Poder Judiciário Federal - Justiça do Trabalho - 4ª Vara de Joinville - Fumódromo

PODER JUDICIÁRIO FEDERAL
JUSTIÇA DO TRABALHO
4ª VARA DE JOINVILLE

AT 1424-2007-030-12-00-2

No dia 13 de dezembro de 2007, às 16h, na sala de audiências da 4ª VARA DO TRABALHO DE JOINVILLE, por ordem da Ex.ma Juíza do Trabalho ÂNGELA MARIA KONRATH, foram apregoadas as partes: SINDICATO DOS TRABALHADORES METALÚRGICOS, NA FUNDIÇÃO, NA SIDERURGIA E NA INDÚSTRIA DO MATERIAL ELÉTRICO DE JOINVILLE, autor, e WETZEL ALUMÍNIO S/A e WETZEL FERRO S/A (02), ré. Ausentes as partes.

S E N T E N Ç A

SINDICATO DOS TRABALHADORES METALÚRGICOS, NA FUNDIÇÃO, NA SIDERURGIA E NA INDÚSTRIA DO MATERIAL ELÉTRICO DE JOINVILLE ajuíza, em 09-04-2007, ação trabalhista em face de WETZEL ALUMÍNIO S/A e WETZEL FERRO S/A (02). Atribui à causa o valor de R$ 700,00.

Se insurge o Sindicato contra a proibição de fumo no parque fabril da empresa e eliminação dos fumódromos até então existentes. Relata que em novembro de 2006 a WETZEL, contrariando os usos e costumes até então vigentes, proibiu o fumo nas dependências da empresa, marginalizando os fumantes, frustrando o direto deles à liberdade de escolha e impedindo a livre manifestação da vontade e tomada de decisão dos empregados fumantes, sob o artifício de implantar política de prevenção ao tabagismo. Anota que o consumo e comercialização de fumo são liberados no Brasil e no mundo. Salienta que os programas de controle ao tabagismo não têm como objetivo perseguir ou pressionar os fumantes, mas antes reconhecem a necessidade de apoio e compreensão para solucionar a dependência das pessoas à nicotina. Invoca os arts. 3º, IV, e 5º, II, da CRFB, a Lei n. 9.294/96 e o Decreto n. 2.018/96. Defende a necessidade de delimitação de um local para os fumantes, de modo a não importunar os não-fumantes, com identificação das áreas de fumódromo, sinalizadas com adesivos e informações contínuas sobre os malefícios do cigarro. Requer a delimitação de área especial para os empregados fumantes, e a permissão de fumo, neste local, nos intervalos de descanso. Também requer os benefícios da justiça gratuita.

A ré apresenta contestação escrita. Impugna o valor atribuído à causa. Argúi impossibilidade do exercício do direito de defesa e carência de ação, por ilegitimidade ativa do Sindicato e falta de interesse processual. No mérito, argumenta que implantou o programa de controle ao tabagismo, conforme projeto elaborado em parceria com a Secretaria da Saúde, que objetiva transformar a planta fabril livre de tabaco. Registra que o representação formulada pelo Sindicato, perante o Ministério Público do Trabalho, com o mesmo objetivo desta ação, foi arquivada administrativamente. Esclarece que não proibiu seus empregados de fumarem, mas apenas não mais permitiu o uso de tabaco em suas dependências, seguindo o programa oficial do Ministério da Saúde, que prevê a extinção dos fumódromos na empresa. Destaca que custeou e ofereceu, aos empregados que desejaram parar de fumar, tratamento psicológico e médico, inclusive arcando com 50% do custo dos medicamentos. Sustenta que sua preocupação é com a saúde dos empregados. Acrescenta que o direito de propriedade lhe assegura definir o uso ou não de fumo em suas dependências. Questiona o benefício da justiça gratuita requerido pelo Sindicato. Requer a improcedência dos pedidos.

Retificado o valor da causa para R$ 16.000,00 (f. 81).

Parecer do MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (f. 388).

Manifestações das partes.

Produzida prova oral.

Realizada inspeção judicial e processo de esclarecimento e consulta aos trabalhadores das três unidades fabris da empresa, nos três turnos de trabalho.

Sem outras provas, foi encerrada a instrução processual. Razões finais escritas. Propostas conciliatórias infrutíferas.

DECIDO:

INÉPCIA DA INICIAL

A pretensão do Sindicato, de delimitação de área para os fumantes e permissão de fumo, nesse local, nos intervalos para descanso, é clara e precisa, possibilitando o exercício do direito de defesa exaustiva de mérito. Os fatos estão narrados em seqüência lógica, enunciando pedidos admitidos e não vedados pelo ordenamento jurídico, sem qualquer incompatibilidade. Viabilizada a ampla defesa e o contraditório (CRFB 5º LV). Rejeito.

CARÊNCIA DE AÇÃO

As condições da ação são analisadas com base nos fatos alegados na petição inicial (CPC 267 VI), donde se verifica que há pertinência subjetiva da lide em relação às partes, necessidade e utilidade da pretensão (interesse), e inexistência de vedação no ordenamento jurídico dos direitos postulados (possibilidade jurídica do pedido).

A legitimidade ativa do Sindicato decorre da qualidade de substituto processual (CRFB 8º), ampla e irrestrita, e da natureza coletiva dos direitos relativos às liberdades individuais dos trabalhadores no ambiente de trabalho. Rejeito.

FUMÓDROMO

A WETZEL implantou o Programa de Controle do Tabagismo, elaborado e coordenado pelo Ministério da Saúde, que prevê, em fase pontual, a eliminação do fumo em todo o parque fabril.

A questão posta em debate é essa: os fumantes têm o direito a um espaço específico, dentro do parque fabril, para fumarem? Ou deve prevalecer a orientação da Organização Mundial de Saúde de proibição, por completo, do fumo nas dependências das empresas privadas e órgãos governamentais?

Responder essa questão implica pensar acerca dos limites da ação inibitória da saúde pública sobre os fumantes, o controle das vontades e comportamentos pelos sistemas de poder público e privado, e, especialmente, o que se almeja, coletivamente, eleger como parâmetros adequados à necessidade mundial de contenção do consumo de cigarros.

Fumar dá prazer. Vicia tanto quanto a cocaína. E mata aos pouquinhos. O fumo é apontado como a maior causa de mortes evitáveis na história da humanidade. O cigarro matou mais do que todas as guerras, somadas, no século XX, fazendo 100 milhões de vítimas. No Brasil, matou mais que a AIDS, que os acidentes de trânsito e que o consumo de álcool e drogas. Matou o dobro dos casos de homicídio.

O fumódromo, nas empresas que implantaram o Programa de Controle do Tabagismo, com prestação de assistência médica e psicológica, e fornecimento de medicamentos, tal qual se dá na WETZEL, é visto, pela saúde pública, como prejudicial ao êxito do Programa, por facilitar o acesso ao cigarro a quem está tentando abandonar o vício.

Para os fumantes, o fumódromo é um local necessário à minimização dos efeitos das longas horas de abstinência, que ficam sem fumar durante o trabalho, já que o fumo é um vício, e a falta do cigarro provoca irritação e agitação da pessoa que depende das substâncias químicas do tabaco.

Os males trazidos pelo cigarro impuseram a discussão, no mundo inteiro, dos meios necessários a frear o consumo do fumo.

Por conta disso, no dia 29 de agosto de 2007, Dia Nacional de Combate ao Fumo, foi dado início, na WETZEL, por determinação desta magistrada, em nota pontuando os dados até aqui transcritos, a um processo de esclarecimento e consulta aos trabalhadores, com a discussão acerca dos limites de ação dos programas de controle do tabagismo quanto aos fumantes, no meio ambiente do trabalho.

LIMITES LEGAIS DE ATUAÇÃO INIBITÓRIA SOBRE OS FUMANTES

Fumar é permitido em nosso país.

O Brasil é o maior exportador e o segundo maior produtor de tabaco do mundo, e conta com 500 mil trabalhadores dedicados ao cultivo de fumo. Há cidades inteiras que têm suas economias dependentes do cultivo do tabaco, como, por exemplo, Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

Durante anos o cigarro foi associado à imagem de pessoas saudáveis, bem sucedidas, independentes e sensuais. Fumar era charmoso e libertador; era símbolo de força, vitalidade e poder. Nada se dizia sobre as substâncias viciantes, nem quanto aos danos à saúde do fumante.

O simbolismo do cigarro foi notavelmente descrito por MARIO CESAR CARVALHO, na edição O Cigarro, da série Folha Explica (Publifolha: São Paulo, 2001). Nesse pequeno grande livro o autor nos conta as fraudes e mentiras das indústrias do cigarro, os mecanismos de sedução das propagandas, a revelação científica dos males do fumo à saúde humana, as cruzadas contra o fumo e o futuro do cigarro. Também relata o estudo, encomendado pela Philip Morris, para demonstrar à República Checa a economia que representaria ao Estado, com saúde pública e pensões, a morte precoce de fumantes.

Atualmente se vive o reverso da medalha: a dependência química e os malefícios fatais causados pelo cigarro são conhecidos e demonstrados em campanhas contundentes de combate ao fumo; as indústrias de cigarro começam a responder, judicialmente, pelos danos causados à saúde dos fumantes e prejuízos decorrentes dos gastos com saúde pública; buscam-se alternativas de reestruturação da economia do cultivo de tabaco; a legislação passa a restringir o uso de produtos fumígenos, proibindo o fumo em recinto fechado coletivo, visando a proteção aos não-fumantes, quanto a exposição à fumaça do cigarro, bem como a redução do consumo com a restrição de venda aos menores e proibição de propagandas.

Na perspectiva de proteção aos não fumantes, a Lei n. 9.294/96 estabelece a proibição do uso de cigarros e outros produtos fumígenos em recinto coletivo, mas excetua, expressamente, as áreas destinadas a esse fim, isoladas e arejadas, indicando, dessa forma, a liberdade de fumar quando não atingida a esfera individual de outra pessoa.

O Decreto n. 2.018/96, ao regulamentar a Lei n. 9.294/96, exclui do conceito de recinto coletivo os locais abertos ou ao ar livre, ainda que cercados ou de qualquer forma limitados em seus contornos, conforme definições dos arts. 2º, 3º e 4º.

Os textos legais referidos indicam que a restrição ao uso de produtos fumígenos é restrita aos locais fechados de uso coletivo. A legislação citada é clara ao pontuar a possibilidade de fumo ao ar livre e, em ambientes fechados de uso coletivo, nos locais especificamente destinados a esse fim, os chamados fumódromos, e, ainda, nos gabinetes individuais de trabalho.

Poder-se-ia dizer, então, que o fumo ao ar livre é permitido, bem como nos fumódromos e em salas individuais de trabalho, não havendo razão para se restringir o direito dos fumantes darem vazão às suas vontades nesses locais.

Mas o consumo do tabaco apresenta dificuldades singulares que necessitam ser enfrentadas.

A NECESSIDADE MUNDIAL DE CONTENÇÃO DO CONSUMO DE TABACO E SEUS CONFLITOS

A tomada de consciência dos prejuízos causados pelo tabaco à saúde humana trouxe reflexos mais amplos, sugerindo uma análise interpretativa que contemple não apenas a proteção aos não-fumantes, mas também medidas de restrição do uso de cigarros por quem deseje ou necessite fumar, de modo a atender a saúde de todas as pessoas, fumantes e não-fumantes.

Em 2006, pelo Decreto n. 5.658, o Brasil ratificou a Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco, que foi adotada pelos países membros da Organização Mundial de Saúde em 21-05-2003 e assinada pelo Brasil em 16-06-2006.

A Convenção-Quadro qualifica o tabagismo como epidemia global, e apresenta o consumo e a exposição à fumaça do tabaco como questão de saúde pública, com conseqüências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas que impõem a implementação de formas de controle, a fim de reduzir de maneira contínua e substancial a prevalência do consumo e a exposição à fumaça do tabaco (art. 3º).

Ao tratar o fumo como epidemia, a Organização Mundial de Saúde enquadra o controle do uso do tabaco no rol de importância equiparável à vacina para imunização contra vírus.

Nos princípios norteadores da Convenção-Quadro está exposta a necessidade se adotarem medidas efetivas a fim de proteger toda a pessoa da exposição à fumaça do tabaco, prevenir a iniciação, promover e apoiar a cessação e alcançar a redução do consumo (art. 4º).

O Ministério da Saúde, seguindo essa diretriz, instituiu o Programa de Controle do Tabagismo, para implantação nas empresas, que tem em sua fase final o objetivo de tornar toda a planta do parque fabril livre do fumo, ou seja, fazer com que não seja mais permitido o consumo do tabaco nas empresas, nem mesmo ao ar livre.

Há, portanto, um cerco ao consumo do tabaco. A orientação da saúde pública é visivelmente no sentido de erradicar o fumo.

Nesse cenário despontam, como afirmações das políticas de prevenção ao tabagismo, as garantias constitucionais de direito à vida saudável e as restrições legislativas quanto à possibilidade da pessoa dispor de seu próprio corpo (CC art. 13).

Entretanto, a tudo isso se pontua uma leitura integrativa que preserve a liberdade de escolha do indivíduo, e ainda contemple os desdobramentos dessa escolha, resultantes das substâncias viciantes do tabaco, numa sociedade em que fumar é permitido e até foi incentivado por décadas.

As substâncias do tabaco causam dependência química. Por essa razão, desde 1993 o tabagismo é considerado como doença pela Organização Mundial de Saúde, incluído no grupo dos transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas (CID 10).

O relato de JEAN-PAUL SARTRE sobre sua experiência de abandono do fumo, escrito em suas reflexões sobre a psicanálise existencial, demonstra múltiplos aspectos psíquicos da dependência química que o consumo de tabaco envolve: o ato de fumar é apresentado como o fator significante dos variados fatos da vida. Daí o filósofo afirmar: o tabaco é um símbolo do ser apropriado.

Há alguns anos, decidi parar de fumar. O início foi duro, e, na verdade, eu não me preocupava tanto por perder o gosto do tabaco quanto por perder o sentido do ato de fumar. Produziu-se toda uma cristalização: eu fumava nas casas de espetáculo, ao trabalhar pela manhã, à noite depois do jantar, e parecia-me que, deixando de fumar, eu iria privar o espetáculo de seu interesse, o jantar de seu sabor, o trabalho matinal de seu frescor e vivacidade. Qualquer que fosse o acontecimento inesperado que irrompesse aos meus olhos, parecia-me que, fundamentalmente, ele ficaria empobrecido a partir do momento em que não mais pudesse acolhê-lo fumando. Ser-suscetível-de-ser-encontrado-por-mim-fumando; esta, a qualidade concreta que se havia difundido universalmente sobre as coisas. Parecia-me que tal qualidade seria por mim exterminada e que, no meio deste empobrecimento universal, valia um pouco menos a pena viver. Pois bem: fumar é uma reação apropriada destruidora. O tabaco é um símbolo do ser ”apropriado”, já que é destruído ao ritmo de minha respiração em um modo de “destruição contínua”, passa a meu interior e sua mudança em mim se manifesta simbolicamente pela conversão em fumaça do sólido consumido. A conexão entre a paisagem vista fumando e esse pequeno sacrifício crematório era de tal ordem que, como vimos, este constituía como que o símbolo daquela. Significa, pois, que a reação de apropriação destruidora do tabaco valia simbolicamente por uma destruição apropriada do mundo inteiro. Através do tabaco que eu fumava, era o mundo que ardia, fumegava, se reabsorvia em vapor para incorporar-se em mim. Para manter minha decisão, tive de realizar uma espécie de descristalização, ou seja, sem exatamente me dar conta disso, reduzi o tabaco a não ser senão si mesmo: uma erva que se queima; suprimi seus vínculos simbólicos com o mundo; persuadi-me de que nada perderia da peça de teatro, da paisagem, do livro que lia, se os considerasse sem meu cachimbo; ou seja, voltei-me para outros modos de posse desse objetos, que não fosse o desta cerimônia sacrificatória. Uma vez persuadido disso, meu mal-estar reduziu-se a muito pouca coisa: lamentava o fato de não mais sentir o odor do fumo, o calor do cachimbo entre os dedos, etc. Mas, de súbito, meu mal-estar ficou aplacado e bem suportável. (SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Vozes. 15ed. Petrópolis/RJ, 2007. p. 728-9)

A abstinência do tabaco gera crise e sofrimento ao indivíduo, aliviada na primeira tragada. Parar de fumar é um ato de vontade que requer um enorme esforço, tanto que poucas pessoas têm êxito nessa empreitada.

Daí a solução a ser buscada ter, necessariamente, considerar a patologia que vitima o trabalhador fumante, de modo que as medidas de controle ao tabagismo não excedam os limites de abstinência suportável durante a jornada de trabalho a que está submetido.

O PROGRAMA DE CONTROLE DO TABAGISMO NO MEIO AMBIENTE DE TRABALHO

O Programa de Controle do Tabagismo, instituído pelo Ministério da Saúde, direcionado ao meio ambiente do trabalho para implantação em parceria com as empresas, tem por fases, basicamente: o mapeamento dos fumantes; reuniões de apresentação do programa aos fumantes; identificação dos empregados que desejem aderir ao programa; destinação de um local específico, e por tempo limitado, nas dependências da empresa, para o consumo do tabaco; patrocínio, pelas empresas, de assistência médica e psicológica, com fornecimento de medicamentos, aos empregados que aderirem ao Programa; acompanhamento do tratamento; eliminação, em um ano, dos fumódromos, de todo parque fabril, com fornecimento de selo “empresa livre de tabaco”.

Se se assumisse uma postura irônica acerca do controle do tabagismo nas empresas, poder-se-ia dizer que muitos outros fatores, atrelados ao modo de execução do trabalho e ao sistema produtivo, passíveis de superação, fazem adoecer e até matam, sem despertarem tanto empenho de ser banidos dos parques fabris: as mutilações, nas máquinas; as LER/DORT, no trabalho repetitivo; a pneumoconiose, dos trabalhadores no subsolo; as poeiras, os ruídos, os produtos químicos, o frio e o calor, no trabalho insalubre; o esforço físico, no carregamento de peso; o estresse, na sobrejornada, nas metas estabelecidas e na latente e constante ameaça do desemprego; a destruição da auto-estima, no assédio moral; a violação da intimidade, no assédio sexual.

E por que justamente com o fumo, que mata, mas ao menos também dá prazer, e não apenas mata, foram atentar?

Porque essa é uma questão que agrega a todos.

Tratar das outras hipóteses implica discussão dos métodos de produção, envolve investimentos em itens de segurança, exige redução de jornada, impõe qualificação de pessoal e proteção da intimidade do trabalhador, requer supressão da alteridade e redistribuição da riqueza, põe em xeque a titularidade do poder de coordenação do trabalho. Temas nada fáceis de serem debatidos no abismo de interesses que há nas relações de capital e trabalho.

No dizer de GIOVANNI BERLINGUER, a imposição de comportamentos saudáveis é considerada uma alternativa, menos custosa e menos comprometedora para as empresas, à adoção de medidas preventivas de caráter técnico, organizacional e ambiental (Bioética Cotidiana, UnB, 2004, p. 141).

Não se pode reduzir a problemática que a questão envolve, e nem a importância da política de saúde pública de engajamento das empresas no controle do tabagismo, com argumentos cínicos, como o de que as empresas adotam o Programa inspiradas no selo “empresa livre de tabaco”, referencial para transações comerciais de exportação, sem que hajam dados concretos demonstrando esse objetivo.

CONTROLE DAS VONTADES E COMPORTAMENTOS

O controle das vontades e comportamentos, pelos sistemas de poder público e privado, envolve angustiantes questões éticas resultantes do conflito entre o exercício do poder, os condicionamentos sociais e a autodeterminação do indivíduo.

Nas relações de emprego, o estado de sujeição a que o trabalhador tem sido condicionado, historicamente, aprofunda essa problemática e mostra a necessidade de discussão acerca dos limites do poder diretivo.

Numa sociedade que se quer democrática, entes estatais e empresas não podem atuar como instituições totalitárias: o poder público tem que ouvir os cidadãos, para atender as necessidades coletivas com atenção aos direitos individuais; a propriedade privada só se legitima na medida em que se projeta para uma função social.

Na expressão cunhada por UMBERTO ECCO, aqui referida com base em meus quadros de memória, a ética nasce quando o outro aparece.

A perspectiva do outro como sujeito, em suas múltiplas dimensões, mas ainda assim uno, inteiro e indiviso, com necessidades vitais que compartilha com os animais (sede, sono, fome e apetite sexual), mas também características próprias de sua condição humana, com qualidades que o distingue pela capacidade criativa, intelectual, transformadora e de adaptação, necessidade de transcendência, de relação social e com o meio em que vive, traz à lume a dignidade que detém a pessoa humana.

O trabalhador não perde, quando ingressa no parque fabril, sua condição de pessoa livre e ser pensante, de cidadão. Não pode, por isso, ser considerado como mero alvo de programas de saúde instituídos em seu meio ambiente de trabalho.

E diga-se: a implantação de um programa de saúde no meio ambiente do trabalho, que circunde questões comportamentais atreladas à dependência química, tem, necessariamente, que antes verificar as condições concretas de cada local de trabalho e ser precedido de consulta aos trabalhadores.

Transformar o trabalhador em paciente importa destituí-lo de sua condição de sujeito.

Equacionar a promoção à saúde física e mental com a autodeterminação do indivíduo, em questão que envolve comportamento, remete o tema às medidas educativas que contêm com a participação ativa dos sujeitos implicados e seus órgãos de representação sindical.

Aliás, é nesse sentido que a Convenção-Quadro aponta quando refere que toda a pessoa deve ser informada sobre as conseqüências sanitárias, a natureza aditiva e a ameaça mortal imposta pelo consumo e a exposição à fumaça do tabaco (art. 1º).

SITUAÇÃO DE FATO

Importante destacar que o que está posto neste processo não é a autodeterminação do indivíduo em fumar ou não fumar. Isso está resolvido por não ser proibido fumar em nosso país (CRFB 5º II).

Discute-se, aqui, os limites do cerco inibitório promovido pela saúde pública à escolha por fumar, manifesto na restrição de fumo em lugares que não afetariam outras pessoas não-fumantes, com o inegável objetivo de restringir o uso do tabaco pela abstinência a que fica sujeito o fumante.

A ciência médica aponta o tempo de oito horas, por ser esse o período de sono em que normalmente não se fuma, como limite de tolerância antes ser iniciada a crise de abstinência: a pessoa que fuma acorda e acende um cigarro (depoimento Dr.a MARIA JÚLIA – f. 406, v).

Porém, é se ponderar a distinção entre as sensações: o fumante, quando está em atividade, durante todo um dia de trabalho, sofre angústia pela abstinência do cigarro pelo simples fato de estar desperto, diferentemente da condição experimentada em seu período de sono.

Por isso, novamente registro, tem-se ter atenção para que as medidas de controle ao tabagismo não excedam os limites de abstinência suportável durante a jornada de trabalho a que o trabalhador está submetido, já que o tabagismo é uma doença.

Para avaliar a situação concreta a que estão condicionados os trabalhadores fumantes da WETZEL, a partir da implantação do Programa de Controle do Tabagismo, foi realizada inspeção judicial, nas três unidades fabris da empresa, com a verificação do processo produtivo e contagem do tempo de deslocamento dos empregados, da saída do posto de trabalho até o portão da fábrica, onde então seria possível fumar (fora do parque fabril).

Constatou-se que o tempo médio de deslocamento representa, no máximo, tendo em conta o local de trabalho mais distante do portão da fábrica, metade do período do intervalo de descanso, que é de 10min, isto é: o fumante gasta no máximo 5min, somando ida e volta, para se deslocar até o portão da fábrica. Resta-lhe 5min para fumar e para todo o resto que desejar fazer em seu intervalo para descanso.

Esses dados permitiram ver que, na situação concreta, se o fumante desejar fumar poderá fazê-lo, ainda que com prejuízo de metade do tempo de seu intervalo em deslocamento do seu posto de trabalho até fora do parque fabril, comprometendo o desfrute de outras coisas no período de descanso. Ou seja: as condições de fato não impõem a abstinência ao fumante, durante toda a jornada de trabalho, mas apresentam a ele – como condição desfavorável ao fumo – o tempo gasto com deslocamento, além, é claro, da segregação, já que poderá fumar apenas fora do parque fabril.

ESCLARECIMENTO E CONSULTA

O caráter educativo que orienta a Convenção-Quadro e a esfera de direitos individuais e coletivos que são atingidos pela implantação do Programa de Controle do Tabagismo no parque fabril reclama se projete o debate a todos os trabalhadores.

Para isso, no caso concreto foi realizado um amplo processo de esclarecimento e consulta aos trabalhadores, contemplando as três unidades fabris, nos três turnos de trabalho.

O processo de esclarecimento teve início com a distribuição de três notas explicativas, no Dia Nacional de Combate ao Fumo, para cada trabalhador, nas quais o Juízo explicou a questão debatida e as partes fizeram as defesas de suas teses.

Na seqüência, foi realizada a exposição oral da questão, aos trabalhadores, com a fala desta magistrada, do Sindicato e da WETZEL, contando, ainda, com a presença do Dr. FELIPE ARTHUR WINTER, Ex.mo Juiz do Trabalho, e com a participação da médica pneumologista, Dr.a MARIA JÚLIA ALVES COIMBRA KREIN, em todas as etapas.

Concluídas as inspeções judiciais e o processo de esclarecimento, foi feita a consulta aos trabalhadores, que responderam às seguintes perguntas, nas opções “sim”, “não”, “branco”, “nulo”: deve haver fumódromo na empresa?; você fuma?; você participou do programa de controle ao tabagismo? Apurados os votos.

Na votação ao quesito “deve haver fumódromo na empresa”, quase dois terços (2/3) dos trabalhadores responderam “não” ao fumódromo. Foram 1.128 votantes: 669 disseram “não”; 430 responderam “sim”; e foram 29 os votos brancos e nulos (menos de 2,6%). Destes, 196 se declararam fumantes. A abstenção foi mínima, ainda que facultativo o voto, pois muitas ausências foram justificadas por férias ou licença médica.

PARTICIPAÇÃO CIDADÃ DOS TRABALHADORES

A difícil discussão acerca de interesses comuns e escolhas individuais, em tema inerente à saúde pública e de interesse humano geral, faz necessário o resgate da participação cidadã dos trabalhadores, em torno de uma decisão que irá atingi-los diretamente, em seu cotidiano e ambiente de trabalho.

Por conta disso, no caso em análise, a solução do conflito entre a eliminação do fumo no parque fabril e a reivindicação sindical em prol dos direitos individuais dos fumantes, fez imprescindível deslocar o eixo de decisão para a coletividade diretamente atingida, não sem antes se realizar uma minuciosa verificação das condições reais impostas aos fumantes, seguida de um amplo processo de esclarecimento e debates sobre todas essas questões até aqui expostas, relativas ao fumo, a fim se qualificar a capacidade deliberativa.

E por que esse deslocamento do eixo de decisão?

A dimensão coletiva dos conflitos em questões ainda não sedimentadas, apresenta o desafio se buscar soluções de caráter metajurídico para o alcance de uma decisão com largueza suficiente a contemplar o máximo possível de efetividade das garantias constitucionais, o que se perderia em riqueza de compreensão nos estreitos limites de uma decisão individual, resultante dos aspectos vistos a um só olhar, distanciado da dinâmica de vida e trabalho das pessoas diretamente envolvidas.

Note-se que até pouco tempo atrás eram os não-fumantes que buscavam fosse delimitado um lugar específico para o fumo, a fim de se protegerem. E agora se discute, neste processo, a reivindicação dos fumantes de terem um fumódromo dentro do parque fabril, na defesa do direito de escolha de fumar sem ser segregado.

Na lição de LUÍS ROBERTO BARROSO, não há efetividade possível da Constituição sem uma cidadania participativa. Em sua obra, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, o autor escreve:

Veja-se que a ordem jurídica, como já afirmamos em outro estudo, na generalidade das situações, é instrumento de estabilização, e não de transformação. Sem deixar de reconhecer-lhes um ocasional caráter educativo, as leis, usualmente, refletem – e não promovem – conquistas sociais longamente amadurecidas no dia-a-dia das reivindicações populares.

Assim é que, sem abandonar o modelo representativo, outras formas de intervenção vêm sendo estudadas e positivadas, com o fito de viabilizar manifestações de pessoas e entidades que não tomam parte no governo, mas que se pronunciam, por via institucionalmente disciplinada, nos processos decisórios, tanto os de cunho restrito e específico, quanto os que assumem caráter mais amplo e geral. Há, por assim dizer, um retorno à utilização de certos institutos ligados à prática da democracia direta, configurando um sistema híbrido, que muitos autores denominam de participação semidireta. (Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 127, 130)

A necessidade de construção de espaços democráticos de deliberação coletiva, como afirmação da democracia participativa e desprendimento da forma impregnada de concentração de poder, impôs, no caso concreto, integrar os trabalhadores nos debates e na deliberação da questão relativa a ter ou não fumódromo no parque fabril, porque o trabalhador tem que estar como sujeito da relação, e não como objeto alvo de algum programa, por melhor que seja.

E a decisão dos trabalhadores legitimou o Programa do Ministério da Saúde, de Controle do Tabagismo, implantado pela WETZEL, ao dizer “não” ao fumódromo.

Essa posição não implica violação aos direitos individuais da pessoa decidir sobre fumar e expressar essa sua escolha, dadas as condições concretas que apresentam uma alternativa ao fumante: usar metade do tempo de seu intervalo no deslocamento até o portão da fábrica, para fumar.

Um sacrifício razoável para quem está dinamitando a própria vida.

A decisão representa a opção dos trabalhadores pela política de saúde pública, que propõe limitações ao exercício dessa vontade, de modo a inibir o consumo de cigarros, porque letal à saúde humana.

O trabalhador tem um saber naquilo que faz e não está alheio às condições de trabalho a que está submetido. Ele conhece a realidade sua e de seus colegas. Sabe que se adoecer, vai cair no desalento do sistema público de saúde. Também sabe que perderá o emprego se não produzir além do que custa para o empregador. E mais do que isso, sabe que depende de seu trabalho para prover seu sustento.

JUSTIÇA GRATUITA

A atuação do Sindicato na defesa dos interesses coletivos da categoria, é compreendida pelos benefícios da assistência judiciária gratuita.

OFÍCIOS

Oficie-se à CONTAPP – COORDENAÇÃO NACIONAL DE CONTROLE DE TABAGISMO E PREVENÇÃO PRIMÁRIA DE CÂNCER do Ministério da Saúde, e à OIT – Organização Internacional do Trabalho, com cópia desta decisão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Registro os agradecimentos desta magistrada ao Dr. FELIPE ARTHUR WINTER, Ex.mo Juiz do Trabalho que acompanhou a inspeção judicial e os procedimentos de esclarecimento e consulta aos trabalhadores; à Dr.a MARIA JÚLIA ALVES COIMBRA KREIN, médica pneumologista engajada no Programa de Controle do Tabagismo, que participou ativamente de todas as etapas de esclarecimento aos trabalhadores; aos professores, Dr. HERVAL PINA RIBEIRO, Dr. NELSON PASSAGEM VIEIRA e Dr. CLEBER DE PAULA, do Curso de Extensão – Adoecimentos e Doenças Contemporâneas do Trabalho, da Escola de Saúde Pública, CEREST, pelas excelentes bibliografias repassadas sobre o tema.

FUNDAMENTOS PELOS QUAIS rejeito as preliminares e julgo IMPROCEDENTES os pedidos formulados pelo SINDICATO DOS TRABALHADORES METALÚRGICOS, NA FUNDIÇÃO, NA SIDERURGIA E NA INDÚSTRIA DO MATERIAL ELÉTRICO DE JOINVILLE em face de WETZEL ALUMÍNIO S/A e WETZEL FERRO S/A (02).

Concedo ao Sindicato autor os benefícios da justiça gratuita.

Custas de R$ 320,00, pelo Sindicato autor, calculadas sobre o valor atribuído à causa, de R$ 16.000,00, isentas.

Transitada em julgado, ARQUIVEM-SE.

EXPEÇAM-SE os ofícios.

INTIMEM-SE as partes e o MPT.

Providencie, o/a OFICIAL DE JUSTIÇA, na fixação de cópia desta decisão nos murais dos refeitórios das três unidades fabris, entregando, ainda, em cada unidade e em cada turno de trabalho, cópias em mãos de nove trabalhadores da linha de produção, e para três da área administrativa, aleatoriamente escolhidos, identificando-os e indicando o turno e área de trabalho, para que repassem aos colegas, fazendo circular a sentença entre os empregados da empresa.


ÂNGELA MARIA KONRATH
Juíza do Trabalho