A Falácia da Emenda 3

Márcia Novaes Guedes

Não obstante o veto do Presidente Lula, à emenda 3 continua ameaçando as conquistas duramente obtidas pelos trabalhadores brasileiros ao largo de um século de lutas. Artifício agregado ao Projeto de Lei (PL) que cria a super-receita, a emenda é um enxerto, apresentado pelo senador Ney Suassuna ao PL 6.272/05, criado para otimizar a arrecadação tributária e previdenciária, centralizando a competência no Ministério da Fazenda. A dissonância entre o projeto da super-receita e a emenda enxertada, às pressas, para atender aos interesses do setor de informática, jornalismo e planejamento e comunicação, tem a sutileza de um trator.

O texto da emenda é curto e preciso, aliás, como devem ser as coisas destinadas a alcançar resultados com eficiência: "No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá ser precedida de decisão judicial".

Se aprovada, a emenda de uma só tacada retira dos fiscais do trabalho o poder de identificar e declarar o vínculo de emprego em contratos destinados a fraudar a legislação trabalhista, a exemplo daqueles em que o empregador obriga o empregado a abrir uma firma individual para ser contratado sem as garantias do estatuto mínimo; inviabilizam-se os eficientes programas em parceria com entidades da sociedade civil de erradicação do trabalho escravo, da exploração do trabalho infantil; e inviabiliza-se também a inversão tendencial da precarização das relações sociais, aliás, uma das metas programáticas do Ministério do Trabalho e Emprego.

A parceria entre MT e MPT na erradicação do trabalho escravo tem permitido à Justiça do Trabalho proferir condenações relevantes em danos morais e cujo valor vai para o FAT __ Fundo de Amparo ao Trabalhador, bem como o lançamento do nome dos culpados na lista suja. A constituição desta "lista" permitiu a identificação da cadeia produtiva do trabalho escravo e tornou possível a celebração de um pacto pelo qual as grandes empresas se comprometeram a não comprar produtos oriundos da mão-de-obra escrava. Desde o início do programa, foram libertados cerca de 25 mil trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravos, a maioria concentrados nas atividades de criação, pastagem e de insumos agrícolas, seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e, com menor percentual, na atividade de plantio e corte da cana-de-açúcar.

Sob o ponto de vista da norma jurídica, a emenda encontrava-se eivada de vícios de inconstitucionalidade, já que golpeava dois dos princípios fundantes da República: a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, insculpidos logo no art. 1º da Constituição Federal, incisos III e IV. O estrago provocado pela emenda levaria de roldão tratados e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica e as convenções da OIT 29 e 105, que tratam da abolição do trabalho forçado, de 1930 e de 1957, respectivamente, e a convenção 81, de 1947, que torna obrigatória a inspeção do trabalho na indústria e no comércio. Por esse viés, a emenda acaba ferindo, uma segunda vez, a Lei Maior do país, já que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados pelo Congresso Nacional, equivalem a emendas constitucionais, é o que estabelece o art. 5º, LXXVIII, § 3º da Constituição Federal.

Atentando contra a separação e convivência harmônica entre os Poderes do Estado, a emenda dava à Justiça do Trabalho o poder exclusivo de dizer da existência de uma relação de emprego. Ora, mas o Judiciário, por sua própria natureza, é um poder inerte, somente funciona se provocado, isto é, a parte que se sente ofendida em um direito deve tomar a iniciativa de ajuizar uma ação, dando-se início a uma demanda, que poderia muito bem ser evitada com a fiscalização eficaz do MTE. Nisto, precisamente, consiste o tiro de misericórdia da emenda nas maiorias que clamam por reconhecimento e dignidade no trabalho. Inúmeros são os casos em que a JT depende necessariamente da fiscalização do MTE, cujas provas, obtidas durante a blitz, são decisivas para o deslinde dos conflitos. Ressalte-se, ainda, que a distinção entre o contrato de emprego e o contrato de prestação autônoma de serviços, sem as provas pré-constituídas pelos auditores fiscais, constitui-se no calcanhar de Aquiles do processo trabalhista.
Nossa singular condição de magistrada-cronista nos abre uma janela privilegiada para darmos testemunho de que, não apenas naquelas situações limites do trabalho escravo e do trabalho infantil, com freqüência, apreciamos casos em que a eficiência da fiscalização do Ministério do Trabalho é decisiva na erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais. O caso mais recente que julgamos envolvia um Instituto de Beleza e uma cabeleireira. Segundo a proprietária do negócio "todo o pessoal do salão trabalhava nessas condições: ´se produzir, recebe, se não produzir, não recebe´, até que a fiscalização do Ministério do Trabalho visitou o estabelecimento". Dessa data em diante, a empregadora decidiu regularizar a situação do seu pessoal, inclusive da cabeleireira, registrando o contrato e assinando a CTPS, recolhendo os encargos e pagando o salário mínimo sempre que a produção não alcance aquele valor.

Bem analisada, essa emenda integra a lógica da razão cínica e consiste em mais uma deslavada tentativa de reeditar no mundo do trabalho a agenda do século XVIII, deletando as conquistas sociais de proteção ao trabalho humano. A segurança jurídica proclamada pelos defensores da emenda é uma falácia, a norma trabalhista é a única capaz de assegurar tal objetivo, dado que é a variante de uma estratégia mais ampla na formação do consenso. Por outro lado, já está provado que a flexibilização não gera empregos, até porque, o termo ´emprego´ implica assunção de obrigações e encargos previamente regulados por uma lei. Ao invés disso, essa emenda ampliaria os índices já insuportáveis de trabalho semi-forçado, a exemplo do que ocorre nas plantações de cana-de-açúcar no Sudeste do país, onde se reeditou a morte por exaustão, antes conhecida nos campos de concentração nazistas e stalinistas.
Aprovar a emenda implicaria em chancelar o fenômeno da "adiaforização social", isto é, abandonar os pobres à própria sorte e liberar a produção de seres supérfluos, gente que não pertence ao mundo de forma alguma, e, por isso mesmo, o primado de que todos são iguais perante a lei não os alcança. Ser supérfluo, conforme explica Hannah Arendt, implica na perda das capacidades políticas e de relacionamento social. "Nessa condição, o homem se vê abandonado pelo mundo das coisas, visto que não é reconhecido como homo faber, mas tratado apenas como animal laborans, cujo necessário metabolismo com a natureza não é do interesse de ninguém". A norma trabalhista baliza as regras de um contrato mínimo, considerando que o contratado é um ser humano, credor de respeito e dignidade, aliás, a precondição indispensável para que se possa conduzir uma vida humana digna deste nome.

A racionalização neoliberal guarda algo em comum com o totalitarismo de feição stalinista e nazista: ambos partem do pressuposto de que os seres humanos são supérfluos e assim negam o paradigma kantiano da dignidade humana e a conquista histórico-axiológica que tem no ser humano o valor-fonte. Ainda não se tinha visto um ataque tão contundente aos direitos sociais. A vitória provisória dos trabalhadores, porém, se deveu mais à solidariedade do Governo do que à mobilização social. Por isso mesmo, as forças democráticas não podem descansar, haja vista que os "delinqüentes acadêmicos" encontram-se bem apeados no poder e trabalham sem solução de continuidade engendrando regras jurídicas que fariam inveja aos tecnocratas que subservientemente serviam os generais.


Márcia Novaes Guedes é Juíza Federal Titular da VT de Guanambi [Ba] e membro da AJD.