“O senhor é o juiz Buch?”*

Escrevi um texto no final de semana e, depois de algumas revisões, eu o dei por encerrado, pronto para publicação. Dias depois, porém, algo mais aconteceu, que acrescentarei na parte inicial do enredo.

Na saída do Fórum para o almoço, em frente à portaria, um jovem se aproximou e me estendeu a mão.

"- Não posso lhe apertar a mão, é a pandemia — alertei.

- Então, de maneira amistosa, fechei o punho, o que o rapaz também fez, e assim nos cumprimentamos, punho a punho, um costume dos novos tempos.

- O senhor é o juiz Buch? — falou o rapaz, num misto de pergunta e afirmação.

- Sim, sou. O que você deseja?

- Meu nome é Carlos — fictício —, ganhei a liberdade faz 15 dias. Queria saber se já tenho que me apresentar na Justiça.

- Carlos, por enquanto as apresentações estão suspensas.

- Ah! Mas tenho umas dúvidas. Queria saber sobre o tempo de pena que ainda falta cumprir.

- Essa informação deve estar no documento que você recebeu quando da soltura. Vá até ali na portaria e veja como fazer um agendamento. Assim, no dia marcado, você poderá entrar e ir ao cartório para se inteirar de tudo. E procure um advogado.

- Mas não tenho como pagar um.

- Então vá na defensoria pública, o endereço você igualmente consegue ali na portaria.

- Está certo, seu juiz, vou ali agora.

- Sim, faça isso. Vai dar tudo certo. Tenha um bom dia!

- Obrigado. Bom dia para o senhor também!"

Esse acréscimo, ora feito, é importante para ilustrar mais ainda o que eu queria dizer no texto original, que agora segue.

Num dia qualquer desta primavera, ao retornar para o Fórum após o almoço, entrei pelo acesso principal, que fica de fronte à rua. Na portaria, um rapaz falou meu nome, “Dr. Buch, seu juiz”. Olhei para ele e acenei, imaginando que devia se tratar de um apenado em regime aberto ou sursis.

Quando parei para aferição da temperatura, protocolo exigido para todos que acessam o prédio, a vigilante se aproximou e falou de uma pessoa que aguardava do lado de fora, na fila por onde o público entra, e que insistia em falar comigo ou com alguém da vara de execuções penais. Ela apontou para o jovem que, segundos antes, havia dito meu nome. Ao que parecia, ele usava tornozeleira eletrônica e precisava entregar algum documento, sendo que teria tentado contato por telefone, mas não conseguido, tendo assim resolvido vir ao Fórum pessoalmente.

Retornei para perto dele e disse que logo o atenderiam. Chamei o assessor que trabalha comigo, para que verificasse a situação e pedi que deixassem o moço acessar o interior do prédio, mesmo sem horário agendado — outro protocolo da pandemia — respeitando-se os passos sanitários e de segurança. Depois, observando o assessor se dirigir ao rapaz, o convidar a apresentar os documentos, fazer o cadastro e adentrar, agradeci a solicitude de todos e subi as escadarias em direção ao gabinete.

Diante da pandemia, os Fóruns ficaram fechados por cerca de seis meses, com 100% de trabalho remoto. A retomada presencial tem sido gradualmente. Nesta etapa, cerca de 30% dos servidores retornaram e os demais permanecem trabalhando de casa. A entrada do público é bastante controlada. Atos presenciais são exceções e a maioria deles são feitos de maneira virtual, inclusive as audiências.

Se por um lado a gravidade da situação pandêmica, que persiste e continua ceifando vidas, implicou nessas medidas, orientadas pela ciência, por outro a crise permitiu que os instrumentos tecnológicos, antes usados com mais parcimônia, fossem aprofundados e ampliados, de forma que a produtividade dos servidores inclusive aumentou no período.

Vivemos num mundo cujas distâncias se encurtaram, conseguimos saber o que ocorre do outro lado do planeta em tempo real, fazemos chamadas de áudio e vídeo para qualquer lugar, a qualquer hora. Houve uma evolução, uma boa evolução, ao menos em vários pontos de nossas vidas em sociedade. Pergunte a uma avó o que ela acha de poder ver e ouvir com facilidade seu neto na tela de um aparelho de celular, a milhares de quilômetros de distância! Não preciso dizer a resposta.

Porém, mesmo diante desses avanços, será que ao apostarmos todas as fichas na tecnologia da informação, em softwares e hardwares, não estamos nos esquecendo de nossa origem humana, feita de carne e osso?

A fala é uma das expressões máximas da nossa espécie. Quando essa fala é filtrada por um programa de computador, por melhores que sejam os equipamentos e recursos, ela perde boa parte de comunicação. Nada se iguala à fala presencial, face a face, que vai muito mais além do som que sai de nossas bocas. Nós nos interpretamos pelo olfato, pelos gestos, pelos comportamentos e por muitos outros sinais.

Nas audiências que realizo presencialmente na penitenciária, os detentos chegam escoltados, com máscaras, sentam-se a mais de dois metros. Quando suas algemas são tiradas, eu a eles me apresento e lhes explico como ocorrerá o ato. Não raras vezes, assuntos que não dizem respeito ao processo vêm à tona, como atendimento à saúde, problemas familiares, informações sobre trabalho, estudo, acesso a livros, abusos… Tenho certeza que muitos desses assuntos não seriam abordados se estivéssemos todos numa tela acética de um computador.

E mais! Como ficam as pessoas livres, sem rede de wi-fi, que sequer saneamento básico em suas casas possuem, que dirá equipamentos digitais? E quem não sabe lidar com essas ferramentas, que não foi educado, que não sabe ler ou escrever integralmente?

Não é novidade que numa sociedade de consumo neoliberal, os pobres são indesejáveis, pois não consomem e não interessam ao mercado. Isso pode se refletir com maior profundidade na defesa dos direitos, fazendo com que, mais e mais, apenas os incluídos, os do lado de cá da margem, alcancem a Justiça. Já os pobres, os pretos e periféricos deixarão de vez de alcançá-la, para em seu lugar serem por ela alcançados e neutralizados.

A Justiça não pode exigir uma escalada cheia de provas, algumas impossíveis de superar por boa parte da população. O que já era distante, pode ficar mais distante ainda.

Aqueles rapazes da portaria, nas duas ocasiões, apenas com suas presenças físicas conseguiram se comunicar com a Justiça. Quando me chamaram, o de hoje e o de tempos atrás, queriam respostas. Eram ambos apenados de vinte e poucos anos, em condições economicamente precárias, socialmente vulneráveis (regra entre os presos do Brasil, em sua maioria negra, diante do racismo estrutural), que desejavam cumprir suas penas corretamente. Eles conseguiram o que buscavam, mas quantos mais conseguem?

O primeiro gesto da Justiça não é o intelectual ou moral, mas sim arquitetural. A sensação de entrar fisicamente no “Palácio da Justiça” antecipa a própria justiça. É nesse proceder, na sensação de pertencimento, que a comunicação se inicia e se realiza em sua plenitude.

O novo corona vírus tem imposto barreiras. Que essas barreiras caiam quando a pandemia passar!


 João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD

 Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 04 de novembro de 2020. 

 

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