Ofício ao Corregedor da Justiça do Trabalho Ministro Ives Gandra Martins Filho

EXCELENTÍSSIMO SENHOR CORREGEDOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO MINISTRO IVES GANDRA MARTINS FILHO

Assunto: “disciplina judiciária”



“É preciso solidarizar-se

com as ovelhas rebeldes”

Fernando Pessoa



A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA - AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes e juízas trabalhistas, federais e estaduais de todo o território nacional e de todas as instâncias, e que tem por objetivos primaciais a luta pelo império dos princípios democráticos, dos direitos humanos e da independência judicial, vem à presença de Vossa Excelência, respeitosamente, representada pelo presidente de seu Conselho Executivo, expor e requerer ao final o seguinte:

Consoante matéria veiculada em redes sociais, a partir de publicação feita no site do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, consta que Vossa Excelência ressaltou como finalidade prioritária dessa Colenda Corregedoria, bem como “de quem preside um tribunal”, a harmonização das relações no Judiciário.

Segundo a mencionada notícia, Vossa Excelência, com relação a essa “harmonização das relações no judiciário”, teria dado destaque à necessidade de se detectar e sanar, nas visitas correicionais, eventuais pontos de desequilíbrio, especificamente “a detecção de como nós, da Justiça do Trabalho, estamos harmonizando as relações de trabalho na nossa jurisdição”.

E, ainda segundo a referida notícia, Vossa Excelência afirmou que o significado da mencionada “busca da harmonia” estaria diretamente vinculada à capacidade de se dar vazão aos processos e, ainda, à “disciplina judiciária”, que seria aferida “com base na taxa de recorribilidade”, entendida como uma “postura avessa à da jurisprudência pacificada”.

Contudo,data maxima venia, essa afirmação de Vossa Excelência com relação à invocada “disciplina judiciária” é extremamente preocupante, não apenas para os juízes e juízas trabalhistas, mas, sim, para todos os magistrados e magistradas que têm o compromisso, em um Estado de Direito Democrático, de exercer a jurisdição com independência.

Com a devida vênia, é preciso lembrar de que constitui apanágio da atividade judicante a independência do Julgador ao proferir as suas decisões, o que representa uma garantia democrática, não apenas para os juízes e juízas, mas, sim, para todas as pessoas que vivem em um Estado de Direito Democrático.

E a plenitude da independência judicial como garantia fundamental exige, como afirma Eugenio Raúl Zaffaroni, que “o magistrado não esteja submetido às pressões de poderes externos à magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá pressões dos órgãos colegiados da própria magistratura”.

A independência judicial, decididamente, visa assegurar a imparcialidade e a equidistância dos interesses das partes, para vincular o Julgador, apenas e tão-somente, ao interesse da sociedade e às suas necessidades.

Com efeito, como ensina Fabio Konder Comparato, “os juízes individualmente e o judiciário como órgão estatal não estão subordinados a nenhum outro poder do Estado, mas vinculam-se, sempre, diretamente, ao povo soberano”, pois o judiciário “é um mecanismo de proteção dos poderes públicos destinado a proteger os direitos fundamentais da pessoa humana”.

Com a devida vênia, é necessário, em uma democracia, que o juiz tenha e exerça juízo crítico nos casos que lhe são submetidos, seja quanto às normas legais, seja quanto à sua aplicação, cumprindo, assim, a sua missão constitucional de garantidor de direitos com pena independência para formar e externar a sua convicção.

Sem juízo crítico, e sem compromisso ético e político com a realização de um direito transformador, o Juiz tornar-se-á um autômato, que repete ideias cristalizadas que o próprio tempo se encarrega de infirmar e mostrar as falhas.

È por isso que é extremamente preocupante, data venia, quando se pretende engessar a atividade crítica, construtiva e transformadora dos juízes, impondo-se ao sistema judicial o conceito de “indisciplina judiciária” como uma “postura avessa à da “jurisprudência pacificada”.

Esse conceito de “indisciplina judicial”, data maxima venia, é fruto de uma inaceitável atitude ideológica que afronta a principiologia democrática e representa uma equivocada tentativa de imposição, por pressão interna e verticalizada, da obrigatoriedade da recusa à multidiversidade, que enriquece as pessoas humanas e de que é farta a vida.

Decididamente, reunir todos os questionamentos sob um mesmo signo, sob a égide de uma pretensa pacificação do saber, pode levar ao reducionismo das ideias e à instauração de um pensamento hegemônico e único, desconsiderando-se as naturais teorias, correntes e disputas que caracterizam as ciências humanas e sociais no âmbito dialético do exercício da jurisdição, especialmente em uma sociedade multifária e repleta de contradições e desigualdades.

Aliás, com a devida vênia, cabe lembrar, neste momento, o discurso proferido por Umberto Guaspari Sudbrack, por ocasião do lançamento do Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, no dia 29 de novembro de 2001:

“Sabe-se que, na era da globalização, onde até mesmo as funções altamente qualificadas não são devidamente aproveitadas, a flexibilização do trabalho e o desenvolvimento tecnológico estão reduzindo o mercado de trabalho a uma lógica cruel em que a mobilidade exigida para os novos tempos competitivos é o fator decisivo para explicar o desemprego em massa. As relações geradoras de exclusão vêm deteriorando a qualidade de vida de grandes contingentes da população mundial e nas sociedades tradicionais, imersas na miséria, reduzem-se as perspectivas de melhoria de vida. Incrementam-se, por outro lado, a discriminação e as xenofobias. Novos patamares de desigualdade são criados com a consequente cisão da sociedade entre integrados e excluídos”.

Como se vê, diante dessa realidade desigual e cambiante, é evidente que os juízes e juízas não podem jamais ficar, como Prometeu, presos aos rochedos do imobilismo e subjugados pelas correntes da jurisprudência “dominante” ou “pacificada”.

Interesses de classes dominam as relações sociais, mas, enquanto isso, nosso sistema jurídico mascara contradições sociais profundas e antagonismos inconciliáveis, impondo ao sistema judicial o mito de uma sociedade sem fraturas e noções de igualdade entre classes, de unidade social, de identidade e de liberdade, onde, na realidade, só há divisão, ruptura, contradições, desigualdade, exclusão e opressão individual.

Assim, com a devida vênia, não é possível que se pretenda impor aos juízes e juízas o exercício da jurisdição com base apenas no ensino jurídico oficial, na “sabedoria codificada” e na convivência “respeitosa” e submissa com as instâncias superiores, fruto de uma inaceitável verticalização das relações judiciais.

É por isso, data maxima venia, que os juízes e juízas não podem ter o seu ousio sepultado pela “jurisprudência pacificada”, nem por uma formação bibliográfica e legalista decorrente do pragmatismo positivista que os conduz a uma especialização fechada e formalista e ao imobilismo acrítico.

Assim, os juízes e juízas, dotados de razão e emoção, com as quais devem traçar as pautas de sua atuação, devem ter garantida, como imprescindível para o exercício da jurisdição, a liberdade de convicção fundamentada para o embasamento de suas decisões.

Aliás, é exatamente por isso que a ONU, ao eleger os Princípios Básicos da Independência da Magistratura, durante o seu 7º Congresso, realizado em 1995, assentou que “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo”.

Portanto, a Associação Juízes para a Democracia espera, com o mais profundo respeito, que a sapiência e o bom senso de Vossa Excelência não permitam levar adiante esse equivocado entendimento sobre a “disciplina judicial”, o qual poderá projetar na mente dos atuais e dos futuros juízes que o dever de obediência é um valor que deve prevalecer em relação à liberdade de pensar e a independência para julgar.

Data maxima venia, as consequências advindas da adoção dessa postura “disciplinadora”, por certo serão ainda mais nocivas que os males que a referida diretriz pretendeu resolver.

Respeitosamente, a AJD conta com vossa grandeza intelectual e espiritual para retroceder.

Por derradeiro, aproveito o ensejo para externar meus protestos de admiração e respeito por Vossa Excelência.

São Paulo, 26 de março de 2013.



José Henrique Rodrigues Torres

Presidente do Conselho Executivo

Associação Juízes para a Democracia

juíEste endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. - (011)3242.8018