Decisão Propriedade Imaterial

ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu I

2a VARA CRIMINAL DA COMARCA DE NOVA IGUAÇU Processo nº DECISÃO "A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento". Norberto Bobbio De início é mister salientar que pacífico entendimento doutrinário-jurisprudencial firma a impossibilidade de imiscuir-se o magistrado da capitu-lação contida na exordial, eis que atinente à oppinio delicti formada pelo Minis-tério Público em atribuição exclusiva do Parquet, devendo a aferição da ade-quação típica ser relegada ao momento da sentença, com eventual aplicação da emendatio ou da mutatio libelli. Todavia, tal entendimento há de ser aplicado atualmente com extrema cautela – muito embora de fato ainda sirva como re-gra... – diante das amplas conseqüências práticas desta capitulação inicial face ao ordenamento penal e processual penal pátrio atual, dentre as quais pode-se citar, v.g., a possibilidade (ou não) da concessão de liberdade provisória ou, como in casu, da oferta de suspensão condicional do processo ao acusado, fato-res essenciais e bastantes para colocar em xeque a regra acima disposta. Neste sentido, o posicionamento do egrégio Supremo Tribunal Fede-ral, como se verifica no seguinte aresto: HC89686 / SP - SÃO PAULO Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 12/06/2007 Órgão Julgador: Primeira Turma DJ 17-08-2007 PP-00058 EMENT VOL-02285-04 PP-00638 I. Omissis.

II. Denúncia: errônea capitulação jurídica dos fatos narrados: erro de direito: possibibilidade do juiz, ve-rificado o equívoco, alterar o procedimento a seguir (cf. HC 84.653, 1ª T., 14.07.05, Pertence, DJ 14.10.05). 1. Se se tem, na denúncia, simples erro de direito na tipificação da imputação de fato idonea-mente formulada é possível ao juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afastar de logo as ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu II

conseqüências processuais ou procedimentais decor-rentes do equívoco e prejudiciais ao acusado. 2. Na mesma hipótese de erro de direito na classificação do fato descrito na denúncia, é possível, de logo, proceder-se a desclassificação e receber a denúncia com a tipificação adequada à imputação de fato vei-culada, se, por exemplo, da sua qualificação depen-der a fixação da competência ou a eleição do proce-dimento a seguir. Posto isso, é certo que o ordenamento jurídico não pode causar-nos estranhamento, reticência quando de sua aplicação; se nos causa, há algo errado – e há, deveras, na espécie vertente, como passo a demonstrar. O artigo 184 do Código Penal – de crucial relevância para corpora-ções de grande influência e, diga-se, ativo lobby junto ao Congresso Nacional – já foi, desde a edição do Código Penal, alterado diversas vezes, seja para am-pliar a dicção legal quanto às ações típicas ali previstas, seja para aumentar as reprimendas contidas no preceito secundário da norma; assim se deu pelas Leis nº 6.895/1980, 8.635/1993 e, mais recentemente, pela Lei nº 10.695/2003 que, na parte que mais nos importa, majorou a pena mínima do delito contido no pa-rágrafo 1º (e consequentemente a do parágrafo 2º...) do artigo 184 do Código Penal de um ano de reclusão para dois anos, mantendo a pena máxima no pa-tamar anterior, i.e., de quatro anos de reclusão, além da multa, entrando o novo texto em vigor aos 02 de agosto de 2003. Trata-se, como bem se sabe, de crime contra a propriedade imaterial e, mais especificamente, contra a propriedade intelectual, dispondo da se-guinte redação (que pedimos vênia para transcrever, para maior clareza do ra-ciocínio): Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fono-grama, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, con-forme o caso, ou de quem os represente: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2o Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distri-bui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga ori-ginal ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos di-reitos ou de quem os represente. ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu III

Ocorre que a Lei nº 9.609/1998, ao dispor "sobre a proteção da pro-priedade intelectual de programas de computador, sua comercialização no Pa-ís, e dá outras providências" (grifo nosso...), estatui: Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador: Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa. § 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o re-presente: Pena - Reclusão de um a quatro anos e multa. § 2º Na mesma pena do parágrafo anterior incorre quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio, original ou cópia de programa de computador, produzido com violação de direito autoral. Logo se vê o absurdo da situação: se violar direito autoral atinente a programa de computador, o autor do fato poderá ser apenado com um a quatro anos de reclusão e multa; se violar obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma poderá receber reprimenda que vai de dois a quatro anos de reclusão além da multa – o mesmo se aplicando a quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio aqueles bens produzidos com violação de direito autoral. Qual a lógica ? Nenhuma... As duas normas tutelam penalmente a mesma objetividade jurídica, qual seja, o direito autoral, ou mais amplamente a propriedade intelectual; ambas têm como sujeito passivo o autor ou outro titular do direito imaterial; as duas dispõem de redações praticamente idênticas; pos-suem o mesmo tipo subjetivo, i.e., o dolo. Diferem somente em uma coisa: no preceito secundário, na pena, vulnerando drasticamente, assim, primeiramente o princípio da igualdade, ao tratar desigualmente criminosos em situações to-talmente isonômicas, i.e., que pratiquem condutas que dispõem do mesmo des-valor intrínseco, isto com graves conseqüências de ordem penal e processual penal, dentre as quais aquelas atinentes ao benefício do sursis processual.

Como assevera Mariângela Gama de Magalhães Gomes "o princípio da igualdade significa a proibição, para o legislador ordinário, de discrimina-ções arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento i-gual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um trata-mento diferenciado. Isto se dá uma vez que o princípio da igualdade não se re-fere, apenas, a direitos e deveres políticos, mas ordena ao legislador que pre-veja com as mesmas conseqüências jurídicas os atos que, em linha de princí-pio, sejam comparáveis, e lhe permita realizar diferenciações apenas para as ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu IV



hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem moti-vos desta espécie, haverá distinções arbitrárias". 1 Nem se cogite de argumentar que tratam-se de normas de natureza diversa, com relação de especialidade, sendo aquela contida no Código Penal de caráter geral, devido à absoluta ausência de lógica em tal sustentação, per-missa venia, a uma porque é totalmente ilógico (para não dizer risível...) supor que a criação intelectual pertinente ao software disponha de valor inferior ao de outras criações intelectuais e, portanto, que o desvalor da conduta que a vulnere mereça reprimenda mais amena; a duas porque o princípio da especialidade não pode servir de desculpa ou pretexto para a quebra da isonomia do sistema, com desconsideração a ditame constitucional

1 Magalhães Gomes, Mariângela Gama; O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, Ed. Re-vista dos Tribunais, 1ª edição, 2003, pág. 67; 2 Idem; op.cit., pág. 67;

Mas há também inconstitucionalidade sob o prisma do princípio da proporcionalidade. Ora, à toda evidência, uma norma que tutela penalmente direito autoral, ou seja, direito exclusivamente patrimonial (que deveria inclusi-ve, ressalte-se, ser objeto exclusivamente de ação penal de iniciativa privada...), não pode dispor da mesma pena mínima que, por exemplo, um homicídio sim-ples tentado, uma indução a suicídio que se consuma, um infanticídio, uma le-são corporal gravíssima, ou um abandono de recém nascido com resultado mor-te; mais, não pode dispor de pena superior a um homicídio culposo, um aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, uma lesão corporal grave, ou um abandono de incapaz de que resulte lesão grave. Fere completamente o senso de razoabilidade admitir-se tamanha disparidade. Quebra toda a lógica do sistema. Vejamos mais uma vez as precisas palavras de Mariângela Gomes: "Deve a atividade legislativa, desta forma, ser orientada pela racionalidade, uma vez que cabe ao legislador valorar racionalmente as diferenças e seme-lhanças entre os fatos a serem disciplinados, de modo que os resultados desta ponderação mostrem-se coerentes". 2

Nos ensina Norberto Bobbio: "É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma e de outra... são violadas duas exigências fundamentais em que se ins-piram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da cer-teza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existam duas normas antinô-micas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu V

do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria". 3

3 Bobbio, Norberto; Teoria do Ordenamento Jurídico, Ed. Universidade de Brasília, 1ª edição, 1989, pág. 113; 4 Estellita, Heloisa. Direito penal, constituição e princípio da proporcionalidade. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.11, n.n. esp., p. 11-13, out. 2003.

Não se diga que mediante o presente decisum estaria o Poder Judici-ário se apropriando de atribuições típicas do Poder Legislativo, retirando deste a margem de discricionariedade legítima para a fixação das reprimendas penais abstratamente consideradas, e que deveria o juiz se limitar à aplicação da pena em concreto, se atendo necessariamente aos limites da norma erigida pelo legis-lador: nada mais falso, data maxima venia, eis que, nas palavras simples e obje-tivas de Heloísa Estellita, "na medida em que ao Poder Judiciário incumbe a tarefa de garantir a autoridade, a primazia e a aplicação da Constituição Fe-deral, incumbe-lhe o controle de constitucionalidade das normas penais que violem o princípio da proporcionalidade". 4 Ainda sobre o tema encontramos a precisa lição de Pedro Augusto Lopes Sabino, verbis: "O constitucionalismo hodierno está voltado para um enfoque material da Constituição. Busca-se a máxima efetividade das normas constitucionais, quer sejam en-tendidas como regras, como princípios ou como postu-lados normativos aplicativos. Como cada ordem jurídica ajusta modelos teóricos de ordenação societária ao seu contexto histórico real exis-tente, é imperativo o delineamento de normas em conso-nância com o contexto social específico. Por conseqüên-cia, o legislador é necessariamente apto a estabelecer restrições, desde que sujeitas a um controle de constitu-cionalidade. Este controle exercido pelo Judiciário, inobstante deva ser utilizado com a cautela indispensável para a não vi-olação da separação de poderes, não deve inibir uma contribuição atualizadora dos princípios pelo magistra-do.

A decisiva participação do Judiciário na atualização a-xiológica dos princípios ocorre de modo singular no conflito de bens jurídicos, notadamente entre direitos fundamentais. Na solução destes casos, impende a utili-zação dos postulados normativos da proporcionalidade ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO 2a Vara Criminal de Nova Iguaçu VI e da razoabilidade em todos os seus aspectos, melhor instrumentalizando, assim, o intérprete na concretização de princípios constitucionais". 5 Ressalte-se por derradeiro que não há qualquer fundamento razoável na alegação de que a mens legislatoris que norteou a majoração da pena míni-ma no delito em questão estaria no grave prejuízo causado à indústria de CDs e DVDs, posto que o argumento beira o absurdo. Seria como se sustentássemos, v.g., a cisão do crime de furto, permanecendo este com a pena mínima de 1 ano de reclusão para as hipóteses em que o bem jurídico concretamente tutelado não ultrapasse R$100.000,00, passando o mesmo a dispor da pena mínima de 2 anos de reclusão quando o bem visado pelo criminoso seja superior a tal valor. Não cremos que tal disparate seja minimamente idôneo a embasar e tornar legítima a alteração legislativa em comento, dispensando maiores comentários. Pelo exposto, declaro incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei nº 10.695/2003, na parte em que amplia a pena mínima contida no preceito se-cundário do parágrafo 1º do artigo 184 do Código Penal, entendendo como vi-gorante a pena prevista para tal dispositivo pela Lei nº 8.635/1993, i.e., reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de CR$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros) a Cr$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros) e, em assim sendo, determino que seja aberta vista dos autos ao Ministério Público para pronunciar-se em conformida-de com o artigo 89 da Lei nº 9.099/95. Cumpra-se. Nova Iguaçu, 16 de abril de 2008. MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO JUIZ DE DIREITO

5 Sabino, Pedro Augusto Lopes. Proporcionalidade, razoabilidade e direito penal. Disponível na inter-net: www.ibccrim.org.br, 12.11.2003