Além do direito trabalhista: A constitucionalidade em disputa

“Quem quer marchar para o socialismo por um caminho que não seja o da democracia política chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto do ponto de vista econômico quanto político.” (Lenin)[1].

A supressão de direitos e a ameaça que paira sob as democracias aguçam as perplexidades contemporâneas. O sistema econômico, calcado na ideologia da nova ordem mundial, com a fleuma da modernidade, manobra para fazer o trabalho retornar à condição de não direito. A precarização no mundo é mais grave ainda em países periféricos, condenados a servir de baias de mão de obra barata.

Os freios trazidos pelo século XX, impostos pela Guerra Fria ante a intimidação da proposta socialista de um mundo coletivizado, extraíram do capitalismo uma sofisticada e importante arquitetura jurídica que o neoliberalismo hegemônico no século XXI quer afastar. A morfologia de retrocesso e o abandono do welfare state desfazem avanços civilizatórios e tratam como obstáculo a constitucionalidade moderna.

De 2003 a 2016, o Brasil recusou essa prescrição, adotando ações fundamentais e conjugadas de combate à desigualdade. Fortaleceu o setor público da economia, enfrentou os desequilíbrios regionais, investiu em pesquisa e afirmou os elementos de uma política externa soberana, conquistando o respeito das nações do nosso entorno Sul Americano e do Terceiro Mundo em geral. Contudo, após quase 30 anos de vigência da Constituição, entre os quais 12 anos foram de governos progressistas, que marcaram a saída do país do mapa da fome, não foi possível conter o golpe[2] protagonizado pelo Poder Judiciário, que afastou Dilma Rousseff (PT) da presidência e Luís Inácio Lula da Silva (PT) das eleições de 2018.

A artimanha foi admitida[3] por um dos mais expressivos representantes da direita brasileira, Aloísio Nunes Ferreira. Segundo o ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temer, “houve manipulação política dos procuradores da Lava Jato e do então Juiz Sergio Moro”[4]. E que agiam “imbuídos de um projeto político, que vai além do processo judicial”. 

O ano de 2020 tem revelado as implicações internacionais da trama, com a presença do FBI[5], urdida a pretexto de investigar casos de corrupção na América Latina, obtendo dados de empresas brasileiras, tais como Odebrecht e Petrobras – notórias geradoras de empregos e concorrentes, no mercado internacional, das similares estadunidenses.

A nefasta conjuntura brasileira tem flertado com o fascismo na era Bolsonaro e as ameaças de novo golpe sobre as instituições são realidade no Direito do Trabalho. Dilma Rousseff foi deposta da Presidência da República em 31 de agosto de 2016 e já no dia 23 de dezembro do mesmo ano, foi apresentado, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) nº 6.787/16, seguido da proposta de reformulação na Lei do Trabalho Temporário, para alterar sete artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).

A tramitação do PL durou dois meses e três dias (de 09/02 até 12/04 de 2017). As nove páginas iniciais, recheadas de desejos empresariais, atingiram 132 páginas. A alteração incidiu sobre mais de duzentos dispositivos da CLT, com a aprovação por 296 votos contra 177, na Câmara dos Deputados, e 50 a 26, no Senado. A sanção veio em julho de 2017 pelo vice, e substituto de Dilma, Michel Temer, cuja marca é o maior índice de reprovação na história dos Presidentes da República.

Assim nasceu a Reforma Trabalhista (lei nº 13.467/17), ponto de consenso entre conservadores e neoliberais, vigente a partir de 11 de novembro de 2017, com trâmite de estranha velocidade a revelar a ausência da participação dos maiores interessados: os trabalhadores. Rito apressado e violador da Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que exige a consulta prévia às organizações sindicais.

A lei justificada pela pretensa capacidade de gerar empregos, na verdade, reflete a desregulação, o retorno à premissa ultrapassada da “liberdade negocial do empregado”, sem a proteção do Estado, e o bloqueio ao acesso à justiça, negadas a gratuidade e a participação sindical, mesmo na hipótese de renúncia.

A crise sanitária mundial da Covid-19 desnudou os efeitos caóticos dessa desregulação trabalhista que, por si, já era responsável pela vulnerabilidade das relações laborais. O “empreendedor”, sem a rede estatal de proteção, como “gestor” da sua atividade, perdeu as condições do isolamento, essenciais para a contenção do vírus. A desigualdade social – flagrada no trato do neoliberalismo com os trabalhadores – faz da junção: modelo econômico/pandemia uma tragédia humanitária. Assim, na data em que escrevo este texto, o Brasil conta, infelizmente, 130 mil mortos.

Na prática, a informalidade expressa em contratos atípicos precarizou as condições de trabalho. E sob o prisma da doutrina, retirou a especificidade da Disciplina, Direito do Trabalho, ao ignorar o seu objeto de estudo: a relação de emprego. Magda Biavaschi[6], citando Krotoschin, evoca a frase inscrita na Constituição da OIT: “o Trabalho não é mercadoria” – diretriz definitiva para traçar a autonomia do  Direito do Trabalho em face do Direito Civil.

O Brasil, na mesma linha, consagra o Direito do Trabalho na sua especificidade ao incluí-lo na condição de direito social, nos termos do Capítulo II, art. 6º da Constituição, e acrescenta, no Caput do art. 7º, a vedação do retrocesso social, confirmando as orientações do Pacto São José da Costa Rica de 1969 (cuja ratificação formal da Convenção, pelo país, ocorreu em 1992). A nossa Carta faz mais: atesta a ordem econômica fundada na valorização do trabalho, art. 170; e declara a ordem social com base no primado do Trabalho, art. 193.

A Reforma Trabalhista, de inspiração antirrepublicana, violou as regras constitucionais – normas de ordem pública que o Estado deve velar e proteger –, desprezando o arcabouço jurídico de inserção social, presente no Direito do Trabalho.

O panorama acima indica a necessidade da preservação dos Princípios Constitucionais (art. 1.º), que não podem sofrer alterações aleatórias. O valor social do trabalho ocupa o mesmo patamar dos demais fundamentos da Magna Carta: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, livre iniciativa e pluralismo político. Portanto, não há violação aos princípios fundamentais que não arraste consigo a democracia e os pilares do Projeto de Nação. Exigir o respeito aos limites constitucionais é, apenas, o mínimo do que se deseja no enfrentamento ao neoliberalismo, sob o risco de o “Estado pós-democrático de direito”[7], percebido nas violações aos pactos sociais, ganhar vida longa.

O cumprimento do regramento jurídico é fundamental e, não à toa, “Uma defesa das regras do jogo” consta do subtítulo do livro de Norberto Bobbio: “O futuro da democracia”[8]. Tal proposta implica a acomodação no Estado Liberal? Em absoluto. A adoção dos limites legais tem o propósito de garantir a efetividade das autonomias judicial e legislativa, que têm sido utilizadas como um “cheque em branco”, dos quais são exemplos: a criminalização da política e o oportunismo das maiorias transitórias do legislativo, haja vista o desmonte da CLT.

O Supremo Tribunal Federal tem retardado julgamentos essenciais e, com tibieza, tecido elásticas interpretações das normas constitucionais. A conduta gera dúvida acerca do controle de constitucionalidade que queremos, tamanhos os riscos às harmonias e independência dos poderes, cuja autonomia encontra legitimação quando fundamentada na legalidade, observados os limites constitucionais.

Ao término desse texto, a tecla repetida em favor dos valores republicanos deixa a sensação de que venho perdendo para a originalidade. Acredito merecer um desconto, dada a importância do que defendo, quando até o próprio Marx elogiou os avanços da formação social capitalista em relação ao atraso feudal que a antecedeu. Autoriza-me a defesa de institutos da democracia liberal em face do fascismo ideado por Bolsonaro?


 *Raquel Rodrigues Braga é Juíza do Trabalho, TRT/RJ, aposentada, com MBA em Poder Judiciário pela FGV e Especialista Crítica em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide Sevilha-ES, integrante da AJD e ABJD.

 Artigo publicado originalmente no site   Justificando no dia 17 de setembro de 2020. 

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