O Salão dos Estudantes, da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), recebeu na noite desta terça-feira (28), o Ato pelas Vidas na Cracolândia. Moradores, ativistas, órgãos do estado e organizações da sociedade civil estiveram presentes com objetivo de denunciar as arbitrariedades que estão ocorrendo na região, assim como apontar soluções que garantam a dignidade das pessoas afetadas no centro da cidade. O juiz Roberto Corcioli, integrante do núcleo da AJD-SP, foi um dos articuladores do encontro. Além dele, a presidenta da Associação, Cristiana Cordeiro, também participou do ato.
Ao longo de todas as falas feitas na noite, ficou evidente o caráter higienista e racista da política implementada pelos governos do estado e do município de São Paulo, com anuência do poder judiciário. Sobra violência e faltam políticas eficazes de redução de danos, socioeducativas, econômicas e psicossociais. Apesar da complexidade do contexto em que vivem as pessoas com dependência química ou que simplesmente estão em situação de rua, as soluções existem, mas elas parecem não importar para os gestores públicos. O desmonte de programas que trouxeram bons resultados sem a necessidade do uso da força, como o São Paulo de Braços Abertos, foi uma das grandes reclamações ouvidas.
Moradora da região e ativista, Janaína Xavier ainda tem um misto de emoções ao falar sobre o que acontece na chamada Cracolândia, mesmo vivendo o cotidiano da região. "Como que a gente vai tratar uma violência, devolvendo com violência? Isso só traz revolta. E eu sou uma pessoa que quando vejo essa situação fico muito revoltada, porque eu tenho uma filha dependente química, e o que eu quero é uma solução para ela sair dessa situação, como eu saí. Mas a minha solução foi ter uma oportunidade, alguém me estendeu a mão", afirmou.
Nego Bala é um jovem artista que mora no cruzamento da Avenida São João e Duque de Caxias, um dos epicentros das ações conjuntas da Guarda Municipal, Polícia Civil e Polícia Militar. Ele esteve acompanhado de outros amigos, que também moram na região, denunciando que são parados sistematicamente pelas forças de segurança sob a alegação de que “possuem estereótipos de bandido”. “Algum neguinho de quebrada está tendo que dar satisfação por andar de bicicleta, e se ele está de bicicleta ele tem que dar outras satisfações: onde ele mora? Se ele já foi preso? O que ele anda fazendo?”, relatou Nego Bala.
Também acompanhando o grupo de jovens moradores, Flávio Falconi denunciou a violência dos órgãos de segurança pública, e que a guerra às drogas não existe. “Não existe tráfico de drogas sem a presença do Estado, vocês que estudam direito sabem disso. Existe uma ordem dada para a IOPE (Inspetoria Regional de Operações Especiais), que é para a cada meia hora colocarem os usuários para andar. E isso está acontecendo há 24 horas sem parar, há dois meses”, afirmou.
Líder do Centro Islâmico da Penha, zona leste de São Paulo, o Sheikh Rodrigo Jalloul desenvolve um trabalho de acolhimento da população em situação de rua e usuários de drogas, em parceria com o Padre Julio Lancellotti. Ele denuncia os medicamentos que estão sendo oferecidos como tratamento nos CAPs (Centros de Atenção Psicossociais). “Um remédio que você dá para uma pessoa dependente química, que não pode ser ingerido com álcool e com droga, isso não é tratamento, isso é um extermínio. São Paulo tem pelo menos 35 mil pessoas em situação de rua, mas nós temos um número muito maior de usuários e dependentes químicos. Já imaginou se o governo tiver o real interesse em tratar essas pessoas da forma correta?”, questiona.
Para o Sheikh, na medida em que os dependentes químicos recuperarem suas vidas, eles vão buscar seus direitos, como trabalho, saúde e educação, o que vai gerar um custo a mais para o poder público. Transformar estas pessoas em zumbis e aplicar um medicamento perigoso é uma política de extermínio, segundo o líder religioso.
Um projeto nacional de extermínio
A Associação Juízes para a Democracia foi uma das organizações responsáveis pela promoção do ato. A presidenta Cristiana Cordeiro teve a oportunidade de falar no encontro. Ela direcionou sua mensagem para os estudantes de direito presentes na noite. “A gente começa nas primeiras lições de direito falando de Constituição, que é a lei maior que a gente tem no país, então, eu vejo poucas pessoas se concentrando na parte inicial da Constituição, a parte mais importante, que diz o tipo de nação que queremos viver”.
Cristiana também afirmou que existe um processo de eliminação de vidas em todo o país, e o que acontece na Cracolândia, termo que ela fez questão de criticar, é parte de todo esse projeto nacional de extermínio. “Todos os dias pessoas estão sendo mortas pelo o que elas são, por quem elas são e porque elas não se enquadram num projeto de futuro de um país, que pela nossa Constituição, deveria ter como objetivo construir uma sociedade livre, justa e solidária”, afirmou.
Um documento foi redigido a partir de todas as sugestões e falas realizadas no ato. A proposta é que ele sirva como uma plataforma mobilizadora por políticas públicas reais e efetivas em favor da população da Cracolândia.
Na manhã desta quarta-feira (29), Cristiana Cordeiro aproveitou para visitar a Paróquia São Miguel Arcanjo, liderada pelo Padre Julio Lancellotti. Ela ajudou a fazer a acolhida e fornecimento de café da manhã para a população em situação de rua, que recebe atendimento no local. Em seguida, Cristiana participou de uma roda de conversa para debater o tema aporofobia, uma prática de aversão aos pobres expressada na arquitetura das cidades. Atualmente, o Padre Julio está empenhado num projeto de lei que coíba este tipo de construção na cidade de São Paulo. A AJD está engajada na campanha #aporofobianão.
