Sustentação Oral do Dr. Pierpaolo Cruz Bottini

Sustentação Oral realizada no dia 28/04/2010 – ADPF 153 (Lei de Anistia)

O que se discute na presente ação é a interpretação dos termos da lei de anistia sob a ótica dos princípios constitucionais atuais e daqueles vigentes no momento da aprovação da norma em discussão.

Em outras palavras, trata-se de discutir se os crimes praticados pelos agentes do regime militar são crimes políticos ou crimes conexos com os crimes políticos – característica que permitiria a exclusão de punibilidade pela anistia nestas hipóteses.

Como afirmou o Eminente Ministro Marco Aurélio:

“A leitura da denominada Lei de Segurança Nacional revela que o legislador pátrio combinou as teorias objetiva e subjetiva. É que, após definir, no art. 1º, os bens protegidos, dispôs que, estando também o fato previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis penais especiais, levar-se-ão em conta, para aplicação daquele Diploma, ou seja, da Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983, não só a motivação e os objetivos do agente, como também a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no art.1º” (voto Min. Marco Aurélio no RE 160841, DJ 22/09/1995, sem grifos no original).

Ainda neste julgamento posicionou-se o Eminente Ministro Celso de Mello:

O sistema jurídico brasileiro não reconhece o delito político cuja caracterização conceitual resulte, exclusivamente, de motivação do autor da conduta criminosa. Impõe-se, para esse efeito, que o ato criminoso também ofenda, real ou potencialmente, a segurança nacional (voto do Min. Celso de Mello no RE 160841, DJ 22/09/1995, sem grifos no original).

Na polêmica discussão sobre a extradição de 1085 o Min. Cesar Pelluzo cita trecho da obra de Maurice Travers, que enfatiza que o perfil político do crime complexo só se reputa predominante quando coexistam três condições: “1º) ter sido o acto commettido com o fim de preparar ou assegurar o êxito de acto político puro, isto é, um emprehendimento dirigido contra a organização política ou social do Estado; 2º) uma relação directa existente entre o facto incriminado e o fim que se impoz um partido para modificar a organização política do Estado. Não seria bastante uma relação mais ou menos perceptível, diz o mesmo autor; 3º) não ser a atrocidade do meio empregado de tal ordem, que o caracter de direito commun se torne predominante, apesar da natureza política do fim almejado”.

Parece evidente que o ato de repressão militar – seja ele qual for – não se insere nesta definição porque nunca é praticado contra a ordem vigente ou a segurança nacional, mas ao contrário é realizado para manter a ordem vigente.

Mas ainda que o fosse, a gravidade e a violência dos crimes em comento fazem preponderar seu sentido comum sobre seu eventual sentido político – característica que afasta sua qualidade de crime político como esta corte reconheceu em inúmeros casos.

Por outro lado, tais crimes não são conexos aos crimes políticos. O conceito de conexão é técnico, e processual, e está regulado pelas leis processuais em vigor.

Há conexão se a conduta foi praticada em concurso material, ou em concurso de agentes, ou para encobrir ou facilitar a prática do crime conexo – evidentemente tais hipóteses não se aplicam aos atos de repressão.

Há ainda conexão se os crimes foram praticados em simultaneidade ou em situações de conexão probatória – em que as provas em um aproveitam na instrução do outro.

Ocorre que os crimes em comento não foram praticados contra os opositores no calor da batalha política, em momentos de enfrentamento.

Foram praticados de forma sistemática, regular contra militantes já detidos sob custódia do regime. Não houve simultaneidade, não houve conexão fática entre a prática da tortura e os supostos crimes políticos praticados contra o regime.

Assim, os crimes cometidos pelos agentes do regime militar não são crimes políticos nem crimes conexos aos políticos portanto não devem ser abrangidos pelos efeitos da lei de anistia.

Esta interpretação é coerente com a decisão desta corte nos autos da não é outra a interpretação conferida por esta corte ao julgar a extradição 974 em que a argentina requeria a entrega de Manoel Cordeiro Piacentini pela prática de crimes de sequestro e tortura praticados na década de 70, condutas similares àquelas que ora se discutem.

Ora, a extradição exige que o crime não seja político e que o comportamento seja punível em ambos os países.

Ao extraditar Manoel cordeiro esta corte reconheceu a punibilidade de crimes de repressão política praticados naquele período, reconheceu que não houve perdão ou anistia, como alertou o E. Min. Marco Aurélio na ocasião.

Em outras palavras, ao extraditar Manoel Cordeiro esta corte reconheceu que sobre crimes desta espécie não incide a anistia, pois se incidisse a extradição seria vedada.

Excelências.

O objetivo dos requerentes não é o revanchismo ou a vingança sobre os agentes de repressão.

O objetivo é apenas que esta corte reconheça que não houve perdão aos crimes praticados contra os opositores do regime militar como já o fez a argentina, o Chile e a própria corte interamericana de direitos humanos – como será demonstrado pelos colegas do Cejil.

É ate possível que a pretensão punitiva contra os agentes esteja prescrita.

Ainda que ocorra.

Mas é imprescindível destacar que a não punição em decorreu da omissão ou desídia – prescrição – e não de um ato de perdão da sociedade brasileira.

O que se pede, enfim, é que esta corte reconheça que a sociedade brasileira não perdoou e nem perdoaria no futuro a prática de atrocidades para a manutenção de um regime de exceção que solapou até a dignidade desta corte com o afastamento de Victos Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva comprometidos com o estado democrático, que não aceitaram proteger um regime contrário às liberdades públicas e aos direitos fundamentais.

E não se pede apenas em nomes dos homens e mulheres que padeceram sob o regime, nem em nome de seus parentes, mas em nome de toda a sociedade brasileira, em nome das gerações futuras, em nome de todos aqueles que acreditam no estado democrático de direito, em nome daqueles que morreram para defendê-lo.

Espera-se que esta decisão tenha sua dimensão histórica como um marco para as gerações futuras. Que coloque verdadeiramente um ponto final neste triste passado. e que contribua para que nunca mais ninguém seja torturado ou morto apenas por discordar de um regime político.

Paulo Brossard:

Desgraçado país o que tenha medo de livrar-se dos próprios erros (muito bem!) porque para liberta-se deles tenha de exibi-los. Mil vezes exibi-los, e expondo-os inspirar horror, para que nunca mais voltem a repetir-se, do que envergonhadamente ocultá-los e ocultando-os, protegê-los, com o risco de voltarem amanhã, confiados na complacência que enseja, senão estimula os abusos.