Voto 52 - Drogas - Absolvição - Porte inconstitucional

ATIPICIDADE DA CONDUTA POR INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA DO PORTE DE ENTORPECENTES PARA USO PRÓPRIO –do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação criminal n.01113563.3/0-0000-000, da Comarca de São José do Rio Pardo, em que é Apelante RONALDO LOPES, sendo apelado o Ministério Público

ACORDAM, em 6ª Câmara C do 3º Grupo da Seção Criminal, proferir a seguinte decisão: “DERAM PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO POR RONALDO LOPES, PARA ABSOLVÊ-LO, FORTE NO ARTIGO 386, INCISO III DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. OFICIE-SE AO JUÍZO A QUO PARA QUE PROVIDENCIE, INCONTINENTI, A EXPEDIÇÃO DO CABÍVEL ALVARÁ DE SOLTURA. V.U. de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão”.

O julgamento foi presidido pelo Desembargador JOSÉ RAUL GAVIÃO DE ALMEIDA e teve participação dos Desembargadores LUCIANA FERRARI NARDI e NELSON A. BERNARDES DE SOUZA.

São Paulo, 31 de maroço de 2008.

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES
RELATOR

VOTO 52
RELATOR: José Henrique Rodrigues Torres

Processo TJ nº 01113563.3/0-0000-000
NATUREZA: APELAÇÃO CRIMINAL
COMARCA: Foro Distrital de São Sebastião da Grama
VARA: cumulativa
PROCESSO. N. 026/97 (controle)
JUIZ “A QUO”: PAULO ROGÉRIO MAVEZZI
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO (recorrido)
RÉU: RONALDO LOPES (recorrente)
SENTENÇA RECORRIDA
CONDENATÓRIA: Lei 11343/06, artigo 33, caput .
PENA: 02 anos e 06 meses de reclusão e 250 dias-multa
REGIME: fechado inicial
SITUAÇÃO PRISIONAL: preso em flagrante desde o dia 17 de fevereiro de 2007 (fls.02)
VOTO: provimento para absolver o recorrente

EMENTA: 1.- A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2.- O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil para produzir lesão que invada os limites da alteridade e afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

VISTOS.

RONALDO LOPES, qualificado nos autos (fls. 08), portador do RG n. 33.146.996, INCONFORMADO com a r. sentença condenatória contra ele proferida nesta ação penal, dela APELOU, alegando, em apertada síntese, o seguinte: (1) foi CONDENADO como incursos no artigo 33, caput da Lei n. 11.343/2006, às penas de RECLUSÃO de 02 ano e 06 meses, com início no regime fechado, e 250 dias-multa, porque, no dia 17 de fevereiro de 2007, trazia consigo, para fins de tráfico, 7,7g de cocaína; (2) o laudo de exame toxicológico concluiu que na porção de droga apreendida com o recorrente havia cocaína e xilocaína, esta não incluída entre as drogas proibidas, o que evidencia que era pequena a quantidade de droga apreendida com o recorrente; (3) denúncia anônimas não são bastantes para afirmar a traficância; (4) o recorrente foi preso quando caminhava para a sua casa; (5) três invólucros com drogas não bastam para afirmar a mercancia; (6) os policiais afirmaram que nunca encontraram drogas no local, o que afasta a afirmação de que se tratava de um ponto de tráfico; (7) um policial afirmou que conhecia um traficante com o apelido similar ao do recorrente; (8) uma testemunha confirmou que o recorrente é viciado em drogas; (9) não há provas da traficância; e (10) a absolvição do recorrente é de rigor (fls. 110 a 114).

Em contra-razões, o Ministério Público pediu a mantença da condenação (fls. 120 a 122).

O Procurador de Justiça opinou pelo improvimento do apelo (fls. 131 a 133).

EIS O RELATÓRIO.

VOTO.

A pretensão recursal procede e a absolvição do recorrente é de rigor.

De acordo com a r. decisão recorrida, o recorrente portava 7,7g de cocaína, acondicionados em três papelotes, para fornecimento a terceiros, violando, assim, o preceito proibitivo do artigo 33, caput da Lei n. 11.343/2006, pois (1) os policiais militares que prenderam o recorrente afirmaram que “denúncias recebidas diziam que Ronaldo, de apelido ‘Chitos’, filho do ‘João Guarda’ estaria traficando na cidade, e que não há na cidade outra pessoa com o mesmo apelido do acusado, nem filho do ‘João Guarda’, (2) o recorrente admitiu o porte da droga com ele apreendida, (3) a quantidade da droga apreendida “permite a conclusão” de que não se tratava de porte para uso próprio, uma vez que o recorrente afirmou que usava tal substância esporadicamente e (3) tal quantidade “presta-se a caracterizar o tráfico de drogas” (fls. 100 e 101).

Todavia, esses argumentos invocados pelo juiz a quo não são bastantes para fundamentar a caracterização da traficância.

É verdade que o recorrente, em seu interrogatório judicial, admitiu que realmente estava portando cocaína, mas afirmou, também, que era usuário dessa droga e que iria consumir a substância apreendida durante o carnaval, nos próximos quatro dias (fls. 67).

E não há nenhuma prova hábil para desacreditar essa afirmação do recorrente, a qual, aliás, encontrou respaldo no conjunto probatório.

É verdade que os policiais militares Eduardo Lemes Passareli e William Roger Stivale Teio afirmaram que já haviam recebido várias “denúncias anônimas” de que o recorrente praticava o tráfico de drogas (fls. 68 e 69).

Contudo, em um processo penal talhado sob a égide de princípios democráticos e garantistas não se pode dar nenhuma credibilidade a informações anônimas.

E não se trata de desacreditar as palavras dos policiais militares mencionados, que apenas afirmaram aquilo que ouviram dos denunciadores sem nome.

Na realidade, o que não tem e não pode ter nenhuma credibilidade no processo penal democrático é o conteúdo daquelas anônimas “denúncias“ feitas aos policiais, máxime quando não se encontra no conjunto probatório nenhuma prova hábil para respaldá-las.

Também é verdade que, segundo os referidos policiais militares, os denunciadores anônimos informaram que o imputado traficante chamava-se Ronaldo, tinha a alcunha de “Chitos” e era filho do “João Guarda”, o que estaria a incriminar o recorrente (fls. 68 e 69).

Todavia, essas informações não têm nenhuma relevância e seriam absolutamente imprestáveis ainda que o “pusilânime denunciador anônimo” tivesse fornecido aos policiais, com exação, o nome completo do recorrente, a sua qualificação, o número de seu documento de identidade e o seu endereço residencial.

Decididamente, não se olvide que se trata de uma acusação anônima, sem indicação de fatos concretos e relativa a um comportamento abstrato imputado ao recorrente, o qual poderia ser atribuído a qualquer outra pessoa, sem que o eventual imputado pudesse contrariá-la ou dela defender-se, exatamente em face de sua generalidade.

Ora, se aquela afirmação anônima e genérica tivesse algum valor probatório, qualquer pessoa, sabendo que um vizinho é um consumidor de drogas, poderia telefonar para a polícia e dizer que ele é um traficante, para que, em razão dessa denúncia, o vizinho viciado, flagrado na posse de alguma droga, fosse condenado por tráfico.

Como se vê, nada pode ser aproveitado, neste processo, daquelas referidas “denúncias anônimas”.

A verdade é que não foi produzida nenhuma prova concreta e objetiva hábil para demonstrar que o recorrente efetivamente portava a mencionada droga com a finalidade de mercancia.

É verdade, também, que um dos policiais militares acima nomeados afirmou que o recorrente foi preso com a droga em um local que, segundo aquelas notícias anônimas, era conhecido como “ponto de drogas” (fls. 68).

Entanto, esse mesmo policial afirmou que “já fez abordagens em pessoas que se encontravam no local e veículos, mas nada foi localizado”, o que evidencia, também por esse motivo, a total imprestabilidade daquelas “denúncias anônimas” (fls. 68).

Além disso, nenhuma prova foi produzida para comprovar que o recorrente estava em um local conhecido como “ponto de drogas”.

Aliás, ainda que o local fosse realmente um ponto de tráfico, essa circunstância fática não seria bastante para a condenação do recorrente como mercador de drogas, pois, induvidosamente, consumidores de entorpecentes também freqüentam esses locais e isso não os torna traficantes.

Na realidade, o recorrente afirmou que estava voltando para a sua casa com a mencionada droga e que pretendia consumi-la nos próximos dias de carnaval (fls. 67) e os policiais acima mencionados confirmaram que o recorrente realmente foi flagrado na rua, caminhando na direção de sua casa, em uma noite de carnaval, em um local onde havia desfiles de rua dos festejos do Rei Momo e nas proximidades do clube da cidade (fls. 68 e 69).

Mas não é só.

A testemunha Percival Pessoa de Almeida, agente penitenciário, corroborando as afirmações do recorrente, asseverou que conhece o recorrente desde criança, que o recorrente já foi flagrado, em outra oportunidade, fumando um “baseado de maconha”, que o recorrente já foi submetido a tratamento para deixar o vício de drogas e que vária vez aconselhou o recorrente, tentando afastá-lo desse vício (fls. 70).

Aliás, essa testemunha afirmou que também já fez uso de cocaína e que costumava consumir “por volta de três gramas” dessa droga por dia, o que dá credibilidade à afirmação do recorrente de que a quantidade de cocaína com ele apreendida seria consumida, por ele próprio, nos próximos dias, durante o carnaval (fls. 70).

Como se vê, não se pode afirmar a traficância simplesmente com base na quantidade de cocaína apreendida com o recorrente, máxime quando o conjunto probatório contém elementos suficientes para afirmar que ele realmente era usuário dessa droga na época dos fatos.

Assim, os elementos de prova produzidos nesta ação penal são suficientes, apenas e tão-somente, para afirmar que o recorrente estava portando 7,7g de cocaína para consumo próprio e que, em conseqüência, a sua conduta seria subsumível ao tipo do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006.

Todavia, a criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, e viola frontalmente os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, albergados pelo artigo 5º da Constituição Federal como dogmas de garantia individual.

Como observa Salo de Carvalho, “a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo do uso de entorpecentes é injustificável”

O argumento de que o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é de perigo abstrato, bem como a alegação de que a saúde pública é o bem tutelado, não é sustentável juridicamente, pois contraria inclusive a expressão típica desse dispositivo criminalizador, lavrado pela própria ideologia proibicionista, o qual estabelece os limites de sua incidência pelas elementares elegidas, que determinam expressamente o âmbito individualista da lesividade e proíbem o expansionismo desejado.

Basta ler o tipo penal em menção, que descreve, para a incidência da conduta que pretende criminalizar, exclusivamente aquela de quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou porta, “para consumo pessoal”, drogas proibidas.

O elemento subjetivo do tipo, evidenciado pela expressão “para consumo próprio”, delimita com exatidão o âmbito da lesividade e impede qualquer interpretação expansionista que extrapasse os lindes da autolesão.

Com efeito, como assevera Maria Lúcia Karan, “é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo (...). Nesta linha de raciocínio, não há como negar incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal”

É por isso que Alexandre Morais da Rosa afirma que “no caso de porte de substâncias tóxicas inexiste crime porque, ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo artigo 16 da Lei n. 6368/76 é a integridade física e não a incolumidade pública”

Assim, transformar aquele que tem a droga apenas e tão-somente para uso próprio em agente causador de perigo à incolumidade pública, como se fosse um potencial traficante, implica frontal violação do princípio da ofensividade, dogma garantista previsto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.

Além disso, a criminalização do porte para uso próprio também viola o princípio constitucional da igualdade, pois há flagrante “distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não-penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física e psíquica” .

Mas não é só.

Não se olvide da violação ao princípio constitucional garantidor da intimidade e da vida privada, que estabelece intransponível separação entre o direito e a moral.

Com efeito, não se pode admitir qualquer intervenção estatal, principalmente de índole repressiva e de caráter penal, no âmbito das opções pessoais, máxime quando se pretende impor pauta de comportamento na esfera da moralidade.

Induvidosamente, “nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser aos sujeitos determinados padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo e da tolerância à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade” .

É por isso que somente é admissível a criminalização das condutas individuais que causem dano ou perigo concreto a bens jurídicos de terceiros, o que não acontece com a conduta descrita no tipo do artigo 28 da Lei n. 11343/2006.

Decididamente, “no direito penal de viés libertário, orientado pela ideologia iluminista, ficam vedadas as punições dirigidas à autolesão (...): o direito penal se presta, exclusivamente, à tutela de lesão a bens jurídicos de terceiros. Prever como delitos fatos dirigidos contra a própria pessoa é resquício de sistemas punitivos pré-modernos. O sistema penal moderno, garantista e democrático, não admite crime sem vítima. A lei não pode punir aquele que contra a própria saúde ou contra a própria vida – bem jurídico maior – atenta: fatos sem lesividade a outrem, punição desproporcional e irracional” .

Como ensina Maria Lúcia Karan, “a simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que, situando-se na esfera individual, se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado – e, portanto, ao Direito – penetrar. Assim, como não se pode criminalizar e punir, como, de fato, não se pune, a tentativa de suicídio e a autolesão; não se podem criminalizar e punir condutas, que podem encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão” .

E não se olvide, ainda, que a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afronta o respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergado pela Constituição Federal e por inúmeros tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.

Com efeito, “a criminalização do porte de substância entorpecente dá uma bofetada no respeito ao ser diferente, invadindo a opção moral do indivíduo. Há uma nítida reprovação a quem não segue o padrão imposto. Há uma espécie de eliminação social dos que não são iguais. (...). Cabe ao ser humano, desde que não interfira nos desígnios de terceiros e os lesione, de maneira individual, escolher e traçar os caminhos que mais lhe convém. Ao se reprovar o uso, criminalizando o porte, a sociedade invade seara que não é constitucionalmente sua. Assim fazendo, desrespeita as opções individuais e estigmatiza o ser diferente pela simples razão de este não se revestir da crença do que seria correto. (...) A Constituição exige tolerância com quem seja assim, sem exigir padrões de moralidade aos diversos grupos existentes, dentre eles os que usam drogas”

Portanto, como a criminalização primária do porte de entorpecente para uso próprio é inconstitucional, a conduta do recorrente, que portava cocaína para uso próprio, é atípica.

POSTO ISSO, dou provimento ao recurso interposto por RONALDO LOPES, qualificado nos autos (fls. 08), portador do RG n. 33.146.996, para ABSOLVÊ-LO, forte no artigo 386, III do Código de Processo Penal.

Oficie-se ao juízo a quo para que providencie, incontinenti, a expedição do cabível alvará de soltura.

JOSÉ HENRIQUE RODRIGUES TORRES
RELATOR