Bagatela

Autos n°038.10.008945-0

Ação:Auto de Prisão Em Flagrante/Indiciário

Autuado: Julio Cesar das Neves

VISTOS .

I – Tanto nos depoimentos dos policiais como da vítima relatou-se que o autuado Julio Cesar Neves, de 25 anos de idade, morador de rua, teria furtado um aparelho de som de um veículo, sendo que populares, após a sua detenção, revoltados, lesionaram-no.

Não é razoável o cometimento de atos de violência e abuso, por aqueles que ao que parece se auto-intitulam "cidadãos de bem" e "proprietários" da moral e bons costumes, contra quem quer que seja. Pior, contra pessoa já marginalizada e protagonista da roda da miséria, como é o caso do autuado.

O Estado de Direito, nesta quadra arduamente conquistado, não pode admitir barbáries que remontam à Idade Média, muito menos para satisfazer sentimentos paranóicos coletivos de vingança.

Ex positis, requisite-se o encaminhamento do exame de corpo de delito do autuado, em 24 horas. Vindo, extraia-se cópia do exame e destes autos e encaminhe-se à autoridade policial, requisitanto-se a instauração de Inquérito Policial para apuração dos delitos de lesão corporal e eventual tortura pelos populares que detinham o autuado, independentemente de outros existentes.

II – Com relação ao flagrante, além da gravidade da situação estampada, mormente pelos atos de barbárie relatados, cumpre tecer algumas ponderações.

Como já salientado acima, trata-se de comunicação em flagrante, noticiando a prisão do autuado Julio Cesar das Neves pelo cometimento, em tese, do furto tentado de 1 (um) aparelho de CD, avaliado em R$ 150,00.

Necessário de plano reconhecer a ocorrência do princípio da insignificância, com o conseqüente relaxamento da prisão.

É cediço que a concepção de aplicabilidade da reprovação penal no contexto atual não mais se restringe a subsunção da fato delitivo à norma incriminadora insculpida, mas também a necessária presença de uma terceira condicionante, a lesividade da conduta para vítima.

Dispõe Maurício Antônio Ribeiro Lopes: "(...) o princípio da insignificância é que erige uma hermenêutica dinâmica projetada sobre o direito Penal já construído, buscando atualizar e materializar a tipicidade e a ilicitude em função do resultado concreto da ação ou do móvel inspirador do comportamento" (in Princípio da Insignificância no Direito Penal. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2ª ed., pág. 82).

Esta orientação justifica-se, ainda mais, quando se observa que o tipo penal resta composto por três elementos, quais sejam: a ação, o resultado e o nexo causal. A existência de crime e eventual sanção conseqüente exige destarte, ao par da ação e do nexo causal, a configuração de um resultado, que, na realidade, traduz-se na lesão a bem juridicamente protegido. Ou seja, ausente o resultado, não há conduta típica.

Ao passo de todos estes fundamentos, cumpre reconhecer ser dispendiosa e improfícua a movimentação da máquina estatal para apuração de delitos de menor significância, como é o caso. Na mesma proporção, verifica-se salutar o direcionamento destes recursos no combate aos delitos que merecem de fato a reprovação penal.

Com efeito, antecipando-se a adoção do princípio da insignificância como fundamento para prolação de eventual sentença absolutória pela atipicidade da conduta, alguns Tribunais, em recentes julgados, vem abarcando este princípio, inclusive para efeito de rejeição de denúncia, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que adota São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. O paciente se apropriou de um violão cujo valor restou estimado em R$ 90.00 [noventa reais]. O direito penal não deve se ocupar de condutas que não causem lesão significativa a bens jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao titular do bem tutelado, bem assim à integridade da ordem social. Ordem deferida" (STF; HC 94770 / RS - RIO GRANDE DO SUL; Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA; Relator(a) p/ Acórdão: Min. EROS GRAU; Julgamento: 23/09/2008; Órgão Julgador: Segunda Turma).

"Em sendo ínfimo o valor da res furtiva e do dano causado pelo rompimento de obstáculo, admite-se o trancamento da ação penal, em face da inexistência da tipicidade material. Para a aplicação do princípio da bagatela deve o julgador se ater à análise do fato e não do autor do fato, impondo-se observar essencialmente a intensidade da lesão causada ao bem juridicamente protegido, não constituindo, por isso, óbices á incidência do instituto, a reincidência ou antecedentes do agente" (Sublinhou-se) (TJMT – 3ª C. - HC 34123/09 – rel. José Luiz de Carvalho – j. 04.05.2009 – Dje 12.05.2009).

"FURTO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. Subtração de roupas do varal. Objetos devolvidos a vítima. Crime de bagatela caracterizado, ante a falta de lesividade jurídica do fato cometido pelo acusado. Decisão mantida" (TJRS; Apelação Criminal n. 70006168736; Des. Rel. Alfredo Foerster; J. em 21.08.2003).

Muito embora o enfoque recaia mais sobre o campo teórico do que em âmbito prático, Oscar Wilde, conhecido escritor irlandês, em 1895 já pincelava os contornos defendidos por Roxin, apregoando que "(...) juntamente com a autoridade se extinguirá a punição, o que será uma grande conquista – uma conquista, com efeito de valor incalculável. A quem estuda História – não nas edições expurgados que se destinam a leitores ingênuos ou nada exigentes, mas sim nas fontes autorizadas e originais de cada época – repugnam menos os crimes cometidos pelos perversos que as punições infligidas pelos bons; e uma sociedade se embrutece infinitamente mais pelo emprego freqüente de punição do que pela ocorrência eventual do crime. Segue daí que, quanto mais punição se aplica, mais crime se gera. A legislação mais atualizada, reconhecendo isso com toda clareza, toma para si a tarefa de diminuir a punição até onde julgue possível. Toda vez que ela realmente o consegue, os resultados são extremamente bons. Quanto menos punição, menos crime. Não havendo punição, ou o crime deixará de existir, ou, quando ocorrer, será tratado pelos médicos como uma forma de demência, que deve ser curada com afeto e compreensão. Aqueles a quem hoje se chama de criminosos, não o são em hipótese alguma. A fome, e não o pecado, é o autor do crime na sociedade moderna. Eis porque nossos criminosos são, enquanto classe, tão desinteressantes de qualquer ponto de vista psicológico. Eles não são admiráveis Macbeths ou Vautrins terríveis. São apenas o que seriam as pessoas comuns e respeitáveis se não tivessem o suficiente para comer" (in A Alma do Homem sob o Socialismo/Oscar Fingal O'Flahertie Wills; tradução de Heitos Ferreira da Costa – Porto Alegre: L&PM, 2003) (Sublinhou-se).

Quiçá em casos tais como o dos autos a ética, enquanto perspectiva do outro, devesse preponderar sobre a moral. Assim às intituições civis buscariam soluções para integração social e econômica daqueles marginalizados e não simplesmente os empurrariam para o estigmatizante cárcere, fábrica de exclusão.

Desta feita, em se tratando a res subtraída tão-somente de 1 (um) aparelho de CD, avaliado em R$ 150,00, conforme se denota da narrativa indiciária, o caminho mais judicioso é o reconhecimento da insignificância da conduta perpetrada.

Ademais, como se não bastasse o parco valor atribuído a res, a vítima recuperou o bem substraído, não se vislumbrando, desta forma, expressividade na conduta enveredada pelo autuado.

Em suma, tem-se a seguinte situação: reconhecido o princípio da insignificância, nos termos aduzidos, não há que se falar na tipicidade da conduta. Esta, por sua vez, juntamente da culpabilidade e da antijuridicidade compõe o crime, logo, não se vislumbrando a tipicidade da conduta, inconcebível se mostra a homologação do flagrante.

EX POSITIS:

Por não se encontrarem satisfeitos os requisitos necessários à homologação do flagrante, RELAXO A PRISÃO do autuado Julio Cesar das Neves (art.5º, LXV, da CF).

Expeça-se o r. alvará de soltura, se por al não estiver preso.

I-se o Ministério Público.

Requisite-se à autoridade policial o encaminhamento de fotocópia do documento de identificação do autuado ou, alternativamente, que proceda à identificação criminal pelo processo datiloscópico e fotográfico, nos termos da Lei nº. 12.037/09, no prazo de 5 dias (art. 5º). Dê-se ciência ao Delegado Regional.

No mais, aguardem-se as demais peças do auto ou o decurso do prazo para encaminhamento, quando deverá ser aberta vista ao Ministério Público.


Joinville (SC), 17 de fevereiro de 2010.


João Marcos Buch

Juiz de Direito