DECISÃO LIMINAR - Nulidade por ausência de consulta a comunidade tradicional - MT

Número: 0002490-32.2016.4.01.3601

 

Classe: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL

Órgão julgador: 1ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Cáceres-MT

Última distribuição : 02/08/2016

Valor da causa: R$ 100.000,00

Processo referência: 0002490-32.2016.4.01.3601

Assuntos: Dano Ambiental, Revogação/Concessão de Licença Ambiental

Objeto do processo: 1200000007652008-67

Segredo de justiça? NÃO

Justiça gratuita? NÃO

Pedido de liminar ou antecipação de tutela? NÃO

 

Partes

Procurador/Terceiro vinculado

Ministério Público Federal (Procuradoria) (AUTOR)

UNIÃO FEDERAL (REU)

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES (REU)

AGENCIA NACIONAL DE ENERGIA ELETRICA - ANEEL (REU)

PROSPECTO PARTICIPACOES E NEGOCIOS LTDA (REU)

OSWALDO PEREIRA CARDOSO FILHO (ADVOGADO)

Ministério Público Federal (Procuradoria) (FISCAL DA LEI)

Documentos

Id.

Data da Assinatura

Documento

Tipo

37315

1876

15/03/2021 10:57

Sentença Tipo A

Sentença Tipo A

 

 

SENTENÇA TIPO "A"

PROCESSO: 0002490-32.2016.4.01.3601 CLASSE: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL (65)

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (PROCURADORIA)

RÉU: UNIÃO FEDERAL, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, AGENCIA NACIONAL DE ENERGIA ELETRICA - ANEEL, PROSPECTO PARTICIPACOES E NEGOCIOS LTDA

Advogado do(a) RÉU: OSWALDO PEREIRA CARDOSO FILHO - MT5705/O

SENTENÇA (TIPO A) I

Cuida-se de ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), em face de União Federal (UF), Fundação Cultural Palmares (FCP), Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), e Prospecto Participações e Negócios Ltda.

 

O MPF sustenta, em sua petição inicial, que a ANEEL homologou estudos de Inventário Elétrico de uma Pequena Central Elétrica (PCH) dentro da bacia hidrográfica do Rio Jauquara (Estado do Mato Grosso); e que tal ato administrativo possui os seguintes vícios legais: i) não-conformidade à Convenção/OIT/ n. 169; ii) não-conformidade ao determinado pelo Manual de Inventário Hidrelétrico, sobretudo no que tange ao estudo sobre as comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas); iii) que o Despacho/ANEEL/n. 52/2016 indica que os estudos realizadas estavam em conformidade ao quanto disposto no Manual de Inventário Elétrico; iv) ANEEL informou ao MPF, em oportunidades diversas, sobre a conformidade ao referido Manual de Inventário Elétrico; e que, por isso, ele se aplica às PCH (unidades de produção elétrica de potencialmente reduzido).

Em contrapartida, os requeridos apresentam os seguintes argumentos: i) que o estudo é apenas uma etapa de identificação dos potenciais hidráulicos; ii) que os estudos referentes às comunidades tradicionais devem ser realizados perante a agência ambiental responsável pelo procedimento de licenciamento ambiental; iii) que a aplicação do Manual de Inventário Elétrico não se integralmente, quando se está a falar de PCH's; iv) que os licenciamentos ambientais serão realizados na fase do projeto básico; v) que no estudo de inventário somente existe mapeamento dos potenciais elétricos; vi) impossibilidade de controle do mérito do ato administrativo; vii) somente se aplica a Convenção/OIT/n. 169 quando a construção de uma obra de engenharia civil ocorrer dentro do perímetro da terra indígena.

As partes apresentaram razões finais repisando tais argumentos. Feitas tais considerações, passo ao julgamento de mérito.

II

As comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, são sujeito de direito; melhor dizendo, macrosujeitos de direitos.

Vejamos. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 3, diz que: “toda pessoa tem o direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”. Isso quer dizer que as organizações estatais estão obrigadas a reconhecer a personalidade jurídica dos seres humanos e, igualmente, proibidas de agir em sentido contrário. Em síntese, todo pessoa é um sujeito de direitos.

Parece ser uma afirmação básica. Mas não é. No plano da história do direito, sabe-se que o não-reconhecimento da personalidade jurídica de determino grupo de pessoas (judeus, por exemplo) foi uma das armas utilizada pelo regime nazifascista Alemão. Esse regime político retirou a personalidade jurídica das pessoas que faziam parte desse citado grupo, pois, com isso, não mais havida possibilidade de tutela jurídica.

Assim, criou-se as condições necessárias para que os mais diversos atos de violência (confisco de propriedades, destruição de suas vidas, e aniquilamento da liberdade individual) estivessem em conformidade ao ordenamento jurídico do Estado Fascista Alemão.

Em síntese, a retirada da personalidade jurídica de sujeitos que faziam parte de um grupo determinado (judeus), foi o  que permitiu a objetivação (reificação) desse largo grupo de humanos.

Vale dizer, contudo, que tais fatos ocorrem no espaço geográfico europeu. A história do continente americano é um pouco diversa.

Com efeito, o espaço geográfico americano conhece sua própria versão de reificação (objetificação) de seres humanos, qual seja, a ampla escravidão indígena e africana que marcou nosso continente.

O regime escravista serviu de base à construção das forças produtivas, de formas de intercâmbio, e de relações sociais que se constituíram no novo mundo. De modo que, esse regime tinha aspectos econômicos (trabalho compulsório), culturais (preconceito, discriminação, violência, opressão e sadismo nas relações sociais), políticos (alijamento da participação na formação da ordem jurídica), e jurídicos (negação de direitos fundamentais e a operação de um mercado de seres humanos); cujos efeitos não são facilmente superados.

Isso significa dizer que que a questão do reconhecimento da personalidade jurídica de toda a pessoa, neste espaço geográfico, está intimamente ligada a nossas questões históricas e, pois, visa combater o deletério legado que o regime escravista deixou nas sociedades americanas (do norte ao sul).

Muito bem, a sociedade brasileira tem um longo passado escravista (indígena e africano), cujo legado está presente nos campos econômico, cultural, político, e jurídico.

Ensina José Afonso da Silva1: “O certo é que a Constituição do Império não regulou a escravidão. Não há nela, em lugar algum, um dispositivo que fale em escravidão, nem em escravos, nem mesmo em elemento servil – fórmula translata com que os escrupulosos ou os cínicos se referiam à escravidão. Tiveram por constitucional a escravidão a partir da interpretação de dois dispositivos. O primeiro, o inciso I do art. 6º, que estatuía que eram cidadãos brasileiros   os que no Brasil tivessem nascido, que fossem ingênuos ou libertos. Em primeiro lugar, “cidadão”, no art. 6º da Constituição do Império, significava “nacional”. Isso fica claro quando se compara essa disposição com a do art. 7º, que se diz que perde os direitos de cidadão brasileiro o que naturalizar-se em País estrangeiro (ou seja, perde a nacionalidade brasileira...). E com a do inciso I do art. 91, que declarava terem votos na eleições primárias os cidadãos brasileiros que estão no gozo de seus direitos políticos; vale dizer: eram eleitores nessas eleições os brasileiros (os nacionais) no gozo de seus direitos políticos. Nesse sentido tem-se que entender também a palavra “cidadão”, constante do inciso I do art. 179: “Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar alguma coisa, senão em virtude da lei”. No entanto, é desse dispositivo combinado com aquele outro que os escravocratas tiraram a ideia de que a Constituição admitia a escravidão, sob a alegação de que o escravo não era cidadão e, por isso, poderia ser obrigado ao trabalho forçado (gn)”.

Da leitura desse trecho, verifica-se, de forma lúcida, que a prática jurídico-política no Brasil Imperial se assentou em   uma contradição atroz, qual seja, a adoção do constitucionalismo (divisão de poderes, direitos fundamentais, e sufrágio restrito) e a manutenção do sistema escravocrata (que, por cento, é o antípoda de qualquer concepção de liberdade individual).

Como se sabe, o constitucionalismo moderno está assentado em concepção de filosofia política chamada contratualismo. Essa corrente de pensamento é geralmente utilizada para explicar a modernidade ocidental, isto é, o conjunto de concepções culturais que ressaltaram a importância da ciência e do pensamento racional, de liberdade individual nos mais diversos campos, do afastamento da religião da esfera pública, e, no campo jurídico-político, a consagração do constitucionalismo, da divisão de funções estatais, de direitos fundamentais, e do sufrágio popular.

À vista disso, não é necessário muito esforço para se reconhecer que a sociedade brasileira adotou as concepções culturais da modernidade ocidental para, apenas, parte de sua população, ou seja, para os escravocratas. Enquanto  que, para o restante da população restou a ausência de reconhecimento de sua personalidade jurídica e a situação de serem objetos de direitos, instrumentos de ganho e sadismos de toda sorte por parte dos escravocratas ilustrados.

Segue-se que, embora a economia brasileira, desde o início, tenha se inserido no mercado mundial, desse modo fazendo parte da modernidade econômica; por outro lado, a sociedade brasileira adaptou parte da modernidade cultural  e política para parte da população (geralmente proprietários), sendo que para o restante (não proprietários) ele é constantemente negada.

Os diversos casos violações de direitos humanos, que foram praticados no seio da sociedade brasileira, estão relacionados ao nosso processo de modernização econômica acompanha pela negação da modernidade política.

Ora, ditaduras são negações de democracias políticas, violência policial é a negação de direitos individuais, e assim por diante. Em suma, a sociedade brasileira é caracterizada por uma espécie de modernização conservadora, na qual, escravocratas se transformaram em burgueses, escravos em proletários, estamentos em classes políticas, um estado absoluto em estado de direito; e tudo isso, sem se varrer revolucionariamente a antiga formas de relacionamento social.

Logo, como nossa história é marcado pela apropriação da modernidade ocidental e adaptação a formas sociais marcadas pelo despotismo e escravidão, sem destruição e superação dos antigos modos de ser, o fato é que o risco da negação da modernidade política é sempre presente.

Como consequência, temos que concepções autocráticas de poder político não são antagônicas ao regime de democrático formal; mas sim são sempre uma sombra a nos atormentar e ameaçar, tal como ressaltam André Botelho & Antonio Brasil Jr no prefácio da obra Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes2: Por isso, Florestan forja a ideia de “autocracia” para interpretar o fenômeno da persistência de um princípio ordenador radicalmente antidemocrático mais geral do Estado, da sociedade e do mercado até mesmo em momentos formal ou abertamente democráticos. A relação da autocracia com a democracia não é de oposição, mas precisamente, parafraseando a imagem de Gabriel Gohn, “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês”.

Logo, a correta interpretação e aplicação do art. 3º da Convenção Americana de Direitos Humanos deve levar em consideração que a modernidade ocidental da sociedade brasileira é marcada, em sua origem, pelo não reconhecimento de personalidade para grande parte da população brasileira e pelo risco constante de negação da modernidade ocidental, em seu aspecto político, isto é, da participação política de cidadãos e grupos na formação da vontade estatal  e, pois, na formação da ordem jurídica.

Os precedentes da Corte IDH trabalham, a meu ver, muito bem com a problemática da modernidade dos países latino americanos, notadamente a permanência do autoritarismo político e a continua negação do reconhecimento de direitos fundamentais para parte da população, isto é, aquela que se situa fora do círculo de poder autocrático.

Com efeito. Trago a colação de precedentes da Corte IDH sobre grave violações de direitos humanos que infligiram comunidades indígenas, em especial: i) Pueblos Kalinã e Lokono vs Suriname e ii) Pueblo Saramaka vs. Suriname.

Vale ressaltar que o contexto fático dessas violações é justamente o da construção de obras de engenharia necessárias ao crescimento econômico dos países envolvidos. Segue-se que esses precedentes reconhecem a personalidade jurídicas das comunidades tradicionais e, assim, direitos básicos das comunidades. E tudo isso, levando em consideração a peculiaridade de suas formas coletivas de expressão social.

Nesses julgados, a CorteIDH reconheceu que as comunidades indígenas são sujeitos coletivos de direitos; que possuem direito de propriedade coletiva sobre suas terras tradicionais; e o direito de usá-las coletivamente na forma de suas tradições e expressões coletivas.

Digo mais. Os julgados referentes às comunidades indígenas, devem ser aplicados naturalmente às comunidades quilombolas. E por um simples motivo: embora estejamos a falar de etnias diversas (indígenas e africanos), o fato é que tais povos passaram pelo mesmo processo social, qual seja, figuraram como serem humanos objetivados dentro de uma sociedade de conquista, na qual, os conquistadores extraiam sua riqueza pela exploração de largos contingentes populacionais.

 

Daí que é de se reconhecer que os conteúdos básicos da modernidade política ocidental (direitos fundamentais, contratualismo, e o direito de participação política), quando aplicados ao espaço geográfico americano envolvem, de forma necessária, o reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades tradicionais (e todos os direitos correspondentes).

Segue-se que o reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades tradicionais tem por conteúdo o direito de participação política das comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) nos processos estatais que podem interferir em seus interesses materiais e imateriais, notadamente no que tange ao seu direito de propriedade coletiva e de personalidade coletiva (isto é, direito de se expressar sua cultura tradicional).

Nesse contexto temos a Convenção/OIT/n. 169. O texto do citado tratado de direitos humanos garante que as comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas) sejam consultadas sobre empreendimentos que afetem  diretamente suas comunidades e modos de vida. Todos os processos estatais de tomada de decisão devem contar com a participação das comunidades, sendo certo que a não-conformidade acarreta a invalidade jurídica de tais processos estatais.

 

O direito de participação política (direito de consulta) é, pois, uma condição de validade aos processos estatais que podem trazer prejuízo para as comunidades tradicionais. Vale elucidar que o termo “político” não deve ser entendido em sua concepção estrita, quer dizer, concorrência entre partidos políticos que objetivam alcançar mandatos temporários; mas sim em seu sentido mais largo, isto é, de administração e tomada de decisão em assuntos que cuidam de interesses próprios e conflitantes.

 

Feitas tais considerações sobre a base normativa de direitos humanos que vincula o Estado Brasileiro, tenho  que o processo administrativo 48500.005300/2019-17 (cujo trâmite se deu na ANEEL), que tem por objeto o Estudo do Inventário Hidroenergético do Rio Jauquara (MT), e que resultou na promulgação do Despacho n. 52/2016 não tem validade jurídica.

 

Primeiro, da leitura do Estudo de Inventário Hidroenergético do Rio Jauquara (MT), observo que não se trata de uma um estudo meramente descritivo acera dos potenciais de energia elétrica da bacia hidrográfica do Rio Jauquara; mais sim um estudo do potencial elétrico que elegeu um determinado local (dentre 11 possíveis) para a instalação da PHC (pequena usina hidroelétrica). Quer dizer, existia uma tomada de decisão sobre o local de instalação da PCH, a qual, foi homologada administrativamente pela ANEEL.

 

Melhor elucidando a questão. No que tange aos procedimentos da ANEEL verifica-se a duplicidade de procedimentos  em relação: i) Usinas Hidroelétricas de grande e médico porte e ii) Usina Hidroelétricas de pequeno porte.

O procedimento referente à “UHE de grande porte” segue cinco fases: i) estimativa de potencial elétrico; ii) inventário hidroelétrico; iii) viabilidade; iv) Projeto Básico; v) Avaliação Ambiental Integrada da Alternativa Selecionada.

Da leitura o Manual de Inventário Hidroelétrico (id 18 453 5348 e 18 453 5351) verifica-se que na etapa da viabilidade

 

(item iii) é que é escolhido o local onde será constituída a UHE, quer dizer, o local ótimo de exploração do potencial energético. E em relação ao qual é materializada o Projeto Básico e a Avaliação Integrada de Alternativa Selecionada.

 

Em conclusão, somente se pode compreender que a escolha do local ótimo de exploração do potencial energético (neste procedimento ocorrido na etapa de viabilidade – item iii) se reveste na qualidade de pedra de toque do procedimento, pois, feita tal escolha é que as demais peças técnicas são produzidas. Ou seja, a escolha do local ótimo de exploração do potencial energético é determinante em relação às demais peças técnicas.

 

Por sua vez o procedimento para “UHE de pequeno porte” é dividido em 03 partes: i) Inventário Hidroelétrico; ii) Projeto Básico; iii) Projeto Executivo.

A tese defensiva apresentada quer fazer crer que o Inventário Hidroelétrico traduz uma peça objetiva, que somente faz um estudo descritivo acerca dos potenciais hidroenergéticos do Rio Jauquara, no Estado do Mato Grosso; circunstância essa que justificaria o alijamento do direito de participação (direito de consulta) das comunidades tradicionais quilombolas envolvidas.

Contudo, isso não é verdade.

 

O Inventário Hidroelétrico não traduz uma peça descritiva, na qual, existe apenas o estudo dos potenciais elétricos.  Na citada etapa, existe uma tomada de decisão. Vejamos.

Do exame desta etapa do procedimento, verifica-se que a empresa requerida empreende estudo sobre os potenciais energéticos; vislumbra os locais onde a usina de hidroenergia pode ser construída; e então, utilizando-se de uma fórmula matemática, faz a escolha do local ótimo de construção da “PCH”.

Logo, sem dúvidas, que a etapa 1 (Inventário Hidroelétrico) do procedimento de construção da “usina de pequeno porte” é equivalente à etapa 3 do procedimento de construção das “usinas de grande e médio porto”; uma vez que existe uma tomada de decisão sobre o ponto ótimo de construção.

E como é calculado o ponto ótimo?

Da análise da função matemática utilizada; verifica-se, sem sombra de dúvidas, que o estudo socioambiental é um das variáveis utilizadas. Ou seja, a depender dos valores que a variável socioambiental assume, e mantidos os valores das demais variáveis (coeteris paribus), o ponto ótimo de escolha será definitivamente alterado.

Ocorre que na construção dos valores referentes à variável do impacto socioambiental, o procedimento revela que as comunidades quilombolas não tiveram qualquer tipo de participação; mas tão somente são representadas como objeto  do procedimento administrativo.

Com efeito.

As comunidades quilombolas são representadas, sobretudo na documentação apresentada pela empresa Prospecto Participações e Negócios Ltda, como um ponto de dificuldade. A esse respeito, temos as informações geradas no id 184 540 847 (p. 112), na qual, já é descrito um conflito entre a empresa e as comunidades quilombolas da área e no id 184 540 847 (p. 95), no qual, temos a descrição que os posseiros e quilombolas estavam se opondo à instalação de marcos topográficos (e outras atividades de engenharia civil).

E mais: durante o procedimento administrativo (que resultou na homologação do estudo de inventário hidroelétrico) o Ministério Público (Estadual e Federal) informou, por diversas vezes, para a ANEEL que os estudos estavam a atingir diversas comunidades quilombolas, a saber: Camarinha, Cãozinho, Baixius, Morro Redondo, Vaca Morta; contudo, sem qualquer alteração de postura por parte dos envolvidos.

No entanto, o fato é que a empresa Prospecto Participações e Negócios Ltda e a Agência de Energia Elética (ANEEL),

 

em nenhum momento do procedimento e a despeito de todos os protestos, realizaram esforços no sentido de informar  às comunidades sobre os estudos e, principalmente, colher informações revelantes sobre o modo de vida das comunidades; e com isso, gerar valores confiáveis a ser utilizados na variável do impacto socioambiental, para influir devidamente na escolha do local de construção da unidade de hidroenergia.

Por fim, deve-se ter em consideração que a escolha do ponto ótimo da construção da unidade de hidroenergia é determinante em relação aos Projetos Básico e Executivo; pelo singelo motivo de que é a partir da escolha do local de construção da usino de hidroenergia que as demais peças técnicas são materializadas.

Pois bem.

Em conclusão, tenho que na etapa do inventário elétrico no procedimento da construção da “pequena unidade de hidroenergia” é equivalente à etapa 3 do procedimento de construção das “grandes e medias unidades de hidroenegia”, uma vez que existe uma tomada de decisão sobre o local ótimo de construção da “PCH”; que como existe uma tomada de decisão sobre o local ótimo de construção da “PCH” não se trata de uma etapa meramente descritiva; que a tomada de decisão sobre o local de construção da unidade de hidroenergia é determinante na construção dos Projetos Básicos   e Executivos da “unidade do hidroenergia”; que na tomada de decisão os estudos socioambientais representam uma variável a influir na tomada de decisão sobre o ponto ótimo de construção da “PCH”; e que as comunidades quilombolas não tiveram oportunidades de participar da construção dos valores referentes a variável que lhes diz respeito, sendo assim alijadas do procedimento.

Sendo assim, penso que o procedimento adotado não estava em conformidade ao quanto disposto na Convenção/OIT/

n. 169, porque negou participação e possibilidade de influência na tomada de decisão pelas comunidades quilombolas; uma vez que o procedimento e, sobretudo, a construção dos valores referentes à variável do impacto socioambiental ocorre de forma unilateral.

Segundo, a requerida apresenta tese defensiva no sentido de que não existe influência direta da obra de infraestrutura em prejuízo das comunidades quilombolas, ao argumento de que o reservatório não está localizado dentro das terras quilombolas.

 

A meu ver cuida-se de um argumento falso. A ser levar em consideração, contatar-se-ia que o direito de participação   das comunidade indígenas somente poderia ser exigido, se e somente se, estivéssemos falando da construção de uma obra de infraestrutura dentro do perímetro geográfico de uma comunidade tradicional, independente da zona de influência da obra e suas consequências diretas sobre a comunidade tradicional. Desse modo, excluir-se-ia o direito de participação na hipótese de uma obra de infraestrutura construída fora do perímetro da comunidade tradicional (indígena ou quilombola); mas que tivesse o condão de destruir suas condições materiais e culturais de vida. Penso firmemente que essa não é a melhor linha de interpretação a respeito da Convenção/OIT/n. 169.

Ora bem, a multicitada Convenção/OIT/n. 169 estabelece em seus artigos 1º a 12 a política geral de direitos humanos,  no plano internacional, em relação às comunidades tradicionais. Existe, portanto, um bloco de conceitos, normas de conduta, normas de procedimentos, e instituições que foram positivadas e que, pois, devem ser respeitadas pelos agentes, públicos e privados, dos países signatários. Sendo assim, o art. 6º deve ser examinado de modo sistemático  em relação à política geral que foram fixada pela citado tratado de direitos humanos. Penso que esse é o único modo de se vislumbrar uma correta interpretação e aplicação de tais dispositivos.

Da leitura sistemática dos dispositivos, verifica-se que o tratado de direitos humanos positiva as seguintes diretrizes: i) considera que as comunidades tradicionais possuem cidadania (ou seja, possuem o direito de participar e influir na construção da ordem jurídica e nas decisões sobre seus interesses); ii) preconiza que as comunidades não podem ser objeto de discriminação, não podendo seus membros ter um nível de direito reduzido em relação aos demais membros  da sociedade envolvente; iii) preconiza que as comunidades têm o direito de decidir sobre seu próprio destino, ou seja, como se comportar diante da sociedade envolvente, quando seus interesses estiverem em jogo (vidas, crenças, bem- estar, instituições, propriedade e posse); iv) direito de consulta quando medidas legislativas e administrativas possa afetá-los diretamente.

 

Como vimos, a tese defensiva afirma que a obra não afeta diretamente as comunidades quilombolas. Da leitura dos autos, verifica-se que a construção de usina pode afetar diretamente as condições de vida da comunidade, notadamente seu modo de vida; uma vez que, como ribeirinhos, eles depende do atual regime da bacia hidrográfica (e da exploração da fauna aquática), para manter seu sustento. De modo que, uma alteração radical em tais condições pode resultar na destruição do modo de vida da comunidade e, também, em deslocamento forçado.

Como se trata de uma obra de hidroenergia, com potencialidade de afetar o regime hídrico (e a fauna aquática da região) do Rio Jauquara, é autorizado concluir que referida obra de infraestrutura tem o condão de afetar diretamente as condições de vida e existência das comunidades tradicionais indicadas ao longo desta sentença.

Assim, torna-se legalmente exigível sua participação no processo de inventário hidroelétrico, nos termos da Conveção/OIT/n. 169.

Terceiro, existe nos autos discussão sobre se as determinações do Manuel serial integralmente aplicáveis às construções de “Usinas de Pequeno Porte” - PCH's. Esse é o ponto, aliás, ressaltado pela requerida Prospecto Participações & Negócio Ltda.

 

Contudo, conforme negritado pelo órgão ministerial, a ANEEL em várias oportunidades informou ao MPF que as determinações do citado Manual eram utilizadas nos procedimentos administrativos referentes à construção de PCH's, conforme informa o Inquérito Civil do Ministério Público Federal juntado aos autos.

Logo, a meu ver, deve-se aplicar ao caso o postulado da boa-fé objetiva. Esse postulado jurídico preconiza que as relações jurídicas devem ser pautadas pelo princípio da segurança jurídica, em seus mais diversos níveis.

Assim, promessas e expectativas criadas entre as partes seriam objeto de tutela jurídica (princípio da confiança); comportamentos contraditórios seriam vedados pelo direito; como também seria vedado auferir benefícios tendo por  base um ato ilegal ou que causa prejuízo indevido à terceira pessoa (isto é, se beneficiar da própria torpeza).

Segue-se que, diante das informações prestadas pela própria ANEEL, a análise do caso deve ocorrer com base das determinações do Manual de Inventário Elétrico, ainda que flexibilizações possam ser admitidas diante da alteração do objeto (Usinas de Pequeno Porte).

Bem, da leitura do mencionado manual constata-se a necessidade de um estudo socioambiental enquanto etapa necessário ao procedimento de construção de uma usina hidroelétrica e, pois, como condição de validade jurídica.

A ser assim, a tese defensiva apresentada no sentido de que estudos desse matiz somente devem ser realizados quanto do procedimento de licenciamento ambiental (e perante as agências ambientais) não está em conformidade com a própria prática da agência de energia elétrica.

Portanto, o argumento defensivo vai de encontro ao postulado da boa-fé objetiva, notadamente no subcampo da vedação do comportamento contraditório.

Quarto, os requeridos argumentam que a pretensão ministerial deve ser rechaçada pelo Poder Judiciário, porque representa um indevido controle judicial sobre o mérito do ato administrativo.

 

O argumento deve ser rejeitado. Na doutrina do Estado Moderno as funções estatais são divididas em 03 (legislativo, executivo, e judiciário) e, sendo certo que, cabe ao legislativo a elaboração das atos legislativos (normas jurídicas gerais), e cabe ao executivo e ao judiciário a adoção de normas jurídicas individuais (decisões administrativa e judiciais), bem como a execução daquelas.

Segue-se que o papel do Executivo, que em princípio seria somente de execução de normas, vem se alterando ao longo do tempo. É de se reconhecer que o Executivo atua na construção de decisões políticas (normas gerais), bem como na construção de decisões individuais (normas individuais) que, em muito, não tem relação com a aplicação neutra de normas gerais; mas que possuem um componente político importante. E a respeito desse componente político é que a doutrina, ou parte dela, entender ser impossível de revisão (judicial review) pelo Poder Judicial.

 

Pois bem, no caso concreto penso que não estamos diante de reexame do mérito do ato administrativo; mas sim diante do reexame do procedimento legal adotado. O que foi apontado no corpo desta sentença foi o desrespeito ao direito de participação e consulta das comunidades tradicionais, nos termos da Convenção/OIT/n. 169. Segue-se que, em nenhum momento, foi realizado juízo de valor sobre a conveniência/inconveniência sobre a construção de usina de hidroenergia no Rio Jauquara; mas sim, juízo sobre a necessidade de consulta da comunidade e invalidade do procedimento por conta da ausência de tal procedimento.

Logo, é autorizado concluir que as argumentações e conclusões desta sentença, em nenhum momento, entraram no componente político da decisão administrativa; mas, tão somente, se mantiveram no exame da legalidade de procedimento e de lesão aos direitos coletivos das comunidades tradicionais. Ou seja, a decisão adotou “razões jurídicas” como premissas para suas conclusões (e não “razões políticas”).

Sendo assim, o argumento defensivo deve ser rejeitado.

Em conclusão, entendo que o procedimento que levou à aprovação do Inventário Hidroelétrico materializado pela empresa Prospecto Participações & Negócios Ltda não tem validade jurídica.

MEDIDA CAUTELAR

A plausibilidade da pretensão ficou provada no curso desta sentença.

Com a publicação do Decreto/ANEEL/n.52/2016 existe risco de dano às comunidades tradicionais, uma vez que o ciclo de implantação da unidade de hidroenergia pode avançar para a materialização dos Projetos Básicos e Executivo. Sendo assim, torna-se necessário impedir tal ocorrência, até que os defeitos jurídicos apontados sejam devidamente saneados pelas partes envolvidas.

III DISPOSITIVO

Cáceres, data da assinatura.

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1SILVA, José Afonso da. O constitucionalista brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores. Pag, 171

2FLORESTAN, Fernandes. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora ContraCorrente. Pag. 11

 

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Segue a decisão na íntegra: DECISÃO_Nulidade_por_ausência_de_consulta_a_comunidade_tradicional_MT.pdf