DECISÃO - TST condena empresa por racismo devido a estética padrão - Brasília

Jurisprudência: TST condena empresa por racismo devido a estética padrão

A C Ó R D Ã O

(2ª Turma)

I – AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Demonstrada possível violação dos arts. 186 e 927 do Código Civil, impõe-se o provimento do agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista . Agravo de instrumento provido .

II – RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL . Consoante se infere do acórdão do Tribunal Regional, a reclamada possui um guia de padronização visual para seus empregados, no qual não constam fotos de nenhum que represente a raça negra. Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada exclusivamente na cor da pele, raça, nacionalidade ou origem étnica pode ser considerada discriminação racial. No caso, a falta de diversidade racial no guia de padronização visual da reclamada é uma forma de discriminação, ainda que indireta, que tem o condão de ferir a dignidade humana e a integridade psíquica dos empregados da raça negra, como no caso da reclamante, que não se sentem representados em seu ambiente laboral. Cumpre destacar que no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, toda a forma de discriminação deve ser combatida, notadamente aquela mais sutil de ser detectada em sua natureza, como a discriminação institucional ou estrutural, que ao invés de ser perpetrada por indivíduos, é praticada por instituições, sejam elas privadas ou públicas, de forma intencional ou não, com o poder de afetar negativamente determinado grupo racial. É o que se extrai do caso concreto em exame, quando o guia de padronização visual adotado pela reclamada, ainda que de forma não intencional, deixa de contemplar pessoas da raça negra, tendo efeito negativo sobre os empregados de cor negra, razão pela qual a parte autora faz jus ao pagamento de indenização por danos morais, no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Recurso de revista conhecido e provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-1000390-03.2018.5.02.0046 , em que é Recorrente           e Recorrida                   .

A Vice-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região denegou seguimento ao recurso de revista interposto pela reclamante.

Inconformada, a reclamante interpõe agravo de instrumento, sustentando que seu recurso de revista tinha condições de prosperar.

Foram apresentadas contrarrazões e contraminuta .

Desnecessária a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho, consoante o art. 95, § 2.º, II, do RITST.

É o relatório.

V O T O

1 – TRANSCENDÊNCIA

Admite-se a transcendência social da causa, nos termos do art. 896-A, § 1.º, III, da CLT.

2 – CONHECIMENTO

Preenchidos os requisitos legais de admissibilidade, CONHEÇO do agravo de instrumento.

3 – MÉRITO

O recurso de revista da reclamante teve seu seguimento denegado pelo juízo primeiro de admissibilidade, aos seguintes fundamentos:

” PRESSUPOSTOS INTRÍNSECOS

RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR / INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL.

A E. Turma entendeu, com base no conjunto fático-probatório dos autos, que não houve comprovação da discriminação sofrida pela autora, apta a ensejar a reparação a título de danos morais.

Dessa forma, as razões recursais revelam a nítida intenção de revolver o conjunto fático-probatório apresentado, o que não se concebe em sede extraordinária de recurso de revista, a teor do disposto na Súmula 126, da Corte Superior.

Ficam afastadas, portanto, as violações apontadas, bem como o dissenso pretoriano.

DENEGO seguimento.

CONCLUSÃO

DENEGO seguimento ao recurso de revista.”

A reclamante alega que a discriminação ao empregado negro, com sua sujeição ao alisamento de seu cabelo ou preso, ofende ao princípio da igualdade. Aduz que o guia de padronização, documento institucional da reclamada, tem cunho discriminatório e sem qualquer representatividade. Assevera que o referido documento serviu para que fosse reiteradas vezes advertida, sofrendo atos discriminatórios em razão do uso do cabelo Black Power. Argumenta que o padrão visual preconizado no referido guia privilegia pessoas caucasianas. Sustenta que o Tribunal Regional chancelou a prática discriminatória da reclamada no que se refere à prática da empresa em intervir na forma como o empregado se expressa de algo que lhe é natural, não permitindo que fizesse uso de seu cabelo solto em razão de ser um cabelo crespo. Pugna pela condenação da reclamada ao pagamento de indenização por dano moral. Aponta violação dos arts. 3º, IV, 5º, XLI, da Constituição Federal; 1º da Lei 9.029/95; 1º, I e II, da Lei 12.288/2010; 186 e 927 do Código Civil.

O Tribunal Regional manteve a sentença que julgou improcedente o pedido de condenação da reclamada ao pagamento de indenização por dano moral em razão de discriminação racial. De acordo com a Corte de origem, a reclamante não produziu prova de que tenha sofrido discriminação.

Constou no acórdão recorrido:

“[…]

Demonstra a demandante, por meio de fotos, que os empregados de cabelo liso e comprido os utilizavam soltos, não sofrendo qualquer punição por isso, mesmo que estivessem fora dos padrões da empresa. Já a recorrente, a qual possuía cabelo ‘black power’ acima dos ombros, isto é, no padrão da demandada, era obrigada a utilizar tiara, sendo que constantemente a sua supervisora a chamava atenção acerca da maneira que usava seu cabelo.

[…]

O assédio moral é um processo de violência psicológica. Não é agressão gratuita, mas antes serve a algum propósito. O que importa verificar, em cada caso, é se a agressão é continuada, se é grave a ponto de causar perturbação na esfera psíquica daquele trabalhador em especial, se é discriminatória, ou seja, especificamente dirigida e concentrada naquele empregado, e se tem, por fim, algum propósito eticamente reprovável. Deve ser inequivocamente comprovada por quem alega, nos termos do art. 818, I da CLT e art. 373, I do CPC/2015. No presente caso, contudo, entendo que não restou demonstrada a discriminação alegada.

O guia de padronização da ré se coaduna com a postura que normalmente é exigida para estabelecimentos de saúde e é majoritariamente ilustrado com croquis. Não vislumbro qualquer conteúdo discriminatório, sendo que os cabelos crespos foram sim contemplados. Restou claro que todos os tipos de cabelos curtos poderiam ser usados soltos, desde que acompanhados de tiara. Logo, não era uma exigência dirigida à demandante.

O fato de não haver, no guia, fotos de pessoas negras não demonstra, por si só, discriminação. Embora a falta de representatividade seja uma questão importante e que deva ser enfrentada, não há como obrigar a empresa a alterar seus documentos internos por este motivo, eis que inexiste lei que determine que tais regramentos sejam ilustrados por todas as cores. Ademais, a autora não consta mais do quadro de funcionários da recorrida, não havendo, pois, direito individual a ser tutelado.

Outrossim, as fotos de colaboradores de cabelos lisos e compridos soltos também não demonstram discriminação. Isso porque, além de aparentar terem sido tiradas em momento de festa e descontração, tais colaboradores não se encontravam em atendimento a clientes. Também não há informação sobre se referidos empregados foram advertidos após o ocorrido. Fotos fora do contexto não possuem capacidade probatória.

Ainda, a alegação de que negras com cabelo estilo “black power” não poderiam trabalhar na recepção não se sustenta, caso contrário, a recorrente sequer teria sido contratada para tal função.

No que tange à apuração dos fatos pela ré é certo que a mesma somente veio a ter conhecimento das denúncias da autora após o desligamento desta, por meio de redes sociais. Não havia procedimento administrativo em aberto, já que este logicamente dependia de iniciativa da vítima ou de denúncia de terceiros. Sem informações sobre o ocorrido, não havia mesmo como a empregadora apurar os fatos e resolver o problema.

Ademais, a recorrente não produziu quaisquer provas orais que pudessem comprovar a sua narrativa, quais sejam, as ameaças de seus superiores hierárquicos e, ainda, a discriminação sofrida. Assim, não obstante a extensa argumentação da recorrente, o conjunto fático probatório não foi suficiente para comprovar a alegação de assédio moral.

Por tais motivos, desprovejo.”

No atual momento histórico dos direitos humanos, o princípio da não discriminação, ganha especial proteção, tanto no plano internacional quanto no plano interno brasileiro.

No plano internacional, como fonte costumeira de Direito Internacional, com força vinculante, temos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), que dispõe, em seu artigo 2º:

“Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma , nomeadamente de raça , de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.”

Ainda no plano da ONU, datada do ano de 1965, temos a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que, em seu artigo 1º , conceitua discriminação racial como:

“Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública.”

Tal convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto Presidencial 65.810/1969.

Ainda no plano internacional, como parte integrante das Nações Unidas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) atua na defesa dos princípios e direitos fundamentais no trabalho, tendo combatido a discriminação em matéria de emprego e ocupação.

No âmbito da OIT, destaca-se a Convenção 111, que também, em seu artigo 1º, conceitua discriminação como:

“a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão;”

No plano interno brasileiro, o princípio da não discriminação encontra fundamento inicial na Constituição Federal, ao prever:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

[…]

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”

No âmbito infraconstitucional, a Lei 9.029/95 proíbe a adoção de práticas discriminatórias, seja para efeitos admissionais ou para permanência no emprego. Dispõe o art. 1º:

“É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.”

De outra parte, o Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei 12.288/2010, tem como objetivo garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica (art. 1º), considerando como discriminação racial:

“Toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;” (art. 1º, I)

Pois bem, fixado o arcabouço jurídico de proteção da igualdade racial, passa-se ao exame do caso concreto.

Consoante se infere do acórdão do Tribunal Regional, a reclamada possui um guia de padronização visual para seus empregados, no qual não constam fotos de nenhum que represente a raça negra.

Como visto acima, qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada exclusivamente na cor da pele, raça, nacionalidade ou origem étnica pode ser considerada discriminação racial.

No caso, a falta de diversidade racial no guia de padronização visual da reclamada é uma forma de discriminação, ainda que indireta, que tem o condão de ferir a dignidade humana e a integridade psíquica dos empregados da raça negra, como no caso da reclamante, que não se sentem representados em seu ambiente laboral.

Cumpre destacar que no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, toda a forma de discriminação deve ser combatida, notadamente aquela mais sutil de ser detectada em sua natureza, como a discriminação institucional ou estrutural, que ao invés de ser perpetrada por indivíduos, é praticada por instituições, sejam elas privadas ou públicas, de forma intencional ou não, com o poder de afetar negativamente determinado grupo racial.

É o que se extrai do caso concreto em exame, quando o guia de padronização visual adotado pela reclamada, ainda que de forma não intencional, deixa de contemplar pessoas da raça negra, tendo efeito negativo sobre os empregados de cor negra, razão pela qual a parte autora faz jus ao pagamento de indenização por danos morais.

Considerando a realidade econômica das partes, o grau de dano, a culpa da reclamada, conclui-se que o valor da indenização por danos morais, no importe de R$ 10.000,00 é adequado, por atender ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade.

Assim, por possível violação do arts. 186 e 927 do Código Civil, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista, a reautuação dos autos e a intimação das partes e dos interessados para seu julgamento, nos termos dos arts. 935 do CPC e 122 do RITST.

II – RECURSO DE REVISTA

1 – CONHECIMENTO

Satisfeitos os pressupostos extrínsecos de admissibilidade, passa-se ao exame dos pressupostos intrínsecos do recurso de revista.

1.1 – DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL

Consoante os fundamentos lançados quando do exame do agravo de instrumento e aqui reiterados, CONHEÇO do recurso de revista por violação dos arts. 186 e 927 do Código Civil.

2 – MÉRITO

2.1 – DISCRIMINAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL

Conhecido por violação dos arts. 186 e 927 do Código Civil, DOU PROVIMENTO ao recurso de revista para julgar procedente a reclamação trabalhista, condenando a reclamada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Invertidos os ônus da sucumbência, custas a cargo da reclamada no importe de R$ 200,00. Honorários advocatícios no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, nos termos do art. 791-A da CLT.

ISTO POSTO

ACORDAM os Ministros da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, I) por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, por possível violação dos arts. 186 e 927 do Código Civil, determinando o processamento do recurso de revista, a reautuação dos autos e a intimação das partes e dos interessados para seu julgamento, nos termos dos arts. 935 do CPC e 122 do RITST; II) por maioria, conhecer do recurso de revista, por violação dos arts. 186 e 927 do Código Civil, e, no mérito, dar-lhe provimento para julgar procedente a reclamação trabalhista, condenando a reclamada ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Invertidos os ônus da sucumbência, custas a cargo da reclamada no importe de R$ 200,00. Honorários advocatícios no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, nos termos do art. 791-A da CLT. Vencido o Exmo. Ministro José Roberto Freire Pimenta que não conhecia do recurso.

Brasília, 11 de novembro de 2020.

Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001)

DELAÍDE MIRANDA ARANTES

Ministra Relatora