Além do caso de Mariana Ferrer, a senhora poderia citar outro exemplo importante desse tipo de violação de direitos?
Kenarik – Se olharmos os casos em que o Brasil foi demandado na  esfera da Organização dos Estados Americanos (OEA), seja  na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seja na Corte Interamericana de Direitos Humanos, veremos que em todos eles o Judiciário teve um papel muito significativo na perpetração da violação. No tema mais próximo da audiência, caso de violência contra a mulher, temos o caso da Maria da Penha, no qual o Brasil  foi condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica, pois, em síntese, o Brasil não garantiu um processo justo contra o agressor em um prazo razoável e descumpriu  dois tratados internacionais dos quais é signatário: a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher, conhecida como Convenção de Belém.
Os dois acordos estabelecem obrigações para os estados partes para as mulheres vítimas de violência.

EC – Ou seja, a leniência não se dá somente nos casos de violência sexual.
Kenarik – O substrato da violência doméstica é o mesmo da violência sexual contra as mulheres: uma sociedade essencialmente patriarcal, na qual as mulheres e seus corpos ainda são considerados objetos de poder e controle dos homens. Nesta perspectiva, entra ano e sai ano, e o patriarcado se faz presente em decisões judiciais, no qual a mulher vítima de violência é que passa a ser julgada. Cansei de ouvir em julgamentos na segunda instância considerações sobre a vítima. Se a pesquisa que falei antes se repetisse na última década, certamente não se apresentaria um quadro tão diferente do que as pesquisadoras encontraram lá atrás.

EC – Em seu desabafo no caso da Mariana, a senhora questiona como um juiz pode permitir que uma pessoa seja humilhada da forma como ela foi; como um promotor pode se calar diante de uma postura de completa “subtração de dignidade humana”; e como um advogado pode vilipendiar uma vítima.
Kenarik – Pois é! Um juiz jamais pode permitir uma agressão na audiência contra a vítima ou seja contra quem for. Todos os que estão presentes num julgamento, réu, testemunha, vítima, advogado, defensor, funcionário, policial, defensor têm que ser tratados com dignidade. Se um juiz permanece omisso diante de um desrespeito à dignidade da mulher, ele acaba compactuando e exacerbando a agressão, pelo seu silêncio. E o Ministério Público também ficou omisso. Ouviu a agressão como se nada estivesse acontecendo. Nenhuma insurgência. É assustador pensar que isto não é fato isolado, que as mulheres e jovens que sofrem violência sexual são constantemente violentadas sob o manto do Judiciário, que deveria dar acolhimento.

EC – Pobres não têm o mesmo tratamento de ricos, e negros, já entram em um júri muitas vezes como suspeitos. Afinal, do que padece o sistema judicial brasileiro em sua opinião?
Kenarik – Seria bom lembrar que a sociedade tem um olhar muito específico sobre o Judiciário, que é bom registrar, a propósito de sua pergunta. Uma pesquisa da Datafolha indica a percepção majoritária do povo brasileiro, em todas as variáveis demográficas: 92% da população avalia que a Justiça brasileira trata melhor os mais ricos do que os pobres. Em uma outra pesquisa, da Fundação Getúlio Vargas, há indicação que o Judiciário veio perdendo a confiança da população de 2013 a 2017, em percentual aproximado de 10%. Minha hipótese é que nem todos os juízes sabem qual é seu papel no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Se você não cumpre este papel, certamente torna o sistema disfuncional.

EC – Quais as soluções, em sua opinião, para isso?
Kenarik – A pergunta é muito complexa e no pouco espaço que temos só vou dizer que passa, ao menos, pelo conhecimento, consciência e sensibilização acerca da realidade brasileira do projeto de país que se encontra na Constituição Federal.

EC – Não podemos conversar com a senhora sem se referir que nesse 23 de novembro um caso, que passou por suas mãos e teve forte impacto na sociedade, completa dez anos. A condenação do então médico Roger Abdelmassih por estupro e atentado violento ao pudor. Pelo fato de na época a senhora ser a juíza do caso, houve ilações de que a dura condenação, 278 anos, teria ocorrido porque a juíza do caso era mulher?
Kenarik – Não sei dizer se isto de fato ocorreu. É possível. Mas não acredito que uma pena pode ser maior pelo fato da sentença ser de uma mulher.  Inclusive, meu pensar é que aumentar a quantidade de pena, por si só, não traz nenhum benefício social e não é necessário. Acho as penas brasileiras altas. No caso do Roger Abdelmassih, eu me assustei quando vi a somatória. Nunca tinha fixado uma pena tão alta. Mas só poderia dar aquele resultado, pois, embora fixada a pena de cada um dos crimes no mínimo legal, o fato é que eram muitos crimes cometidos pelo réu. Nunca vi num mesmo processo um indivíduo ser acusado de tantos delitos. Praticamente meia centena e foi condenado em quase todos. Eu limitei o tempo de cumprimento da pena, para todos os efeitos, em 30 anos, mas o tribunal reduziu o total da pena para 181 anos e tirou esta limitação.

EC – Na sentença do caso Abdelmassih a senhora fez constar um trecho do relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre Acesso à Justiça para as mulheres vítimas de violência nas Américas. Em síntese, ele apontava já naquela época a baixa utilização do sistema de justiça por parte das mulheres vítimas de violência por desconfiança em relação às autoridades judiciárias. Por que praticamente nada mudou desde então?
Kenarik – Não mudou porque o sistema continua o mesmo, estruturalmente. Os atores do sistema de justiça, em grande percentual, continuam com pensamentos e com práticas discriminatórias e machistas. A audiência do caso Ferrer retratou o que acontece em muitas salas de audiência Brasil afora. O Relatório da CIDH mostrava a baixa utilização do sistema de justiça por parte das mulheres vítimas de violência. Quem quer passar por um estupro e chegar na audiência e ser destratada? Quem quer ir para uma delegacia e ser desrespeitada? Se não há um mínimo de confiança sobre o tratamento que vai receber, a situação se torna mais dolorosa ainda. Por este motivo, muitas vítimas sequer registram ocorrência. A sociedade machista perpetua a violência contra as mulheres e o Judiciário machista retroalimenta este quadro.

EC – Chama a atenção a senhora dizer que não tem ilusões com o nosso sistema de justiça e que “o esgarçamento democrático atinge tudo e todos”. A senhora pode falar sobre esse esgarçamento e as razões desse pessimismo?
Kenarik – Não é pessimismo. Todos que me conhecem sabem que sou, ao contrário, uma pessoa super otimista. Para ser mais clara, estava me referindo a duas questões. Primeiro sobre o papel do Judiciário no Estado Democrático de Direito e, não ter ilusões, me remete ao tempo que ingressei na magistratura, que, por diversos fatores, me faziam crer num potencial transformador. Com o tempo de exercício da judicatura, com a experiência e uma melhor compreensão, nos dias de hoje, entendo melhor o funcionamento deste poder e sei dos limites estruturais e sociais. Tenho clareza que o Judiciário referenda inúmeras violações, porém, também consigo ver os avanços que o Judiciário pode fazer e muitas vezes faz.

EC – Limites de que tipo?
Kenarik – Veja, por exemplo, no tema da eleição do Bolsonaro. Até hoje o Judiciário não deu uma decisão à altura dos fatos referentes às fake news, e todo mundo sabe do desvirtuamento da democracia que ocorre com este expediente. Outro aspecto que está contido neste esgarçamento democrático diz respeito ao período que o Brasil vive, o pós-golpe chamado de impeachment, no qual se implementa um projeto de país que se distancia do projeto  da nossa Constituição Federal. Atinge todos os aspectos da democracia e, por consequência, todas as pessoas. Veja no tocante ao princípio da igualdade. Não é que tínhamos a igualdade material implementada, na questão de gênero, mas tínhamos um fazer para caminhar neste sentido.

EC – Tínhamos? Não temos mais?
Kenarik – Há na presidência do Brasil um machista, preconceituoso, homofóbico. Ele e toda sua equipe só fazem destilar posturas de retrocessos. Deve lembrar que ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, em junho de 2019, justificou o abuso sofrido pelas meninas da Ilha de Marajó, no Pará, dizendo que era por falta de calcinhas. O ex-ministro Sergio Moro, na solenidade dos 13 anos da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência contra a mulher , declarou que homens se sentem “intimidados pelas mulheres”. Segundo ele, por conta disso, parte dos homens “recorre, infelizmente, à violência”. Moro reproduziu e reverberou o discurso da violência contra as mulheres  ao impingir a elas a violência praticada pelos homens.

EC – Realmente são atitudes absurdas.
Kenarik – Gravíssima também a política deste governo, na órbita internacional, pois o Brasil passou a rejeitar na ONU o termo “igualdade de gênero” ou “educação sexual” em resoluções e textos oficiais. Algumas ONGs solicitaram, sob o manto da Lei de Acesso à Informação, documentos que explicassem o motivo, a autoria direta etc., porque o governo brasileiro tomou esta postura. E a informação que receberam é: não receberão nenhuma informação, pois todos os documentos estão censurados até 2024. As razões para rejeitar o acesso foi, pasme, risco à segurança nacional e risco para a posição negociadora do Brasil. Organizações tiveram que ingressar no Judiciário para ter informações.

EC – Como diria um ministro do Supremo Tribunal Federal, tempos estranhos, não?
Kenarik – E não é só o governo federal que, por certo, faz reverberar em outras instâncias e esferas. Importante lembrar de fatos que estão nesta mesma lógica. O governador do estado de São Paulo, João Doria , em setembro de 2019, mandou recolher das escolas estaduais material didático que tratava de identidade de gênero, em apostila de Ciências destinada aos alunos do 8º ano do ensino fundamental, que têm cerca de 13 anos. O material explica os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, além de trazer orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. E o governador bradou que puniria os responsáveis. A determinação do governador foi cassada e uma juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a devolução do material.

EC – Teve o caso da Bienal do Rio de Janeiro também
Kenarik – Sim. No mesmo mês e ano, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ordenou a apreensão de uma História em Quadrinhos na Bienal do Livro que trazia o desenho de dois personagens homens se beijando. Esta determinação acabou por ser cassada em uma instância do Judiciário, que inicialmente referendou a ação do prefeito. Nesses dois últimos exemplos, o Judiciário atuou de forma a fazer o avanço democrático.

EC – Falamos de Mariana Ferrer, Maria da Penha, das violações de seus direitos. O que diria para finalizar?
Kenarik – De todo este quadro, uma coisa é certa, é a luta das mulheres, das feministas, que conseguiu os avanços obtidos até hoje, na esfera da dignidade humana.


Artigo publicado originalmente no site Extra Classe no dia 07 de dezembro de 2020.

 

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