Carta do Núcleo AJD-PE entregue em audiência pública na Assembleia Legislativa sobre ocupações nas escolas

Estudantes, Professores e demais partícipes dessa audiência pública:



A República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, tem como fundamento a cidadania (artigo 1º, II, CF) aqui compreendida em suas dimensões civil, política e social, sendo a última relacionada ao direito a um nível de bem estar cultural, econômico e social.

Na sociedade contemporânea não se pode deixar de associar a democracia a um processo de discussão coletiva no sentido de que todos e especialmente aqueles mais afetados pelas decisões tomadas possam intervir e expressar sua opinião sobre o que está a ser decidido (GARGARELLA, 2007[1]). Por esse motivo, é importante que todos os grupos com necessidades básicas insatisfeitas contem com a possibilidade de fazer conhecer seus pleitos ao poder público. É o exercício da cidadania política.

Na Democracia Representativa brasileira, o Poder é exercido indiretamente, por meio dos representantes eleitos pelo povo ou, diretamente, nos termos da Constituição (art. 1º. parágrafo único). Já entre os direitos fundamentais consagrados pela Carta Política está o direito à livre expressão do pensamento (inciso IV do art. 5º) e, como corolário, sua manifestação. Ao seu lado estão os de reunião e associação (incisos XVI e XVII do mesmo art. 5º).

Ao exercer o direito de expressão por meio do protesto sob a forma de ocupação de escolas, os estudantes estão não só a exercitar uma garantia constitucional, como também no exercício direto do Poder Político. Enfim, os estudantes estão exercendo a cidadania política, nos termos da Constituição Federal.

De outro lado, convém observar que em uma democracia representativa, se transfere o controle dos recursos econômicos e o controle das armas ao poder público e, justamente por isso há uma preocupação no sentido de que ele não abuse desses extraordinários poderes a ele transferidos. Essas condições são agravadas pelo fato de a sociedade brasileira passar por um momento de ruptura institucional, com o Poder Executivo sendo exercido por um Governo meramente de fato, cujo Poder lhe foi transferido a partir da decisão parlamentar do dia 31 de agosto último. E mais: com a deposição do Governo de Direito, o de fato impõe um conteúdo programático não autorizado pelo sufrágio universal.

Pois bem. É nesse contexto de ruptura democrática que o Governo de fato enviou ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional que tomou o nº 241 na Câmara dos Deputados (hoje, no Senado Federal, PEC nº 55) objetivando, como é por demais sabido, o congelamento dos gastos públicos pelo período de 20 anos.

Também foi enviada ao mesmo Congresso a Medida Provisória nº 746/2016, visando à reforma da base nacional comum curricular que, entre outras medidas, priva os estudantes a saberes como Artes, Sociologia, Filosofia, Língua Espanhola e Educação Física.

Não só congelando os gastos públicos com a saúde e educação, a primeira matéria – cuja constitucionalidade é discutida – limita a participação popular na escolha de propostas econômicas dos próximos quatro candidatos a Presidência da República. Já a segunda retira a criticidade e autonomia dos estudantes na compreensão do mundo, limitando o exercício de sua cidadania. Em comum, a urgência utilizada no processo legislativo priva a participação popular em sua discussão.

Buscando repelir esse estado de coisas, os estudantes ocuparam centenas de escolas médias, institutos federais e Universidades em todo o Brasil, na forma acima antecipada. Em desfavor dos estudantes são apresentados alguns argumentos:



1. Os estudantes têm violado a lei.

Entre as violações à lei, apontam que os estudantes praticam o esbulho possessório e o dano ao patrimônio público. Entretanto as ocupações de escolas e faculdades tem sido uma forma de protesto político e, conforme assentado em decisão[2] “Não se trata propriamente da figura do esbulho do Código Civil, pois não visa à futura aquisição da propriedade, ou à obtenção de qualquer outro proveito econômico. A situação em tela não se amolda à proteção possessória prevista nos artigos 920 e seguintes do Código de Processo Civil, especialmente aos critérios dos artigos 927 e 928 para a concessão da liminar. Inegável, por outro lado, que toda ocupação causa algum transtorno ao serviço público – se assim não fosse, pouca utilidade teria como forma de pressão. Há que se ponderar, dentro de um critério de razoabilidade, a importância do serviço público descontinuado pela ocupação, de um lado, e o resguardo dos direitos constitucionais supra mencionados, de outro.”

Já em relação ao dano é necessário o enquadramento do agente ao tipo descrito na norma penal, de forma que a simples ocupação – expressão do pensamento e direito à reunião e associação – não é sinônimo dos ilícitos tipificados nos artigos 163 e 165 do Código Penal.

Entretanto, utilizada essa lógica de aplicar aos ocupantes normas de direito civil ou direito penal, a ele favoreceria aquelas relacionadas ao estado de necessidade ou à legítima defesa (arts. 24 e 25 do CP) que poderiam justificar a justa causa dos manifestantes e a legitimidade de suas ações.

Os conflitos sociais não podem ser resolvidos pela perspectiva da legislação penal, cuja função precípua é a distribuição de penas dentro da sociedade. Não há como criminalizar os movimentos sociais, mas prestar atenção à distribuições dos direitos constitucionais em jogo.



2. Os direitos dos estudantes não são absolutos.

Há, de fato, um conflito de direitos: o de uma parcela dos estudantes na crítica ao governo e aquele de outra parcela da comunidade estudantil em frequentar as aulas. A partir daí surge uma ideia comum de que não se pode defender direitos violando os direitos das demais pessoas. Dito de outra forma: os direitos dos manifestantes terminam quando começam os direitos das demais pessoas.

Ora, no conflito que se apresenta qual o direito mais importante, ou melhor, qual o direito que deve preponderar? Os direitos dos manifestantes a expressar-se livremente, protestar, reunir-se – todos protegidos pela Constituição – deveriam ser limitados ante um direito como o de frequentar aulas? Este último é um direito superior ou mais importante que os dos estudantes?

A solução desse conflito pode ser obtida a partir das reflexões proferidas pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América no caso New York Times co. vs Sullivan. Nesse case, a Corte respaldou o privilégio dos cidadãos em criticar o Governo porque “é sua obrigação criticar, assim como a dos funcionários é a de administrar”. Citando James Madison, a Corte concluiu dizendo que “o poder de censura está no povo sobre o governo, e não no governo sobre o povo”. No que se refere a sua visão sobre os direitos, a Corte deixou claro que o direito à livre expressão merecia uma proteção especial e que, dentro dessa esfera, as expressões políticas (e em especial as críticas contra aqueles que se encontram em exercício do poder) mereciam a proteção judicial mais firme. Enfim, a Corte Americana demonstrou de forma exemplar como atuar nesses pretensos conflitos de direitos.



3. Os objetivos dos estudantes não são genuínos.

Segundo alguns críticos, os objetivos da comunidade escolar parece ter pouco a ver com a ideia de reivindicar sobre as questões públicas. Os ocupantes não se identificam; os líderes utilizam a base estudantil para levar a cabo objetivos sinistros; os manifestantes representam um braço de partidos políticos.

Inicialmente convém registrar que o fato de os estudantes cobrirem o rosto ou esconderem sua identidade não deveria surpreender em um contexto de criminalização do movimento, onde a polícia e o próprio poder judiciário tendem a sistematicamente deter e processar os manifestantes. Ora, se a comunidade tem razões para protestar e também como resultados de suas manifestações a possibilidade de detenção e criminalização, parece razoável a alternativa de tornar sua identificação mais dificultosa para a polícia, para os órgãos administrativos (reitoria/direção das escolas) e Ministério Público.

Já o discurso de que os ocupantes são utilizados como massa de manobra de partidos políticos é tentar retirar a legitimidade do movimento. Ora, os partidos políticos não são entidades ilegais, de forma que a ideia de participação dessas organizações junto aos manifestantes, pouco diz da validade dos pleitos.

A ideia de que os protestos sociais deveriam ser assépticos ou situar-se atrás de todos os interesses identificáveis parece inaceitável: o pleito dos estudantes tem base em interesses difusos, de toda a sociedade; pleitos que são sensatos e que encontram respaldo na Constituição.



4. Os ocupantes poderiam e deveriam ter exercido seus direitos de maneira diferente, mais razoável.

Ora, quando os estudantes organizam uma ocupação o fazem precisamente porque querem perturbar a ordem e criar um problema. Se o protesto fosse inofensivo, o Governo de fato não se sentiria forçado a analisar as demandas dos ocupantes. Acrescente-se que a necessidade de se proteger as manifestações públicas tem o objetivo de salvaguardar o direito das minorias.



5. Os manifestantes estão acabando com a democracia.

Esse argumento é bastante fraco e, antes de mais nada, é revelador de qual concepção de democracia há por traz dele.

Ora, em uma democracia representativa não se pode transformar, por princípio, as manifestações populares em motins ou rebeliões, porquanto se deve exigir respeito às opiniões dissidentes.

Em uma democracia não se pode preferir a apatia política ao ativismo político, afastando a participação popular da política. Não existe qualquer razão para defender a democracia e criminalizar os movimentos sociais. Se se defende até de forma mais rigorosa a liberdade de expressão, essa concepção deverá ser também utilizada quando se trata de protestos sociais.

Ademais essa forma de expressão do pensamento não é exclusiva da democracia brasileira. Apenas a título de exemplo, em 2011 no Estado de Wisconsin, EUA, o Capitólio, sede do governo, foi ocupada por 17 dias por trabalhadores e estudantes contra projeto que visava a redução salarial, diminuição de postos de trabalho em Universidades, redução de benefícios do seguro-desemprego[3]; na Espanha, a partir de 15 de maio de 2010, com ocupação de diversas praças públicas em várias cidades pelo movimento conhecido por 15-M (indignados) constituído por trabalhadores, estudantes e movimento popular buscando a reformas político e econômicas[4]; A revolta dos Pinguins, no Chile, em 2006, que mobilizou cerca de 600.000 estudantes chilenos, lutando pela reforma educacional[5]. Isso sem falar dos diversos outros protestos, inclusive em forma de ocupação, que assolam as democracias nesse século.

Assim, considerando a legitimidade do movimento e a necessidade de pacificação social, a Associação Juízes para a Democracia propõe a essa Comissão:



A) Em caráter geral:



1. Oficiar ao Senado Federal sugerindo a suspensão do processo legislativo da PEC nº 55, possibilitando, assim, a participação da sociedade civil em sua discussão.

2. Oficiar à Câmara dos Deputados, sugerindo a rejeição da Medida Provisória nº 746/2016 para que a matéria seja analisada em sede de Lei Ordinária e, assim, possibilitando à comunidade acadêmica e sociedade civil organizada de sua discussão.



B) Em caráter específico:



1. Recomendar ao Governo do Estado para que se abstenha de desenvolver qualquer medida, inclusive oferecimento da força policial, destinada a desocupação dos estabelecimentos de ensino, sem que passe por uma comissão de conciliação formada pela sociedade civil;

2. Recomendar aos órgãos diretivos das Universidades, Institutos federais e escolas de ensino médio ocupadas, para que evitem identificar, facilitar a identificação e informar o nome, a qualquer pretexto e a qualquer órgão, exceto por determinação judicial;

3. Constituir uma comissão de acompanhamento das ocupações dirigida por essa Comissão e formada por estudantes e entidades da sociedade civil.



Recife, 18 de novembro de 2016.



O Núcleo de Pernambuco da Associação Juízes para a Democracia (AJD-PE).





[1]Gargarella, Roberto. Un diálogo sobre la ley y la protesta social InPostdata no.12 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ago. 2007. Disponível em http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-96012007000100007

[2]Decisão proferida nos autos do Processo nº 114.01.2011.011948-2[2], ajuizado por UNICAMP em face de DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES / DCE – UNICAMP

[3]Cf. http://www.odiario.info/luta-de-classes-em-wisconsin-a-partir-de-2011/e http://advivo.com.br/blog/antonio-ateu/eua-trabalhadores-de-wisconsin-ocupam-o-capitolio

[4] Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Protestos_de_2011_na_Espanha

[5] Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Mobiliza%C3%A7%C3%A3o_estudantil_no_Chile_em_2006