DECISÃO - Crime impossível de entorpecentes - RJ

Processo no Omissis 

SENTENÇA 

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia em face de Omissis imputando-lhe a prática da conduta tipificada no artigo 33 c/c. 40, inciso III da Lei 11.343/2006, narrando as alegações contidos na peça inicial de fls. 02/02B, que veio instruída pelos autos de Inquérito Policial instaurado por força de prisão em flagrante acostado às fls. 02C/63, onde consta de mais relevante Omissis... Omissis... 

Feito breve relatório, DECIDO: 

Conferindo início à análise do presente feito através da apreciação da prova testemunhal trazida aos autos pelas partes, temos que as testemunhas e informante ouvidos em Juízo afirmaram, em suma, o que segue: 

Omissis... 

Interrogada a ré alegou que Omissis... 

A materialidade dos fatos encontra-se positivada pelo auto de apreensão e laudo pericial já acima referidos, inexistindo controvérsia a tal respeito. 

Não obstante isto, impõe-se a absolvição da acusada, em que pesem as alegações finais do Ministério Público, da lavra de culta Promotora de Justiça titular perante este Juízo. 

Como já o reconheceu de forma expressa o Supremo Tribunal Federal ao declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, este é absolutamente caótico e, além disso, fortemente criminógeno, no sentido de produzir ele próprio novos crimes e criminosos mesmo que em potencial, sendo simplesmente inexistente, via de regra (diríamos mesmo que em 99% dos casos), seu potencial ressocializador – salvo uma ou outra (louvável) iniciativa absolutamente isolada. 

Esta capacidade de produzir novos crimes tem uma natureza endógena e outra exógena: o sistema prisional produz crimes em seu próprio âmago, de dentro para fora e de fora para dentro das unidades prisionais, sendo exemplo desta última hipótese situações como aquela narrada na denúncia, em que pessoas que não estão presas são levadas (ou sujeitas, ou induzidas, ou forçadas...) a praticar condutas tipificadas como crimes visando alimentar a criminalidade interna ao sistema, qual seja, o tráfico e (para quem entenda que se trate de um ilícito penal, o que não é o caso deste magistrado) o uso de entorpecentes. 

Assim é que como o sistema penal, por óbvio, não pode punir a si próprio pela sua absoluta inoperância e autofagia, em situações como essa narrada na inicial pretende punir quem opera dentro desta inoperância. Ou seja, por outras palavras, como não consegue coibir o tráfico e uso de drogas intramuros, de forma absolutamente hipócrita pretende punir quem, via de regra não por opção própria mas por induzimento, instigação, ameaça ou violência, se vê tangido a tentar ingressar com pequenos quantitativos de drogas em estabelecimentos prisionais – chegando mesmo a erigir tal situação como causa especial de aumento de pena! 

A questão se torna ainda mais interessante (e mais ainda hipócrita) se considerarmos controversos estudos que sustentam que o uso de entorpecentes dentro das unidades prisionais é de certa forma “aceito” porque “útil” para manter a “normalidade” intramuros, ou seja, que o tráfico interno e o uso de drogas é de certa forma “tolerado”, sofre “vista grossa” porque, sem detentos entorpecidos, o caos carcerário não seria minimamente controlável. 

Portanto, pretender punir pessoas em razão da própria ineficiência do sistema (e a ineficiência é a melhor das hipóteses, posto que em alguns casos há, na verdade e infelizmente, conluio e até mesmo fomento) não passa de buscar bodes expiatórios tão vulneráveis quanto inúteis, já que o uso e o tráfico intramuros continuará a existir e inclusive em alguns locais a vicejar, contando com certa complacência do Estado que, aqui ou ali, de forma absolutamente aleatória, se contentará em punir alguém que tente ingressar, por exemplo, com 200g de maconha, isto enquanto quilos e quilos das mais variadas drogas circulam diuturnamente dentro do sistema carcerário. 

Quando inexistir (ou pelo menos houver drástica diminuição do) tráfico e uso de drogas no interior do sistema prisional, ou seja, quando o sistema obtiver controle interno sobre si mesmo e a tal respeito, aí sim será “razoável” pretender punir (melhor seria pretender auxiliar a se afastar do crime através de medidas despenalizadoras e concretamente ressocializadoras pois, como diria Radbruch em famosa frase, “não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim fazer algo melhor do que o Direito Penal”) as chamadas “mulas” que tentam ingressar em presídios levando consigo pequenas quantidades de tóxicos que ali mesmo ingressam, neste exato instante, aos borbotões. 

Enquanto isso não ocorre, a atuação do direito penal em hipóteses como a presente continuará sendo meramente alegórica, inútil e falaciosa (numa única palavra: simbólica), como de hábito ensejando sentenças que não passam de um mero panfleto publicitário de uma ideologia punitivista arcaica, perversa e contraproducente, que somente faz retroalimentar a violência na sociedade lançando cada vez mais pessoas a manterem estreito contato com facções criminosas, a elas se aliando comumente por falta de opção e medo. 

Posto isso, no caso concreto estamos diante de crime impossível eis que, por absoluta impropriedade do meio utilizado pela ré, se mostrou inviável, neste específico caso concreto (e é o que importa já que não estamos aqui tratando de crime impossível “em tese”, mas analisando uma conduta particular), alcançar a consumação do ilícito. Neste sentido, analisando situação em que reconheceu a existência de crime impossível em hipótese de furto sob monitoramento em estabelecimento comercial, assentou o Supremo Tribunal Federal no corpo do aresto proferido no Recurso em Habeas Corpus n. 144516/SC, relatoria do Min. Dias Toffoli, o seguinte (grifei): 

Ressalto que esse entendimento não conduz, automaticamente, à atipicidade de toda e qualquer subtração em estabelecimento comercial que tenha sido monitorada pelo corpo de seguranças ou pelo sistema de vigilância, sendo certo que o agente infrator, não obstante todo esse aparato, pode vir a lograr êxito no intento delituoso, o que permitiria concluir que o meio empregado para a consecução do crime não seria ineficaz ao ponto de tornar o crime impossível (v.g. HC no 94.129/RS, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 4/6/10). 

Por isso, é de bom tom deixar consignado que a conclusão pela atipicidade, tal como se deu na espécie, dependerá da análise individualizada das circunstâncias de cada caso concreto. 

Voltando, pois, ao caso concreto: é absolutamente notório que alimentos que ingressam em unidades carcerárias são submetidos usualmente a minucioso escrutínio visto se tratar de um via absolutamente corriqueira de ingresso de drogas para alimentar aquele microcosmo. Ao tentar ingressar com drogas em inusuais pedaços grandes de carne, desproporcionais, a atuação da ré imediatamente chamou a atenção dos agentes penitenciários – e não poderia ser de outra forma, restando inviabilizada (desde o início, portanto) a consumação do crime. 

No sentido de tudo o quanto aqui sustentado, temos o seguinte aresto proferido pela 3a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Criminal n. 70051788081, tendo como relator o desembargador Diógenes V. Hassan Ribeiro: 

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. TENTATIVA DE INGRESSO EM CASA PRISIONAL COM SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. Crime impossível. Verificada a ineficácia absoluta do meio utilizado para consumação do fato. A indispensável e rigorosa revista pessoal na entrada da casa prisional torna ineficaz o meio utilizado. Crime de mera conduta. A jurisprudência e a doutrina apontam expressões nucleares do tipo do art. 33 da Lei no 11.343/2006 que possibilitam a forma tentada. Aplicação crítica da lei, não acrítica. Conforme o constitucionalismo contemporâneo, há uma reaproximação da ética ao Direito na aplicação. O princípio da razoabilidade serve de exemplo. Doutrina. Deficiência do Estado. A deficiência do Estado na sua infra-estrutura prisional não pode ser solucionada pela imposição de pena a fatos que, em sentido lógico e rigoroso, jamais seriam concretizados em ilícitos penais. A permissão de facções no interior de casas prisionais não pode ser esquecida, uma vez que o sistema prisional se auxilia da organização interna que permite nas casas prisionais. Interrogatório. Violação à ampla defesa, porque deve ser o último ato da instrução. Precedente do Supremo Tribunal Federal. Absolvição por fundamento diverso pelo vogal e Presidente. APELO PROVIDO. DECISÃO POR MAIORIA. 

Mas não é “só”. 

Como sabemos, indícios e presunções, se dispõem de força na esfera cível onde vigora o princípio da verdade formal, não têm o mesmo vigor no âmbito criminal que, se imiscuindo com direito primordial do ser humano - qual seja, a liberdade – é instruído essencialmente pelo princípio in dubio pro reo, corolário direto do princípio constitucional da presunção de inocência, que há de ser cabalmente desconstituída pela acusação de modo a alcançar almejada condenação. 

Como sustenta Natalie Ribeiro Pletsch, via de regra “não é preciso trazer aos autos elementos de prova para atestar que o acusado é inocente, já que esta presunção deve ser destruída pela prova – e não construída –, conforme orientação imposta pela Constituição da República”.1 

De outro lado, não são suficientes para ensejar a condenação exclusivamente as provas coletadas na fase de inquérito policial; estas, muito embora possam ser tomadas como indícios, devem ser corroboradas pela prova produzida em Juízo, esta sim realizada sob o crivo do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, isto sob pena de não restarem demonstradas a contento as imputações iniciais, implicando na absolvição. 

É o que ensina André Nicolitt: 

Como registramos, o devido processo legal é um conjunto de princípios, como o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, a motivação etc. Aqui isto fica muito evidente, pois temos que trabalhar também com o princípio da presunção de inocência, o que impõe à acusação o ônus da prova e ainda como regra de julgamento o in dubio pro reo. Destarte, se a prova produzida sob o crivo do contraditório, por si só, é incapaz de possibilitar a formação de um juízo condenatório, está evidenciada insuficiência de prova, impondo-se a absolvição do réu.2 

Ademais, como já lembrado, o ônus da prova no que tange às imputações contidas na denúncia compete à acusação, não cabendo aos réus, a princípio, fazer prova negativa. Neste sentido o posicionamento adotado por Aury Lopes Júnior: 

1 PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da Prova no Jogo Processual Penal. São Paulo:IBCCRIM, 1a edição, 2007, p. 71. 2 NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 1a edição, 2009, p. 358 A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio - nemo tenetur se detegere). FERRAJOLI esclarece que a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra- hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não restar suficientemente provada. É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. 3 

Ora, no feito em exame, um dos agentes penitenciários ouvidos não mais se lembrava dos fatos, não reproduzindo em Juízo suas declarações contidas no caderno inquisitorial, pelo que aqui não poderão ser consideradas em respeito aos princípios constitucionais do contraditório e do devido processo. 

Já a outra agente ouvida não deixou claro e demonstrado de modo satisfatório a efetiva existência de dolo por parte da ré quanto a dispor de plena ciência que, como sustenta a denúncia, “trazia consigo” substância entorpecente para fins de tráfico, ao passo que não se mostra de todo inverossímil a alegação erigida em autodefesa no sentido de que estava, a acusada, somente querendo ajudar uma pessoa que não dispunha (segundo alegou) de carteira de visitante e, não obstante, pretendia remeter (segundo também alegou) comida para um certo “Pedro”. 

Em suma, se alguns parcos fatores de natureza indiciária e circunstancial levam a suspeitar que a ré poderia estar envolvida com o crime ora apreciado, não há certeza, não há prova, enfim, por ausência de respaldo probatório idôneo não foi formado pelo Juízo o convencimento indispensável ao decreto condenatório. 

3 LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 11a edição, 2014, p. 562.

Assim é que na esfera penal, diante da dúvida, há que se absolver: in dubio pro reo. Adequa-se com perfeição à hipótese em análise a precisa lição de Álvaro Mayrink da Costa, verbis (grifei): 

PROVA. DÚVIDAS. “IN DUBIO PRO REO”. ABSOLVIÇÃO. Se diante do fato há duas versões, uma fornecida pela declarada vítima e outra pelo acusado, não se trata de questionar o velho adágio testius unus, testius nullus, mas de constatar dentro do conjunto probatório na variante de possibilidades a versão cabal, firme e inconteste da dinâmica do acontecer, caso contrário, diante da intranqüilidade da dúvida, o único caminho que resta ao julgador sereno e imparcial é a aplicação do consagrado princípio in dubio pro reo ínsito no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal. Recurso do órgão do Ministério Público improvido. 4 

No mesmo sentido a lição de outros Tribunais da Federação (grifei): 

APELAÇÃO CRIMINAL - ART. 33, CAPUT, DA LEI 11.343/06 (DOIS DENUNCIADOS), ART. 180, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UM DENUNCIADO) E ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL (UM DENUNCIADO) - EXARADO DECRETO CONDENATÓRIO NO JUÍZO SINGULAR - RECURSO DA DEFESA DOS CONDENADOS PELO ART. 33, CAPUT, DA LEI DE TÓXICOS - ARGUIÇÃO DE CARÊNCIA DE PROVAS PARA ESTEAR A CONDENAÇÃO - PROCEDÊNCIA ARGUMENTATIVA RECURSAL - MATERIALIDADE E AUTORIA INDEMONSTRADAS - AUTORIAS, PELOS RECORRENTES, SINALIZADA COMO MERA POSSIBILIDADE - INEXISTÊNCIA DE PROVA CABAL - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO - RECURSOS PROVIDOS. "A condenação criminal, com todos os seus gravames e consequências, só pode apoiar-se em prova cabal e estreme de dúvidas, pois presunções e meros indícios não ostentam aquelas qualidades de segurança e certeza, pelo que não servem para fundamentar um decreto condenatório." (ex-TACRIM - SP - Rel. Pires Neto - 

4 COSTA, Álvaro Mayrink da. Casos em Matéria Criminal. Rio de Janeiro: Forense, 3a edição, 1995, p. 613.

"É preferível a absolvição de culpado, por deficiência de provas, à condenação de inocente com provas deficientes." (ex-TACRIM/SP - Rel. Geraldo Ferrari - JUTACRIM 55/417). (6247561 PR 0624756-1, Relator: Eduardo Fagundes, Data de Julgamento: 06/05/2010, 5a Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 392) 

TRÁFICO - PROVA INSUFICIENTE - ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Inexistindo prova segura de que a substância entorpecente apreendida era também comercializada pelos acusados, em obediência ao velho brocardo do 'in dúbio pro reo', impõe-se manter a absolvição, pois é preferível absolver um culpado que condenar um inocente, vez que para se absolver não é necessário a certeza da inocência, bastando somente a dúvida quanto à culpa. Recurso improvido. (101450419244010011 MG 1.0145.04.192440- 1/001(1), Relator: ANTÔNIO ARMANDO DOS ANJOS, Data de Julgamento: 12/09/2006, Data de Publicação: 27/09/2006) 

APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA OS COSTUMES - VÍTIMA MENOR - TESTEMUNHOS PRESENTES NOS AUTOS FIRMES E COERENTES QUE BENEFICIAM O RÉU - MATERIALIDADE E AUTORIA DÚBIAS - PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO - DECISUM ABSOLUTÓRIO MANTIDO - RECURSO DESPROVIDO É sabido que em crimes contra a liberdade sexual, geralmente praticados na clandestinidade, as declarações da vítima são de forte valor probante, desde que não desmentidas ou não se revelem ostensivamente mentirosas ou contrárias aos demais elementos das provas existentes nos autos. Havendo um mínimo de incerteza quanto às declarações, torna-se preferível absolver mil culpados do que condenar um inocente. (274440 SC 2002.027444-0, Relator: Solon d ́Eça Neves, Data de Julgamento: 03/06/2003, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Apelação Criminal n. 2002.027444-0, de Criciúma.) 

Pelo que foi exposto e devidamente fundamentado, julgo totalmente improcedente o pedido formulado na denúncia para absolver, como de fato absolvo Omissis da acusação de prática do  delito tipificado no 33 c/c. 40, inciso III da Lei 11.343/2006, com fulcro no inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem custas. 

P. Vista ao Ministério Público. 

Intime-se a acusada para ciência da sentença no endereço de fl. 123, devendo, outrossim, informar ao próprio OJA se pretenderá recorrer e, após, intime-se o patrono constituído. 

Oficie-se determinando a inutilização do entorpecente apreendido e devidamente periciado em inexistindo controvérsia acerca de sua natureza. 

Transitada em julgado, proceda-se às comunicações e anotações devidas, dê-se baixa e arquive-se. 

Rio de Janeiro, 25 de julho de 2019. 

MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO

JUIZ DE DIREITO