Núcleo da AJD/RS relata visita ao MST

CARTA DA TERRA E DO PÃO



Dia de sábado, sob um sol escaldante e em meio à poeira da zona rural de Charqueadas e Eldorado do Sul (RS), o Núcleo Gaúcho da Associação Juízes para a Democracia (AJD), acompanhado por advogadxs, membrxs do Ministério Público Estadual e Federal e jornalistas, enquanto artista do direito, tornou reais os versos de Milton Nascimento e Fernando Brandt:

“Com a roupa encharcada

e a alma repleta de chão

todo artista tem que ir aonde o povo está

´Se for assim, assim será.”

Objetivando construir relações de observação, escuta e diálogo entre a magistratura e os movimentos sociais, alargando o conhecimento sobre conflitos em relação às quais o Poder Judiciário é chamado a decidir, foi ao encontro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), visitando o Acampamento Unidos pela Terra, os Assentamentos Lanceiros Negros e Integração Regional sendo que, neste último, também a Cooperativa de Produtos Orgânicos Pão da Terra.

Sobre cada qual deles:

1) ACAMPAMENTO UNIDOS PELA TERRA

Reúne aproximadamente 200 famílias (cerca de 40 crianças), acampadas desde o mês de novembro de 2016.

Localiza-se no Horto Florestal Carola, da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), município de Charqueadas.

A área de aproximadamente 1000 hectares foi abandonada quando a empresa deixou de utilizar postes de eucalipto em sua rede elétrica.

Em 2014, a CEEE e o INCRA firmaram um termo de compromisso, pelo qual o órgão de reforma agrária adquiriria a terra e promoveria o assentamento, cabendo à proprietária retirar a mata plantada e os produtos com resíduos tóxicos armazenados no local, recuperando o solo.

A ação judicial de reintegração de posse tramita na 9 ª Vara da Justiça Federal.

As famílias ocupam a área limpa, preservando a mata nativa, produzindo hortaliças, feijão, batata, mandioca, milho, criando porcos e galinhas.

As atividades cotidianas e políticas são desenvolvidas são coletivamente organizadas, mediante distribuição de tarefas entre os diversos núcleos de base.

A aceitação de interessados em integrar o acampamento é condicionada à análise dos antecedentes criminais, mostrando preocupação com a segurança de todos, tendo sido exteriorizada aguda preocupação com o alcoolismo e o uso de drogas.

As crianças frequentam escolas do município, contando com atendimento junto à rede municipal de saúde.

Revelando terem sido bem acolhidas pela comunidades escolar e terem contado com a receptividade na cidade, foram destacadas algumas dificuldades na marcação de consultas junto aos postos de saúde.

Contaram também que em função de o INCRA ter deixado de fornecer alimentos aos acampamentos, se ressentem da falta de leite de vaca e farinha de trigo, apesar de contarem com a ajuda da cooperativa central de assentados.

Na modesta enfermaria, viu-se a escassez de remédios e equipamentos, contudo, também, uma diversidade de ervas e chás, para cuidar das enfermidades mais recorrentes.

Entre uma cantoria e outra, foram apresentadas a sede administrativa, a área de plantio, a cozinha de lona e as instalações da desativada Escola do Horto (secção eleitoral até 2010), foi oferecido almoço aos visitantes, servindo feijão, arroz, batata, aipim, carne ensopada e salada de tomate, cebola e repolho. Tarros de suco de abacaxi ajudaram a matar a sede. De sobremesa, cachos inteiros de banana.

2) ASSENTAMENTO LANCEIROS NEGROS

Após 03 anos rumando de um acampamento para o outro, na margem das estradas, sete famílias foram instaladas no município de Charqueadas, em área comprada no Governo Tarso Genro.

Uma delas, com membros da segunda geração de assentados na Fazenda Anoni, há quase trinta anos, contou sobre a experiência debaixo da “lona preta”, a fome, a discriminação, sobre as dificuldades iniciais de quem é oriundo de outra região do estado, a readaptação a outras culturas e plantios, a própria inadaptação das vacas a um terreno irregular e que exige permanentemente movimentação – influenciando na produção leiteira. Falou-se sobre a organização de grupos na unidade familiar e entre as famílias assentadas para desempenho de tarefas, domésticas, de produção e políticas.

Uma das filhas do casal, contando 11 anos de idade, discorreu sobre o cotidiano na escola, falando sobre os enfrentamentos com o professor de história, anunciando o sonho de ser médica veterinária, fazendo uma leitura muito detalhada do contexto em que vive, apresentando um nível de informações acima da sua média etária, demonstrando uma capacidade de exposição emocionante, a introjeção de valores e conceitos e disposição para manter acesa a chama de luta dos seus pais e avós, verdadeiramente emocionantes.

Junto à moradia - uma casa simples de madeira, com quatro pequenos cômodos – 02 quartos, banheiro e sala/cozinha integrados, organizou-se um espaço destinado aos porcos e um estábulo improvisado, para a ordenha mecânica, cujos equipamentos de manejo foram obtidos com recursos de programa do Governo Federal, na gestão do presidente Lula.

Na sequência, a alguns metros da residência, conheceu-se a unidade de secagem e armazenamento de arroz, proveniente de todos os assentamentos no Estado, inaugurada em 2015. As instalações e equipamentos foram financiadas no governo da presidenta Dilma Rousseff.

No local, também está instalado um laboratório que verifica a umidade, a pureza e o tamanho do arroz, requisitos para a exportação do produto.

Atualmente a produção é comercializada no mercado interno, sobretudo para parcerias no ABC paulista, onde é destinada á merenda escolar, e exportada para os Estados Unidos e Venezuela.

Para breve, anunciam, na mesma área, o começo da construção de uma unidade industrial para o beneficiamento, o que permitirá aos assentamentos do MST o domínio de todo o ciclo, da produção à comercialização do arroz orgânico cultivado.

3) ASSENTAMENTO INTEGRAÇÃO REGIONAL

Diferentemente do anterior, neste conheceu-se uma experiência mais antiga e consolidada, contando com 26 anos, em área anteriormente pertencente ao Instituto Riograndense do Arroz (IRGA), a qual estava arrendada sob a condição de mantidas fechadas as áreas de acesso.

Uma das assentadas relatou as privações – destacando a falta de água potável e comida, sintetizada na figura do pão, as angústias, os medos e as promessas não cumpridas pelos governos, nos largos tempos de acampada em barracas. Contou sobre a ausência de recursos e políticas de apoio ao plantio, à criação e à própria subsistência, quando dos primeiros tempos pós-instalação. A rede de energia elétrica só foi estendida 11 anos depois, em 2002, no Governo Olívio Dutra, mesmo época em que o acesso à rodovia estadual foi melhorado.

Também pontuou a diversidade de solo com o qual estavam acostumados para desenvolver a cultura de hortifrutigranjeiros e grãos.

Impactante, também foram os relatos feitos acerca da repressão no cumprimento das ordens de despejo, quando acampados, resultando na destruição das barracas, perda de todo o estoque de alimentos, da violência e desprezo do Estado, diante das crianças, gerando sentimento de profundo desamparo, dias de fome e sede, ao mesmo tempo em que formavam a argamassa para prosseguir na luta por terra e pão.

Igualmente contundentes, foram as marcas expostas em face do preconceito sofrido nas cidades pelas quais perambulavam em busca de alimentos e água, concebidos como bandidos, como preguiçosos ou vagabundos, bem como, o desprezo de que foram vítimas as crianças na escola, pelo chinelo que calçavam, pela roupa que vestiam e pelo cheiro de fumaça e suor, impregnado em quem dorme e come, amontoado em barracas de lonas.

Na caminhada até as amplas áreas de plantação de hortaliças, feijão, arroz, milho, batata, mandioca, trigo e frutas, constatou-se que à única árvore de eucalipto existente quando do assentamento, ergueram-se centenas, encontraram-se casas construídas com tijolos, maiores, pintadas, pátios bem cuidados, com muros e grades para evitar a fuga de galinhas, vacas e porcos. Em casa qual, ao menos um carro (geralmente modelo antigo) guarnecendo as garagens.

O último ato, antes da chegada da chuva, aguardada para molhar a terra seca, foi no salão da Cooperativa de Produtos Orgânicos Pão da Terra, onde foram apresentados pães integrais, bolos, cucas e biscoitos orgânicos por eles produzidos e que são comercializados em feiras populares e agroecológicas, no arredores e em Porto Alegre, distante poucos quilômetros dali.

Aliados ao arroz orgânico vendido servem de fonte para reforçar a renda das famílias e também de recurso econômico para fazer frente às despesas da organização da luta política.

No encerramento os visitantes receberam um quilo de arroz orgânico, simbolizando a luta econômica do movimento, e um boné do MST, simbolizando a luta política, que segundo os trabalhadores são dimensões inseparáveis.

De tudo o que foi visto e vivenciado algumas impressões e destaques para :

a) a forma de organização do movimento, sensivelmente coletiva, solidária, vocacionada para atender as demandas do grupo, num primeiro momento, sem esquecer dos trabalhadores rurais em fase inicial de assentamento;

b) a preocupação com a segurança, a ordem e uma vida saudável nos lugares que ocupam, não admitindo furtos e violências, mediando as situações de alcoolismo e toxicodependência;

c) o nível de esclarecimento e participação política, de compreensão do papel que lhes cumpre exercer na sociedade (repelindo a reverberada acusação de constituírem massa de manobra), o empoderamento e o co-protagonismo das mulheres, a conscientização da importância de cada um deles para as ações do grupo e a clareza da percepção de quem são seus aliados e quem são seus adversários, cabendo sublinhar a resistência em relação ao Poder Judiciário, que, por identificado conservadorismo, reputam como instrumento de conservação do poder econômico;

d) o êxito da política de assentamentos, tornando produtivas terras abandonadas, viabilizando a subsistência familiar, melhorando o acesso de todos a bens e produtos, gerando recursos para espraiar o movimento e materializar relações políticas e econômicas com associações, sindicatos, minorias civis, parcerias constituídas no Brasil e no exterior;

e) a intransigência com a preservação do meio-ambiente, a sustentabilidade, evitando promover a derrubada da mata nativa, não utilizando venenos, privilegiando a produção agroecológica e a diversidade de culturas, enriquecendo solos empobrecidos pela monocultura, pela utilização de herbicidas e pesticidas e pela exploração irracional;

f) a capacidade de superação das dificuldades, a garra para alcançar uma vida digna, trabalho honesto como meio, e a disposição para uma empreitada, a ser abraçada também pelas filhos deles, sabendo que não terminam com o assentamento, nem se resumem aos que dele se beneficiaram e, tampouco, se limitam à questão rural.

g) o reforço da leitura de que a realidade contra a qual se insurge o movimento, longe de merecer uma olhar criminalizador, preconceituoso, de ódio, representa uma luta por direitos, traduzida em reivindicações democráticas, afirmativas, por políticas que combatam a exploração e privilegiem a cooperação - na perspectiva de realização de promessas constitucionais - não apenas balizadas pela lei, mas sim conformadas por valores sociais .

h) a identificação de, não por mera coincidência, terem as terras sido compradas, os equipamentos sido adquiridos e a infraestrutura fornecida por ocasião de governos de esquerda, evidenciando compromisso exclusivo deste espectro político com a agenda da reforma agrária;

i) a importância para a magistratura de, ao se aproximar dos movimentos sociais, tomar contato com realidades desconhecidas, desconstruir mitos, reduzir a carga de preconceitos disseminada na sociedade, permitindo-se sensibilizar-se com histórias não contadas ou cujo enredo apresentado é cotidianamente distorcido, reforçando a empatia com a dor e o sacrifício humano.

Com isso, cremos ter obtido informações para ampliar nossa capacidade de observação, reunido mais e melhores subsídios para mediar os conflitos sociais e nos esforçado para mostrar àqueles que precisam do Poder Judiciário uma face mais comprometida com os direitos humanos e com a justiça social.

Charqueadas/Eldorado do Sul, dia 04 de março de 2017.

O Núcleo da AJD do Rio Grande do Sul