Carta aberta à sociedade civil para erradicação do trabalho escravo

Cidadania
Cidadãs e cidadãos brasileiros,

A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE e as entidades abaixo assinadas vêm a público, na data em que se celebra o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, e em que se registra o décimo segundo ano de ocorrência da «Chacina de Unaí» — quando três Auditores-Fiscais do Trabalho e um motorista do Ministério do Trabalho foram executados, sob emboscada, em razão do exercício de suas elevadas funções na investigação e no combate ao trabalho escravo contemporâneo—, registrar, propugnar e conclamar, em deliberação de caráter plural, laico e apartidário, o seguinte.

1. A despeito de todos os esforços empreendidos nos âmbitos internacional e nacional para o combate à escravidão contemporânea, a condição de dignidade e de liberdade do trabalhador universal segue em claro risco de integridade, em diversos pontos do globo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima existirem ao menos 21 milhões de pessoas submetidas a trabalhos forçados em todo o mundo, sendo cerca de 1,8 milhão apenas na América Latina (2012). Estudos diversos já identificaram 122 gêneros de consumo fabricados com o uso de trabalho forçado ou infantil em cinquenta e oito países diferentes. A cada ano, ainda de acordo com dados da OIT, o trabalho escravo gera US$ 150 bilhões em lucros, metade dos quais apropriados em países ricos e desenvolvidos (2014).



2. A comunidade internacional reconhece os recentes avanços da sociedade brasileira no combate ao trabalho escravo contemporâneo, a revelarem um Brasil disposto a ir à luta, reprimir o neoescravagismo e oferecer alternativas para a reinserção social dos trabalhadores resgatados, atuando no âmbito da esfera privada sem violar quaisquer direitos subjetivos. Nada obstante, o problema persiste, diversifica-se e capilariza-se. Desbaratam-se pontos de exploração do trabalho escravo contemporâneo tanto no campo como na cidade, nos mais diversos setores econômicos. Desde 1995, quando o Estado brasileiro reconheceu o problema, em caráter oficial, e se iniciaram as operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, equipe interinstitucional de fiscalização coordenada pela Inspeção do Trabalho, foram flagrados mais de 50 mil trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravo. Somente no ano de 2015 foram alcançados nestas condições 1010 trabalhadores, sendo que 607 destes, quase 61%, exerciam atividades urbanas. Em termos reais, a escravidão jamais foi erradicada do território brasileiro, acompanhando-nos desde o Brasil colônia.

3. A escravidão contemporânea evoluiu, ademais, para as mais inusitadas formas de exploração do trabalho humano, com amplo espectro de danosidade, extrapolando os lindes conceituais originários das Convenções OIT nº 29 (1930) e nº 105 (1957). Não por outra razão, a Conferência Internacional do Trabalho (OIT) aprovou por ampla maioria (437 votos a favor), no ano de 2014, o Protocolo Adicional à Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho, para colmatar as lacunas de sua aplicação, de modo a reforçar as medidas de prevenção, proteção e indenização das vítimas, com vista à eliminação do trabalho forçado. Por esse protocolo adicional, sujeito à ratificação e com caráter vinculante, (a) otimiza-se a aplicação das legislações antiescravagistas; (b) fortalecem-se os serviços de inspeção do trabalho e as demais funções públicas destinadas à aplicação daquelas legislações; (c) impõe-se a formulação de uma política e de um plano de ação nacional para a supressão efetiva e sustentável do trabalho forçado, envolvendo o Estado, organizações de empregadores e de trabalhadores e outros grupos de interessados, como organizações da sociedade civil e vítimas em geral; (d) propõem-se alternativas de acesso efetivo a compensações por danos físicos, morais e materiais às populações escravizadas, colimando sua recuperação e readaptação; (e) obrigam-se os Estados à cooperação internacional para o combate ao trabalho forçado; (f) conferem-se garantias de indenidade jurídica às vítimas de trabalho forçado que se vejam obrigadas a participar de atividades ilícitas; e (g) protegem-se mais intensamente os trabalhadores migrantes, que são vítimas recorrentes da neoescravidão. O Brasil ainda não ratificou o Protocolo Adicional, embora já tenha ratificado as Convenções OIT nº 29 e nº 105 (ambas em 1957). Ao tardar, omite-se.

4. Não bastasse, o Parlamento brasileiro ensaia trilhar caminhos opostos. Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 81/2014 — que prevê a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde forem identificados casos de exploração do trabalho escravo contemporâneo—, segmentos conservadores passaram a advogar a restrição do conceito do artigo 149 do Código Penal (que define, no ordenamento jurídico brasileiro, a redução à condição análoga a de escravo, desdobrando-a em quatro modalidades típicas: o trabalho forçado, a servidão ou restrição ambulatorial por dívida, o trabalho degradante e o trabalho sob jornada exaustiva). Assim, p.ex., o PLS nº 432/2013, da Comissão Mista de Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação de Dispositivos da Constituição, tenciona promover tal restrição em seu artigo 1º, §1º, esvaziando radicalmente o conceito de trabalho escravo ao dele excluir, sem mais, tanto o trabalho degradante como o trabalho sob jornada exaustiva. Com muito custo, em dezembro de 2015, após rumorosa audiência pública presidida pelo Senador Paulo Paim, logrou-se retirar o regime de urgência que favorecia a aprovação desse projeto. Mas a ameaça segue pairando nos escaninhos do Legislativo.

5. Por tais razões, a CONATRAE e as entidades abaixo assinadas conclamam todos os cidadãos, as entidades sindicais, associações civis, os movimentos cívicos e sociais, os partidos políticos, as organizações não governamentais, as agremiações de estudantes, os grupos culturais e artísticos e todas as outras coletividades a um efetivo engajamento, por ações concertadas e estrategicamente pensadas, no combate à chaga social designada como trabalho escravo contemporâneo, notadamente em suas quatro modalidades essenciais (o trabalho forçado, a servidão ou restrição ambulatorial por dívida, o trabalho degradante e o trabalho sob jornada exaustiva), denunciando-as, onde houver, e exigindo diuturnamente as providências mais cabais das autoridades civis e militares constituídas, assim como das respectivas representações políticas. E, mais, pugna publicamente:

(a) pela integral manutenção do atual conceito de redução à condição análoga a de escravo (artigo 149/CP), envolvendo o trabalho forçado, a servidão ou restrição ambulatorial por dívida, o trabalho degradante e o trabalho sob jornada exaustiva;

(b) pela definitiva assimilação, por autoridades constituídas e atores sociais, de que o trabalho degradante compõe o núcleo essencial do conceito contemporâneo de escravidão, envolvendo todo e qualquer trabalho desenvolvido sob intensas violações à dignidade/integridade do trabalhador, notadamente em matéria de saúde e segurança do trabalho, de modo a representar, em seu conjunto, a configuração de condições labor-ambientais que impliquem a privação ou a negação do reconhecimento da dignidade humana;

(c) pela cessação de todas as iniciativas em curso, no Congresso Nacional brasileiro, que visam a restringir o conceito de escravidão contemporânea; e

(d) pela imediata ratificação do Protocolo Adicional à Convenção n. 29 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada pela Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra, no dia 11 de junho de 2014 (103ª reunião).

6. É de BERNARD SHAW, pelo controverso personagem John Tanner, a afirmação de que a escravidão humana atingiu sua pior condição em nosso tempo, sob a forma do trabalho livre assalariado (Man and Superman, 1903). Cento e doze anos depois, a assertiva revela-se mais verdadeira do que nunca.

7. Urge sensibilizar-se. Mobilizar-se. Infletir a rota. Resistir. Combater com convicção. E, finalmente, vencer. A CONATRAE, assim como as diversas entidades a seguir subscritas, repudiam o trabalho escravo.

Brasília, 28.1.2016.

COMISSÃO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO – CONATRAE





AJD – Associação Juízes para a Democracia

ABRAT – Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas

ADPF – Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal

AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil

ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos

ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho

ANPT – Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho

CETP/COETRAE/RJ – Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Estado do Rio de Janeiro

CF/OAB/CF – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

COETRAE/BA – Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Estado da Bahia

COETRAE/PA – Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Estado do Pará

COETRAE/TO – Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo do Estado de Tocantins

COMTRAE-SP – Comissão Municipal para Erradicação do Trabalho Escravo de São Paulo

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

MPT/CONAETE – Ministério Público do Trabalho – Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

PF – Polícia Federal

PGR/MPF – Procuradoria Geral da República - Ministério Público Federal

PRF – Polícia Rodoviária Federal

SINAIT – Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
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