DECISÃO - Habeas Corpus Coletivo Preventivo - BA

Número: 8054177-56.2020.8.05.0001

 

Classe: HABEAS CORPUS

Órgão julgador: PLANTÃO JUDICIÁRIO

Última distribuição : 28/05/2020 Valor da causa: R$ 100,00 Assuntos: COVID-19

Segredo de justiça? NÃO

Justiça gratuita? SIM

Pedido de liminar ou antecipação de tutela? SIM

Processo: HABEAS CORPUS n. 8054177-56.2020.8.05.0001

Órgão Julgador: PLANTÃO JUDICIÁRIO

IMPETRANTE: ACEBA - ASSOCIACAO DE DEFESA DOS DIREITOS DOS CONSUMIDORES

DO ESTADO DA BAHIA e outros

Advogado(s): HENRIQUE LUIZ LOPES QUINTANILHA (OAB:0060163/BA) IMPETRADO: PREFEITO DO MUNICÍPIO DE SALVADOR

Advogado(s):

SENTENÇA

 Vistos, etc.

Cuida-se de Habeas Corpus Coletivo Preventivo ajuizado por Henrique Quintanilha e Associação dos Consumidores do Estado da Bahia – ACEBA em favor dos cidadãos soteropolitanos em face do Prefeito do Município do Salvador, Antonio Carlos Peixoto de Magalhães Neto.

Os impetrantes apresentam breve histórico sobre a situação da pandemia do novo coronavírus, causador da doença conhecida como COVID-19, ressaltando que em 04 de fevereiro de 2020 foi declarado pelo Governo Federal Estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional , nos termos do Decreto nº 10.211\2020 , convertido na Lei 13.979\2020 e que, em 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde classificou da doença como “pandemia”.

Destacam que, mesmo neste contexto, foram mantidos os festejos do carnaval em Salvador com abertura oficial em 20 de fevereiro de 2020.

Afirma que após o carnaval, a autoridade coatora passou a implementar política pública de isolamento, como o fechamento da orla da Pituba e que passou a baixar “decretos inconstitucionais” e atos administrativos determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais.

Ressalta, por fim, que a autoridade coatora tem proferido “ameaças” constantes via imprensa no sentido de obrigar a realização de testes de saúde e fechamento de ruas em desconformidade com a ordem democrática.

Afirma que há risco iminente de realização de prisões de cidadãos no exercício do direito de ir e vir, razão pela qual requer: PEDIDO DE LIMINAR, para DETERMINAR à Autoridade Coatora, quem seja, o Sr. PREFEITO DO MUNICÍPIO DE SALVADOR, que se ABSTENHA de praticar qualquer ato, administrativo em sentido estrito ou ato concreto da Administração, ainda que em exercício de “poder de polícia”, direta ou indiretamente, pessoalmente ou por interpostos agentes públicos, que POSSAM VIR A LIMITAR, EM QUALQUER ÂMBITO, SENTIDO, ALCANCE OU ESPECTRO, (I) A LIBERDADE DE IR E VIR, E FICAR, DE QUALQUER CIDADÃO SOTEROPOLITANO OU ESTRANGEIRO RESIDENTE EM SALVADOR, COM OS SEUS BENS, EM LOCOMOÇÃO MECÂNICA PESSOAL OU POR MEIO DE AUTOMÓVEIS, INDIVIDUALMENTE OU EM “CARREATAS”, NOS TERMOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 5º, SEJA POR QUAL MOTIVO FOR, A EXEMPLO DE MOTIVO DE CRENÇA RELIGIOSA, FILOSÓFOCA OU POLÍTICA, (CF/88, ART. 5º, VIII E XV), BEM COMO (II) OS CORRELATOS DIREITO DE REUNIÃO, MANIFESTAÇÃO OU PROTESTO, AINDA QUE VENHAM JUSTFICADOS POR DECRETOS MUNICIPAIS REGULAMENTARES OU INDIVIDUAIS, OU COM QUALQUER OUTRO NOME OU RÓTULO, E AINDA, POSSÍVEIS AUTOS DE INFRAÇÃO (MULTA) CONTRA CIDADÃOS PESSOAS FÍSICAS, BEM COMO (III) POSSÍVEL APLICAÇÃO DE “TOQUE DE RECOLHER”, COMO JÁ VEM SENDO ADOTADO EM OUTROS MUNICÍPIOS DO ESTADO DA BAHIA, MOTIVADOS OU NÃO POR PREVENÇÃO DE COVID-19, QUE ESTEJAM SENDO OU VENHAM A SER PRATICADOS PELA PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SALVADOR OU PELOS ÓRGAOS OU ENTIDADES A SI SUBORDINADOS OU

VINCULADOS, RESPECTIVAMENTE a partir desta data.

Posteriormente, apresentam os impetrantes aditamento da inicial destacando que a autoridade coatora interpreta de forma equivocada o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 6341, assim como desrespeita os Decretos Presidenciais nº 10.282\2020 e 10.344\2020 que versa sobre atividades essenciais.

Requerem, de forma complementar: expedição de salvo-conduto coletivo no sentido de PROIBIR que a Administração Municipal, por meio de seu Prefeito (Autoridade Coatora) ou subordinados seus, em órgãos municipais, ou entidades municipais que lhe sejam vinculadas, edite qualquer medida que ATENTE CONTRA aquelas previstas exclusivamente na Lei 13.979/20 e nos termos em que regulamentadas pelos decretos presidenciais, da União, inclusive quanto às suas “atividades essenciais”, nos termos da Medida Cautelar confirmada por maioria em Plenário do STF na ADI 6341, e normas do Ministério da Saúde (MS) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); expedição de salvo-conduto no sentido de PERMITIR E GARANTIR, SOB PENA DE MULTA DE R$ 100.000 (CEM MIL REAIS) POR CADA VIOLAÇÃO, sem prejuízo de outras sanções processuais mais gravosas, que TODO CIDADÃO MORADOR OU RESIDENTE DO MUNICÍPIO DE SALVADOR possa andar, ficar ou locomover-se livremente a pé, de bicicleta, de motocicleta ou de automóvel, bem como praticar a mercancia das atividades autorizadas pelos decretos presidenciais regulamentares da Lei 13.979/20 de número 10.282, de 20 de março de 2020, e de número 10.344, de 11 de maio de 2020 (CF/88, Art. 170, parágrafo único e ADI 6342 do STF),

É o relatório.

Inicialmente, verifica-se , conforme noticiado nos autos, a competência para o julgamento na primeira instância, face a ausência de previsão “atrativa de competência originária da Seção Criminal para o processamento de habeas corpus preventivo coletivo de natureza constitucional–administrativa, contra ato de Prefeito Municipal”, conforme decisão monocrática, id. 7344152 - Pág. 8.

Da Legitimidade Ativa e Cabimento.

 

No presente caso, o HC coletivo preventivo foi ajuizado por Henrique Quintanilha e Associação dos Consumidores do Estado da Bahia – ACEBA em favor dos cidadãos soteropolitanos, requerendo que o Prefeito de Salvador se abstenha da tomada de medidas administrativas de restrição da liberdade.

Cumpre, ab initio, reconhecer que ambos os impetrantes não possuem legitimidade para a representação do interesse coletivo em nome dos “cidadãos soteropolitanos”. Com efeito, as hipóteses de substituição processual possuem previsão legal e não se aplicam a ambos os impetrantes, que não são legitimados para agir em nome próprio no interesse da referida coletividade.

Destaque-se ainda a ausência de cabimento, haja vista que o Habeas Corpus, ainda que coletivo e preventivo, não é medida processual cabível para discutir medida de caráter geral e abstrato, tal como as medidas questionadas nestes autos. Com efeito, o HC não pode ser utilizado como sucedâneo de eventual representação de inconstitucionalidade ou ação de descumprimento de preceito fundamental.

Assim que, em especial quanto ao pedido referente de que o Prefeito se abstenha de expedir atos de caráter geral e abstrato referentes ao isolamento da população de Salvador, o remédio não é cabível.

De igual forma, não se admite a utilização para garantia de salvo conduto a pessoa indeterminada, como querem os requerentes nos pedidos acrescidos no aditamento da exordial. O paciente do HC coletivo, ainda que plúrimo, deve ser uma coletividade determinada e identificável, o que difere da determinação genérica dos “cidadãos soteropolitanos”.

Ainda que reconhecida a ilegitimidade e não cabimento do presente HC, cumpre fazer as seguintes considerações sobre o pedido formulado subsidiariamente.

Do Contexto Fático.

O presente habeas corpus coletivo preventivo dá-se, conforme narrado na exordial, no contexto da pandemia do vírus COVID-19, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde.

Dispensa-se narrar o histórico, constante da inicial, sendo todavia relevante para análise das medidas requeridas apresentar a situação atual da pandêmia no Brasil e, mais especificamente na cidade de Salvador, local das medidas preventivas requeridas.

No Brasil, conforme dados adquiridos através do sítio virtual Johns Hopkins ( https://coronavirus.jhu.edu/map.html ), nesta data tem-se o total de 438.238 casos de COVID- 19 registrados e 26.754 óbitos ocorridos em razão da doença.

Na Bahia, conforme dados apresentados pela Secretaria de Saúde até a data de 28. 05.2020, foram registrados 15.963 casos de Coronavírus e 39 óbitos em razão da doença.

Em Salvador, consta em dados fornecidos pelo Ministério da Saúde que foram notificados 10.006 casos de COVID-19 com 390 óbitos em razão da doença.

Não é demasiado pontuar que, conforme informa a autoridade coatora, Prefeito de Salvador, em reiterados pronunciamentos na imprensa (

https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/04/acm-neto-preve-colapso-do-sistema-d

;

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/05/15/acm-neto-diz-que-salvador-conseguiu-adiar-colapso-no-s

;

http://coronavirus.atarde.com.br/sistema-de-saude-em-salvador-ainda-pode-entrar-em-colapso-diz-prefeito/

), a preocupação do Poder Público municipal concentra-se na tentativa de evitar o colapso do sistema de saúde, caracterizado pela situação de falta de leitos e, em especial, leitos de Unidade de Tratamento Intensivo – UTI, seja para pacientes com o Corona vírus ou para pacientes acometidos de outras enfermidades, de forma a aumentar o número de óbitos.

A fim de garantir o acompanhamento, baseado em dados e evidências científicas, do andamento da doença e medidas de enfretamento a serem tomadas, foi criado o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus, que no dia 21 de maio de 2020 (https://drive.google.com/file/d/1vIMq3jqRzxmzyYgi9FTJRWsIpkTDe5-n/view ) expediu as seguintes recomendações:

“Em razão da continuidade de curvas crescentes de casos e óbitos em toda a região

Nordeste, o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus continua apoiando, de forma unânime, a manutenção e ampliação das medidas de isolamento social como única forma eficiente de reduzir o número de contágios e evitar a sobrecarga e o colapso dos sistemas de saúde. A manutenção e ampliação desta medida se faz ainda mais urgente com a constatação do aumento de casos de dengue e chikungunya em toda a região Nordeste e no resto do país (ver item 4, abaixo).

Além desta recomendação genérica, o Comitê Científico se sente na obrigação profissional de alertar que em vários estados, capitais e municípios específicos da região Nordeste, todos os critérios (curva ascendente de casos e óbitos e ocupação de leitos de UTIs e/ou enfermarias superior a 80%) para adoção do isolamento mais restritivo (conhecido pelo termo em inglês lockdown), aprovados e publicados por este Comitê, já foram preenchidos. Portanto, a partir de hoje estas localidades podem ter que utilizar esta medida para diminuir as curvas de expansão da pandemia e evitar uma velocidade ainda maior no número de óbitos.

Neste primeiro momento, o Comitê julga que as condições para o lockdown, já utilizado em diferentes formatos em São Luiz, Fortaleza e na área metropolitana do Recife, também já se fazem presentes na área metropolitana de João Pessoa (83-88% de ocupação de leitos de UTI nas últimas 48h) e em Campina Grande (83% de ocupação de leitos de UTI), no estado da Paraíba, nas cidades de Mossoró e Natal, no estado do Rio Grande do Norte e nas cidades de Arapiraca (85-92% dos leitos de enfermaria ocupadas nas últimas 48h) e São Miguel dos Campos (91% dos leitos de enfermaria ocupados) no estado de Alagoas. Salvador, na Bahia, chegou no limite ao atingir 80%dos leitos de UTI ocupados no dia 20 de maio. Esta é uma recomendação científica para os governadores e prefeitos dos estados e cidades supracitados, cabendo a esses gestores decidir pela sua implementação ou não.

Para oferecer subsídios para o planejamento de eventuais lockdowns acrescidos de

barreiras sanitárias nas principais rodovias do Nordeste, o Comitê disponibiliza neste Boletim a análise dos principais entroncamentos rodoviários de cada Estado, níveis de isolamento social em todo Nordeste, bem como distribuição geográfica de casos e óbitos na região (Figura 1).

O mapa e a análise de fluxos pelos principais entrocamentos rodoviário também podem ser usados para selecionar os alvos de ações localizadas, por parte de cada governo estadual, para impedir o contínuo fluxo de casos para localidades do interior que ainda possuem um número reduzido de pacientes infectados.” (grifo nosso)

Ressalte-se que o referido informativo, conforme grifo, trata especificamente da situação da capital soteropolitana indicando o alto índice de ocupação dos leitos na cidade.

Neste cenário, amplo tem sido o debate sobre a colizão de direitos fundamentais verificadas entre as medidas para prevenção do contágio do COVID-19 e os direitos e liberdades individuais , conforme apontado no presente HC.

Da atribuição para implementação de políticas públicas de proteção à saúde.

 

Cumpre destacar que a questão sobre a atribuição de governadores e prefeitos para a tomada de medidas para a proteção da saúde já foi devidamente analisada e decidida no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nos termos da decisão proferida na ADI nº 6341, cuja ata de julgamento reproduzo a seguir:

Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux.

Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro Rivas; pelo amicus curiae Federação Brasileira de Telecomunicações – FEBRATEL, o Dr.

Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues; pelo interessado, o Ministro André Luiz de Almeida Mendonça, Advogado-Geral da União; e, pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras, Procurador-Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 15.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).

Sobre a decisão, consta do Informativo disponibilizado no sítio virtual do Supremo Tribunal Federal (http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo973.htm ):

O Plenário, por maioria, referendou medida cautelar em ação direta, deferida pelo ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei 13.979/2020, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição Federal (CF) (1), o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais.

A ação foi ajuizada em face da Medida Provisória 926/2020, que alterou o art. 3º, caput, incisos I, II e VI, e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11, da Lei federal 13.979/2020 (2).

O relator deferiu, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico, a competência concorrente.

Afirmou que o caput do art. 3º sinaliza a quadra vivenciada, ao referir-se ao enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do coronavírus. Mais do que isso, revela o endosso a atos de autoridades, no âmbito das respectivas competências, visando o isolamento, a quarentena, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do País, bem como locomoção interestadual e intermunicipal.

Sobre os dispositivos impugnados, frisou que o § 8º versa a preservação do exercício e funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais; o § 9º atribui ao Presidente da República, mediante decreto, a definição dos serviços e atividades enquadráveis, o § 10 prevê que somente poderão ser adotadas as medidas em ato específico, em articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador; e, por último, o § 11 veda restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços púbicos e atividades essenciais.

Assinalou que, ante o quadro revelador de urgência e necessidade de disciplina, foi editada medida provisória com a finalidade de mitigar-se a crise internacional que chegou ao Brasil. O art. 3º, caput, remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem implementadas.

Não vislumbrou transgressão a preceito da Constituição. Ressaltou que as providências não afastam atos a serem praticados por estados, o Distrito Federal e municípios considerada a competência concorrente na forma do art. 23, inciso II, da CF (3). E, por fim, rejeitou a alegação de necessidade de reserva de lei complementar.

O Tribunal conferiu interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei 13.979/2020, vencidos, quanto ao ponto, o ministro relator e o ministro Dias Toffoli.

A Corte enfatizou que a emergência internacional, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), não implica, nem menos autoriza, a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do estado de direito democrático. As regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual e, sim, também, para  o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente.

O estado de direito democrático garante também o direito de examinar as razões governamentais e o direito da cidadania de criticá-las. Os agentes públicos agem melhor, mesmo durante as emergências, quando são obrigados a justificar suas ações.

O exercício da competência constitucional para as ações na área da saúde deve seguir parâmetros materiais a serem observados pelas autoridades políticas. Esses agentes públicos devem sempre justificar as suas ações, e é à luz dessas ações que o controle dessas próprias ações pode ser exercido pelos demais Poderes e, evidentemente, por toda sociedade.

Sublinhou que o pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo a omissão em relação às ações essenciais exigidas pelo art. 23 da CF.

É grave do ponto de vista constitucional, quer sob o manto de competência exclusiva ou privativa, que sejam premiadas as inações do Governo Federal, impedindo que estados e municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os estados-membros e os municípios.

Asseverou que o Congresso Nacional pode regular, de forma harmonizada e nacional, determinado tema ou política pública. No entanto, no seu silêncio, na ausência de manifestação legislativa, quer por iniciativa do Congresso Nacional, quer da chefia do Poder Executivo federal, não se pode tolher o exercício da competência dos demais entes federativos na promoção dos direitos fundamentais.

Assentou que o caminho mais seguro para identificação do fundamento constitucional, no exercício da competência dos entes federados, é o que se depreende da própria legislação. A Lei 8.080/1990, a chamada Lei do SUS - Sistema Único de Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde e assegura esse direito por meio da municipalização dos serviços. A diretriz constitucional da hierarquização, que está no caput do art. 198 da CF, não significou e nem significa hierarquia entre os entes federados, mas comando único dentro de cada uma dessas esferas respectivas de governo.

Entendeu ser necessário ler as normas da Lei 13.979/2020 como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica. Nos termos da Lei do SUS, o exercício dessa competência da União não diminui a competência própria dos demais entes  da Federação na realização dos serviços de saúde; afinal de contas a diretriz constitucional é a municipalização desse serviço.

O colegiado rejeitou a atribuição de interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, VI, "b", da Lei 13.979/2020, vencidos, no ponto, os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Para eles, desde que a restrição excepcional e temporária de rodovia intermunicipal seja de interesse nacional, a competência é da autoridade federal. Porém, isso não impede, eventualmente, que o governo estadual possa determinar restrição excepcional entre rodovias estaduais e intermunicipais quando não afetar o interesse nacional, mas sim o interesse local.

Da análise da decisão proferida pela corte constitucional, extrai-se que em razão da competência concorrente para legislar sobre a saúde, nos termos do artigo 23, XII da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal reputou constitucionais as medidas tomadas por Governadores e Prefeitos para prevenção do contágio pelo novo coronavírus, inclusive as medidas de determinação de isolamento, fechamento de comércio ou de vias públicas, desde que devidamente respaldadas por dados, evidências e informações de natureza científica.

Conquanto esteja certo o impetrante em ressaltar que a referida decisão não confere “carta branca” aos governadores e prefeitos para tomar medidas que restrinjam as liberdades individuais de forma arbitrária, tal arbitrariedade não restou evidenciada no caso dos autos , na medida em que, no âmbito da cidade de Salvador, conforme dados acima apresentados, as medidas já tomadas, assim como aquelas anunciadas, encontram-se dentro do patamar de razoabilidade, dado o contexto apresentado por dados e evidências científicas que apontam as medidas de isolamento como as mais indicadas para prevenir o contágio e evitar o colapso do sistema de saúde.

Em verdade, diante dos fatos apresentados, a inércia e a inação da autoridade coatora, diante de contexto de tamanha gravidade, é que ensejaria a intervenção do Poder Judiciário, seja para suprir eventual omissão, seja para, posteriormente, responsabilizar pelos danos causados.

Ressalte-se que, nos termos da inicial, os impetrantes apresentam questionamento quanto ao descumprimento pelo prefeito de Salvador quanto aos Decretos Presidenciais nº 10.282\2020 e 10.344\2020 que versa sobre atividades essenciais.

Tal alegação encontra resposta no âmbito do mesmo julgado acima relatado, haja vista que ,reconhecida a competência concorrente para implementação da política pública de saúde, evidente que compete à autoridade local compatibilizar as determinações do Decreto presidencial com a realidade local do município.

Em verdade, os referidos decretos, conforme informação de conhecimento público, sequer passaram pela análise e escrutínio do Ministro da Saúde à época em que foram editados, de forma que, estes sim, encontram-se em desconformidade com a decisão do Supremo Tribunal Federal, por desconsiderarem as evidências de estudos científicos reiteradamente apresentados.

Dessa forma, ainda que indiquem a posição do governo federal quanto à reabertura das referidas atividades tidas como essenciais, os referidos decretos não têm o condão de retirar dos Governadores e dos Prefeitos a atribuição para seguir atuando dentro da competência concorrente existente, em especial quando o fazem com fundamento nas informações e evidências científicas e em sentido de maior proteção aos direitos fundamentais à vida e à saúde.

 

Da Colisão de Direitos Fundamentais e existência de ameaça ao direito de liberdade dos cidadãos soteropolitanos.

Verificado o contexto fático e a existência de atribuição da autoridade coatora para a edição de atos administrativos para contenção da pandemia do vírus COVID-19, cumpre analisar a existência de efetiva ameaça à liberdade dos cidadãos soteropolitanos que justifique a concessão da medida liminar em sede de Habeas Corpus Coletivo.

Embora o peticionante afirme não se tratar esta hipótese de colisão de direitos fundamentais, mas apenas de grave risco de violação à liberdade, o contexto fático assinalado evidencia de forma flagrante que, conforme todos os dados e informações produzidas pela comunidade acadêmica, o isolamento de pessoas foi a única medida que se mostrou, até o presente momento, eficaz para conter o contágio do Coronavírus e, desta forma, evitar o colapso do sistema de saúde.

Diante deste cenário, não restam dúvidas de que há uma colisão entre o direito de liberdade individual, defendido no âmbito deste HC coletivo preventivo, e o direito à vida e saúde, ambos de natureza fundamental.

Neste sentido, as restrições impostas ao direito de liberdade individual, em sua integralidade, até o presente momento, foram devidamente fundamentadas na necessidade de proteção da vida e saúde coletiva, de forma que, ainda que não se possa jamais falar em uma supremacia de um direito fundamental sobre outro, é plenamente lícita e constitucional a restrição de um direito fundamental para a garantia de outro, como no caso em tela.

As medidas tomadas e mesmo as anunciadas, longe de ferir a ordem democrática, como indica o peticionante, encontram-se em plena concordância com o texto constitucional, na medida que visam garantir a vida e saúde da população soteropolitana, sendo devidamente motivadas pelos dados científicos apresentados.

Note-se que o discurso de que a liberdade é bem maior que não pode ser restringido não tem eco na ordem constitucional que determina a concordância e convivência dos direitos fundamentais.

Ademais, diante do cenário de pandemia da COVID-19, é de se questionar que liberdade defende o peticionate. Acaso trata da liberdade de contaminar outros concidadãos expondo ao risco suas vidas? Ou da liberdade de abertura de estabelecimentos comerciais, obrigando trabalhadores ao retorno de suas atividades e expondo ao risco do contágio estes e seus familiares ?

Afirma o peticionante que tem como principais tutelados por este HC coletivo preventivo os trabalhadores informais, que necessitam sair de suas casas para garantia do sustento diário.

Não se pode deixar de verificar que, muitas das medidas de restrição tomadas pelo Prefeito de Salvador, têm sido tomadas no âmbito de bairros de menor capacidade econômica, onde o indíce de contágio da doença tem sido mais alto. Com efeito, em casas com maior número de pessoas, com dificuldade de acesso à itens básicos de higiene, até mesmo água, verifica-se que o Coronavírus tem apresentado maior índice de contágio nestas localidades, assim como um maior índice de mortalidade na população negra.

Não por coincidência, são estas as áreas em que se encontra também os maiores índices do trabalho informal, defendido pelo peticionante.

Todavia, ao contrário do defendido, a política do município, estado ou do governo federal em relação a esta população deve andar no sentido de garantir-lhe o mínimo existencial previsto na Constituição Federal, inclusive mediante o pagamento de auxílios pecuniários que possam garantir a permanência segura em suas residências, e não de flexibilizar medidas que as exponham ainda mais sua vida e sua segurança.

Não há exagero em dizer que a omissão das autoridades, sejam municipais, estaduais ou federais, no âmbito de uma pandemia de escala mundial representa verdadeira materialização da necropolítica em relação à população econômica e socialmente vulnerável (conforme bem referido em recente decisão do Ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, no HC 580.653/PE). A pretensão do presente HC coletivo preventivo, acaso acolhida, não teria outro efeito senão levar adiante tão nefasto projeto, em especial na cidade de Salvador, em desfavor população negra e periférica

(https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/afp/2020/05/07/no-brasil-negros-sao-fortemente-atingido de forma que o deferimento da liminar tornaria ainda mais precária a situação dessas pessoas em meio à emergência de saúde pública ora vivenciada.

A defesa da liberdade, tal como realizada pelos impetrantes, afasta-se do conceito positivo de liberdade, entendido como aquele que autoriza o cidadão a fazer o que está na sua esfera de disponibilidade e passa ao conceito negativo de liberdade, no qual o cidadão pretende agir , atingindo a esfera de direito de terceiros. Esta última, com efeito, não encontra respaldo e guarida na ordem constitucional brasileira.

Feitas as considerações em razão da relavância da matéria cumpre reiterar a ausência de legitimidade e cabimento da presente ação, já analisadas de ofício.

À vista do exposto, JULGO, por sentença, o Habeas Corpus coletivo preventivo para determinar sua extinção sem julgamento do mérito, face ao reconhecimento da ilegitimidade dos impetrantes e ausência de cabimento da medida, aplicando subsidiariamente as normas do código de processo civil.

Confiro a esta sentença força de mandado de intimação.

 

Intime-se os impetrantes e a autoridade coatora apontada.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

SALVADOR - REGIÃO METROPOLITANA/BA, 29 de maio de 2020.

Emília Gondim Teixeira Juíza Plantonista