Nota Técnica sobre o Projeto de Lei "Escola sem Partido"

Cidadania
“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”

Paulo Freire



A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar a presente NOTA TÉCNICA sobre o Projeto de Lei nº 867/2015, conhecido como “Escola sem Partido”, nos seguintes termos:



1.- INTRODUÇÃO. O PROJETO DE LEI N. 867/2015 E O MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO.

O Projeto de Lei n. 867/2015, de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF), gerado no ventre do "Movimento Escola sem Partido", como está expressamente afirmado em sua própria “Justificação”, bem como o Projeto de Lei n. 193/2016, do Senador Magno Malta (PR-ES), que proíbe, inclusive, a discussão de gênero nas escolas, é inconstitucional, pois viola normas e princípios consagrados pela Constituição Federal e, também, pelo sistema de proteção dos Direitos Humanos.

Com efeito, esse projeto viola o direito fundamental à liberdade de expressão e manifestação de pensamento, ignora a proibição constitucional à censura, impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, vulnera o princípio da igualdade, coloca os professores e professoras sob constante vigilância e censura, negando-lhes a liberdade de cátedra, nega aos alunos e alunas a possibilidade do exercício do direito constitucional a uma educação emancipatória, impossibilita a ampla aprendizagem, confunde a educação escolar, que é de responsabilidade estatal, com aquela que é fornecida pelos pais, ou seja, confunde espaço público com espaço privado, viola o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, contraria a exigência constitucional da laicidade do Estado e fere de morte, em sua essência, o direito constitucional à educação e o seu significado político e social.

2.- PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DE DIREITOS HUMANOS.

Os princípios “encimam a pirâmide normativa, são normas jurídicas e não simples recomendações programáticas” (COMPARTO[1]).

Princípios não são apenas “conjuntos de valores e tampouco meras indicações programáticas, mas normas jurídicas, no sentido de que são válidas e que são aplicáveis. E, mais, são ainda referências paras as regras, seja porque estão inscritos explicitamente na Constituição, seja porque dão coerência ao sistema que ela abriga. Princípios têm, como diz Canotilho, uma função estruturante no sistema jurídico, e, exatamente por isso, são fundamentos para as regras (apud Gomes, 2003:55). Princípios se diferem das regras, sobretudo, pelo alto grau de abstração, em contraposição ao comando objetivo daquelas. Embora a aplicação das regras seja direta e de mais fácil compreensão, é incorreto subordinar princípios às regras ou relegar princípios às lacunas da lei” (SEMER[2]).

É por isso que “a lesão ao princípio é indubitavelmente a mais grave das inconstitucionalidades, porque sem princípio não há ordem constitucional e, sem ordem constitucional, não há garantia para as liberdades” (BONAVIDES)[3].

Assim, em face da necessidade da garantia da mantença incólume da principiologia constitucional de nosso Estado Democrático e Social de Direito, não se pode adotar conduta cega, acrítica e asséptica diante de leis, prestigiando-se o positivismo legalista, inspirado em Monstesquieu e Napoleão, ou no dogmatismo hegeliano da racionalidade da lei, estrangulando o sistema legal nos seus limites formais.

Mas os princípios constitucionais não se resumem àqueles consagrados explícita ou implicitamente pela Constituição Federal, pois devem ser respeitados, também, os princípios adotados pelo sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos, os quais, de acordo com a nossa sistemática jurídica, têm natureza constitucional.

Com efeito, quando o Estado Brasileiro ratifica Tratados ou Convenções internacionais de Direitos Humanos, seus poderes legislativo, executivo e judiciário ficam submetidos a eles, por força de imperativo constitucional, o que os obriga a velar, também, para que as suas normas, regras e princípios não sejam prejudicados pela aprovação e aplicação de leis contrárias ao seu objeto e fim.

De acordo com o disposto nos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Federal, todos os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil têm estatura de norma constitucional e estão metidos a rol entre as garantias fundamentais, com natureza de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da CF/88.

Como assevera Flávia Piovesan, invocando ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade e de José Joaquim Gomes Canotilho, “os direitos garantidos nos tratados de Direitos Humanos de que o Brasil é parte, integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Essa conclusão advém ainda da interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, com parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional”.[4]

E, como ensina SARLET, “a norma contida no § 2º do art. 5º da CF traduz o entendimento de que, além dos direitos expressamente positivados no capítulo constitucional próprio (dos direitos e garantias fundamentais), existem direitos que, por seu conteúdo e significado, integram o sistema da Constituição, compondo, em outras palavras, na acepção originária do direito constitucional francês, o assim chamado bloco de constitucionalidade, que não se restringe necessariamente a um determinado texto ou mesmo conjunto de textos constitucionais, ou seja, não se reduz a uma concepção puramente formal de constituição e de direitos fundamentais. Assim, a despeito do caráter analítico do Titulo II da CF, onde estão contidos os direitos e garantias como tal designados e reconhecidos pelo constituinte, cuida-se de uma numeração não taxativa. O art. 5º, § 2º da CF representa, portanto, uma cláusula que consagra a abertura material do sistema constitucional de direitos fundamentais como sendo um sistema inclusivo e amigo dos direitos fundamentais”.[5]

Com efeito, “interpretando-se o § 3º do art. 5º da CF no contexto onde se inserem os tratados de direitos humanos na Constituição, chega-se à conclusão que os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional em virtude do disposto no § 2º do art. 5º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela dotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’, pois na medida e que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui nos seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’ e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional”.[6]

Portanto, os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil estão inseridos em nosso ordenamento jurídico entre as normas constitucionais de proteção dos direitos fundamentais, constituindo, assim, o seu bloco de constitucionalidade.

Não se pode admitir, pois, qualquer antinomia entre as leis, as normas constitucionais e os Tratados e Convenções Internacionais de proteção dos Direitos Humanos, especialmente no que diz respeito aos seus princípios, que são normas e, por isso, devem ser respeitados também[7].

Em consequência, cabe ao poder legislativo, bem como aos poderes executivo e judiciário, impedir a aprovação e a aplicação de leis que contrariem, não apenas as normas constitucionais, mas, também, aqueles que afrontam as regras e princípios dos Tratados Internacionais que versam sobre Direitos Humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas pelos denominados “treaty bodies” – Comissão Internamericana de Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas, respectivamente.

3.- PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE GARANTIA DO DIREITO A MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

A Assembleia Constituinte, ao editar a atual Constituição Federal, coroando o processo de redemocratização iniciado no Brasil no final da década de 1970, e rompendo definitivamente com o regime ditatorial implantado pelo golpe militar de 1964, consagrou, em seu artigo 5º, IV, metido a rol entre os direitos e garantias fundamentais, a liberdade de expressão dos cidadãos e cidadãs como um objetivo de máxima importância para a garantia plena do Estado Democrático e Social de Direito.

Aliás, no espectro constitucional, esse direito também é assegurado a todos os cidadãos e cidadãs nos incisos V, IX, XIV e XVI do artigo 5º, no inciso III do artigo 139, na alínea “a” do inciso VI do artigo 150, nos incisos II e III o artigo 206 e nos artigos 215 e 220 a 224 da Constituição Federal/88.

No sistema global de proteção dos Direitos Humanos, a liberdade de expressão é garantida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 19) e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 19).

E, no âmbito regional, esse direito fundamental é assegurado, expressamente, pela Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13).

Além disso, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão[8], por sua vez, afirmando que a consolidação e o desenvolvimento da democracia dependem da existência de liberdade de expressão e que é inadmissível obstaculizar o livre debate de ideias e opiniões, estabeleceu, entre outros, os seguintes princípios, que devem ser observados pelos Estados subscritores da Convença Americana de Direitos Humanos, entre os quais está o Brasil: 1. A liberdade de expressão, em todas as suas formas e manifestações, é um direito fundamental e inalienável, inerente a todas as pessoas; 2. Toda pessoa tem o direito de buscar, receber e divulgar informação e opiniões livremente; 5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei; e 6. Toda pessoa tem o direito de externar suas opiniões por qualquer meio e forma.

É por isso que, assegurando a inviolabilidade do direito à liberdade de expressão, o Supremo Tribunal Federal decidiu ser inconstitucional, por exemplo, a vedação legal de “proselitismo de qualquer natureza nos serviços de rádio comunitária” (ADI 2.566-0), todos os dispositivos da Lei de Imprensa - Lei nº 5.250/67 (ADPF 130) e a interpretação de quaisquer preceitos legais que inviabilizassem a “Marcha da Maconha” (ADPF 187).

Aliás, nessas decisões da Suprema Corte ficou assentado que todo conteúdo de mensagem encontra-se prima facie assegurado constitucionalmente, ainda que considerado impopular, incorreto ou mesmo perigoso por parcela da comunidade, que, eventualmente, entenda ser tal conteúdo contrário aos seus interesses e convicções.

Com efeito, como ensina SARMENTO, “um dos campos em que é mais necessária a liberdade de expressão é exatamente na defesa do direito à manifestação de ideias impopulares, tidas como incorretas ou até perigosas pelas maiorias, pois é justamente nesses casos em que ocorre o maior risco de imposição de restrições”[9].

Na sua expressão objetiva, “a liberdade de expressão deriva do reconhecimento de que, além de direito individual, ela acolhe um valor extremamente importante para o funcionamento das sociedades democráticas, que deve ser devidamente protegido e promovido. Este valor deve irradiar-se por todo o ordenamento jurídico, guiando os processos de interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral“[10].

Assim, não tem razão o autor do projeto em exame quando, no item 5 de sua “justificação”, afirma que a “liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição Federal – não se confunde com liberdade de expressão”.

A liberdade de Ensinar há de ser garantida, sim, no espectro da liberdade de Pensamento e Expressão, o que garante àquela a sua real dimensão democrática e republicana.

Mas, o projeto de lei em exame, sob o pretexto de impedir a manipulação do ensino para fins políticos e ideológicos, como consta de sua “justificação”, pretende, na realidade, coibir, de modo absolutamente inaceitável e inconstitucional, a liberdade de expressão e manifestação de pensamento, mediante inadmissível controle e censurada da prática educacional e da liberdade de ensinar.

4.- A PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL À CENSURA.

A liberdade de expressão, na sua dimensão subjetiva, é, antes de tudo, um direito negativo, que protege os seus titulares das ações do Estado e de terceiros que visem a impedir, prejudicar ou limitar o exercício da liberdade de externar ou divulgar ideias, opiniões e informações, especialmente no processo de ensinagem, o qual compete, por obrigação constitucional, tanto à família como ao Estado.

Assim, não se pode admitir qualquer violação desse direito fundamental, por lei ou por qualquer ato estatal, seja posterior à manifestação do pensamento, mediante a imposição de qualquer medida repressiva, seja previa, mediante a adoção de qualquer modalidade de censura.

É por isso que, especificando tal garantia, sem receio de ser redundante, a Constituição Federal afirma, textualmente, no inciso IX de seu artigo 5º, que é “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, independentemente de censura”.

Além disso, dispõe o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que o direito à livre manifestação de pensamento “não pode estar sujeito à censura prévia” e, ainda, que “não se pode restringir o direito de expressão” por qualquer meio hábil para impedir a “comunicação e a circulação de ideias e opiniões”.

Como se vê, a proibição da censura é um dos aspectos centrais da liberdade de pensamento e expressão.

Aliás, como lembra SARMENTO, “é natural a inclinação dos regimes autoritários em censurar a difusão de ideias e informações que não convém aos governantes. Mas, mesmo fora das ditaduras, a sociedade muitas vezes reage contra posições que questionem os seus valores mais encarecidos e sedimentados, e daí pode surgir a pretensão das maiorias de silenciar os dissidentes. O constituinte brasileiro foi muito firme nessa matéria, ao proibir peremptoriamente a censura” (op. cit. p. 275).

A censura, portanto, seja ela praticada por atos administrativos, decisões judiciais ou no campo legislativo, é absolutamente incompatível com os princípios democráticos e constitui uma das mais graves violações à liberdade de expressão que se possa conceber.

Todavia, o projeto de lei em análise, de modo flagrantemente inconstitucional, ignora essa proibição de censura ao direito de liberdade de expressão e manifestação de pensamento.

Ao invocar o princípio da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”, em seu artigo 2º[11], e, ainda, ao vedar, em sala e aula, “a prática de doutrinação política e ideológica, bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”[12], o projeto impõe censura à prática educativa, o que é inconstitucional.

Inquestionavelmente, de acordo com a concepção constitucional da educação, a Escola há de ser um ambiente de prática libertadora, exatamente para que todos tenham a liberdade de exteriorizar o seu pensamento, a partir da pluralidade de temas e diversidade de enfoques, com criticidade e criatividade, sempre com respeito às minorias e combate a todo tipo de discriminação seja de etnia, gênero, orientação sexual e religião.

Em face dos mencionados princípios constitucionais, não se pode restringir determinados conteúdos por razões ideológicas ou por contraporem convicções religiosas ou morais, pois o objetivo da escola é, principalmente, transmitir conhecimento científico e formar cidadãs e cidadãos críticos.

A escola, enfim, segundo a sua dimensão principiológica constitucional, é um dos poucos ambientes na sociedade em que as pessoas têm condições de conhecer várias visões de mundo.

Mas, o projeto em análise, a pretexto de combater a “doutrinação política e ideológica”, pretende isolar as pessoas em uma única visão do mundo, o que constitui, aí sim, uma inaceitável ideologia de dominação, alienação e exclusão, mediante a instituição de inaceitável e inconstitucional censura.

O projeto em menção, que espelha os princípios ideológicos formadores do movimento “Escola Sem Partido”, conforme admitido, explicitamente, em sua “justificação”, sob o pretexto de “garantir direitos”, pretende, na verdade, vigiar e cercear a liberdade de ensino nas escolas.

Aliás, basta verificar que esse projeto propõe, no § 1º de seu artigo 5º[13], que sejam afixados nas salas de aula cartazes com os deveres dos professores[14], advertindo-os, inclusive, de que deverão, pena de serem submetidos a punições, respeitar “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, o que constitui evidente violação à liberdade de expressão e cátedra.

É verdade que, em sua “justificação”, o projeto em exame invoca, para fundamentar esse dever imposto aos professores, o disposto no artigo 12, 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que afirma que os pais e tutores “têm o direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”.

Entretanto, ao invocar tal dispositivo de garantia de Direitos Humanos, o autor do projeto utiliza-se de expediente hermenêutico tendencioso e, por isso, equivocado, invertendo, propositadamente, o seu significado e alcance, afastando-o, deliberadamente, e de modo fragmentado, do contexto de proteção em que está inserido[15].

Com efeito, o artigo 12 da Convenção de Direitos Humanos, que foi editado, especificamente, para dar proteção à liberdade de consciência e religião, não tem o alcance que lhe dá o projeto e não pode ser interpretado em antinomia com o artigo 13 da mesma convenção, que garante a liberdade de Pensamento e de Expressão, afirmando, expressamente, que esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, de forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

E também não se olvide que o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos afirma, expressamente, que o direito à liberdade de Pensamento e Expressão não pode estar sujeito a qualquer tipo de censura prévia e, ainda, que esse direito não pode sofrer restrições[16].

Ademais, a leitura do disposto no artigo 12, 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos não pode ser feita, como quer a “justificação” do projeto em menção, excluindo-se o artigo “a” que antecede a expressão “educação religiosa e moral”.

Com efeito, esse dispositivo convencional não garante aos pais e tutores o direito a que seus filhos recebam “educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”, mas, sim, “a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”.

É evidente, pois, que, quando houver educação religiosa, especialmente nas escolas confessionais, devem ser respeitadas as convicções dos pais ou tutores dos educandos, mas, isso não significa que haverá, em todo processo educacional, obrigatoriamente, educação religiosa e moral ministrada de acordo com as convicções dos pais e tutores.

E muito menos significa tal expressão convencional que o direito de liberdade de pensamento e expressão dos professores está sujeito às convicções particulares dos pais ou tutores, o que seria, até mesmo na prática, absolutamente inaplicável, em face da imensa possibilidade de distintas convicções de todos os pais ou tutores de todos os aprendizes.

Decididamente, o que se garante aos pais, na realidade, como está expresso no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil, em seu artigo 13, item 6, é o respeito “à liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais, de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

Mas não é só.

Lembre-se de que, na “justificação” do projeto em tela, está afirmado que “é fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis (sic)”.

Entretanto, com essa afirmação, feita de forma absolutamente leviana, inspirada por uma “paranoia delirante”, e sem nenhuma comprovação, com base em mero subjetivismo ideológico e raciocínio falacioso, o autor do projeto em menção, embasado em premissas falsas, subverte a lógica da atuação dos professores no processo de educação.

É que compete, sim, aos professores, questionar, criticar e provocar a reflexão dos alunos a respeito dos ensinamentos de seus pais e responsáveis, especialmente no âmbito da moralidade e sexualidade, exatamente para dar cumprimento ao seu dever constitucional de promover o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”, como dispõe expressamente o artigo 205 da CF/88.



5.- DA EDUCAÇÃO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL.

A educação, que é um direito fundamental assegurado a todos pela Constituição Federal, de acordo com o seu artigo 205, constitui um dever do Estado e da família, e deve ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando, além da qualificação para o trabalho, ao “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”.

Lembre-se, portanto, antes de qualquer outra coisa, que a ação educativa deve, em decorrência desse preceito constitucional, ser desenvolvida pela família, sim, mas, também, pelo Estado, com a colaboração da sociedade.

Não é possível, pois, por força desse dispositivo constitucional, admitir que à família seja deferido, com exclusividade, qualquer aspecto da ação educativa.

Portanto, não tem razão o autor do projeto em exame, quando, na apresentação de sua “justificação”, afirma que “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (item 14) e, por isso, que “cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em matéria de moral”, excluindo, assim, às completas, quaisquer ações educativas do Estado e da sociedade com “conteúdos morais que não tenham sido previamente aprovados pelos pais dos alunos” (item 15).

Cabe à família, inquestionavelmente, atuar no processo educativo, mas no espaço privado, enquanto ao Estado compete, obrigatoriamente, realizar a ação educativa no espaço público, com a colaboração e participação da sociedade, integrando o aprendiz aos conceitos e valores sociais, inclusive para que, como ensina Hannah Arendt, seja possível ao Estado e à sociedade estabelecer limites à eventual tirania da educação familiar, libertando os alunos e alunas de eventuais preconceitos, discriminações, estereótipos e concepções religiosas ou morais excludentes, racistas, homofóbicas ou ditadas por ideologia patriarcal, patrimonialista ou de viés político exclusivista, possibilitando o desenvolvimento autônomo, crítico e criativo de todas as pessoas.

Ademais, como está expressamente previsto no artigo 13, § 1º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “a educação deve orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais”.

É por isso que, segundo dispõe o artigo 205 da CF/88, a educação, em sua concepção teleológica constitucional, deve assegurar o “pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo para o exercício da cidadania”.

O direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, segundo PIAGET, consiste “em formar indivíduos capazes de autonomia intelectual e moral e respeitadores dessa autonomia em outrem, em decorrência precisamente da regra da reciprocidade que o torna legítima para eles mesmos”[17].

E a democracia, segundo Konrad Hess, é “um assunto de cidadãos emancipados, informados, não de uma massa de ignorantes, apática, dirigida apenas por emoções e desejos irracionais, que, por governantes bem intencionados ou mal intencionados, sobre a questão do seu próprio destino, é deixada na obscuridade”[18].

Como afirma Hannah Arendt, a autora das inexcedíveis obras “A condição Humana” e “As Origens do Totalitarismo”, não se pode aprisionar o sistema educacional ao tecnicismo de uma pedagogia acrítica e descompromissada com os valores constitucionais e com a formação da cidadania, violando-se o seu significado político e social (“A Crise na Educação).

Portanto, a Educação, em um Estado de Direito Democrático, deve exercer, no espaço público, múltiplos papeis:

a) é um instrumento permanente de aperfeiçoamento humanístico da sociedade;

b) promove a autonomia do indivíduo;

c) promove a visão de mundo das pessoas, superando as concepções marcadas pela intolerância, pelo preconceito, pela discriminação e pela análise não crítica dos acontecimentos;

d) promove o sentimento de responsabilidade das pessoas com relação ao mundo em que vivem, o qual constitui, também, o resultado de suas próprias ações;

e) promove a consciência de que viver em uma República não implica apenas desfrutar direitos, mas, também, assumir responsabilidades cívicas; e

f) promove a consciência pelo valor dos direitos individuais e sociais.

E é exatamente por isso que o artigo 206 da Constituição Federal/88 consagra, no âmbito da educação, entre outros, os princípios fundamentais da igualdade, da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e, ainda, do pluralismo das ideias e concepções pedagógicas, sempre no bojo do princípio fundamental garantidor da liberdade de pensamento e expressão.

6.- O PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

Segundo o princípio da igualdade, a educação deve ser um instrumento de emancipação e, por isso, ao Estado cabe atuar para corrigir as chamadas desigualdades fáticas, que ocorrem por elementos externos ao indivíduo e que interferem diretamente no seu plano de vida (CF/88, artigo 206, inciso I).

Entretanto, o projeto em comento ignora que, no cumprimento desse dever, cabe ao Estado pautar-se por uma concepção plural da sociedade nacional, pois apenas uma relação de igualdade permite a autonomia individual, a qual somente será assegurada se cada cidadão e cidadã tiver a possibilidade de sustentar as suas muitas e diferentes concepções do sentido e da finalidade da vida.

É por isso, por exemplo, que, segundo o Relatório de Ação da Conferência de Beijing, de 1995, todos os Estados devem, no âmbito dos direitos das mulheres, “adotar todas as medidas necessária, especialmente na área da educação, para modificar hábitos de condutas sociais e culturais da mulher e do homem, e eliminar os preconceitos e as práticas consuetudinárias e de outro tipo baseadas na ideia da inferioridade ou da superioridade de qualquer dos sexos e em funções estereotipadas atribuídas ao homem e à mulher” (§ 1242).

Portanto, o dever do Estado de garantir a todos o direito à educação deve ser cumprido, não de acordo com os propósitos do projeto em menção, não de acordo com as concepções religiosas e morais exclusivas dos pais ou responsáveis pelos aprendizes, mas, sim, no espaço público da atuação do Estado, de acordo com os Objetivos Fundamentais da Republica Federativa do Brasil, previstos expressamente no artigo 3º da Constituição Federal: a) construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização; d) reduzir as desigualdades sociais; e e) promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Induvidosamente, toda ação pedagógica deve ser desenvolvida visando à mudança de mentalidade, com difusão de uma nova cultura de respeito às diferenças, o que é incompatível com a proposta do projeto em comento, em face de sua ideologia de exclusão e alienação, fundamentadora da desigualdade.

7.- PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE APRENDER, ENSINAR, PESQUISAR E DIVULGAR O PENSAMENTO, A ARTE E O SABER.

Segundo o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, previsto expressamente no artigo 206, inciso II da Constituição Federal, a educação deve pautar-se pela liberdade de ensino dos professores, de acordo com o seu saber e a sua orientação científica e pedagógica, mas também deve considerar o direito do aluno à compreensão crítica dos conteúdos, o que impede que o Estado imprima ao processo educativo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

Induvidosamente, o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, corolário do direito fundamental à liberdade de pensamento e expressão, reveste-se de um elemento essencial no trato de questões que precisam ser debatidas no espaço público: o pluralismo, que somente terá significado e eficácia no campo da formação se for objeto de discussão no plano da liberdade das práticas pedagógicas, pois a escola é, também, um lugar de aperfeiçoamento do cidadão sob a égide dos valores protegidos pela Constituição.

Portanto, é preciso garantir, sobretudo, aos professores e professoras, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, na sua dimensão constitucional, sem submetê-la a restrições que violem os princípios e objetivos estabelecidos pela Constituição no âmbito do direito à educação.

Aliás, para que a liberdade de ensinar seja efetivamente garantida, é preciso reconhecer que, no concerto constitucional, o professor é, sobretudo, um educador.

Contudo, o movimento “Escola Sem Partido”, que dá lastro teórico e ideológico ao projeto em exame, sustenta que os professores não são educadores, mas apenas instrutores, que deveriam limitar-se a transmitir a “matéria objeto da disciplina”, sem discutir valores e a realidade em que estão inserido os alunos e alunas, o que é inaceitável diante da proposta constitucional de educação como direito fundamental.

Com efeito, uma das principais referências bibliográficas desse movimento ideológico é o livro “Professor não é educador”, de Armindo Moreira, que sustenta a tese de que são distintos os atos de educar e instruir, afirmando que “educar” seria uma tarefa de responsabilidade da família e da igreja, enquanto aos professores, na sala de aula, caberia, apenas e tão-somente, “instruir” e “transmitir conhecimento”.

Entretanto, a nossa Constituição Federal, ao estabelecer os objetivos da educação, afirma que cabe ao Estado, no processo educativo, o preparo dos aprendizes para o exercício da cidadania.

Assim, cabe aos professores, em face do princípio constitucional em referência, formar os alunos e alunas para a cidadania, visando ao seu desenvolvimento pleno, discutindo e questionando valores, expondo ideias e possibilitando a crítica e a criatividade diante do contexto social e político em que estão inseridos.

É por isso que, na última Conferência Nacional da Educação (CONE), ficou assentado que “deve ser inserida, implementada e garantida na política de formação dos professores a discussão de raça, étnica, gênero, identidade de gênero, diversidade sexual, adotando práticas de superação de todas as formas de preconceitos”, o que evidencia que o professor tem, sim, no espectro constitucional, função educadora, direcionada à formação da cidadania, não apenas a de instruir e transmitir ensinamentos.

Contudo, segundo os mentores do “Escola Sem Partido”, movimento que inspira o projeto em análise, o professor deve apenas “instruir” e limitar-se à abordagem da matéria de sua disciplina, especificamente, de forma isolada, sem tratar da realidade do aluno e do que está acontecendo no mundo, sem discutir o que acontece no noticiário ou na comunidade em torno da escola, afirmando, inclusive, que “o professor não fará propaganda política partidária dentro da sala de aula, nem incitará seus alunos a participarem de manifestações, atos públicos e passeatas”.

Ora, é evidente e inegável que os professores não devem fazer propaganda partidária em suas aulas, mas, proibi-los de discutir política e de debater assuntos vinculados ao noticiário é algo absolutamente inconcebível, que viola, não apenas a liberdade de expressão e pensamento, inclusive dos alunos, mas, também, o princípio constitucional que estabelece como objetivo da Educação o preparo dos aprendizes para o exercício da cidadania.

Na realidade, o projeto em exame, quando afirma que pretende defender a neutralidade na escola, visa, na verdade, anular a individualidade e o poder emancipatório do próprio aluno, ignorando sua condição de sujeito de direitos e questionando sua capacidade de formar opiniões próprias.

Afirmar, como está afirmado textualmente no projeto em exame, que “o professor não incitará que seus alunos participem de manifestações, atos públicos e passeatas” significa, à evidência, que se pretende proibir os professores de estimular os alunos a participarem da democracia.

É por isso, também, que o Ministério da Educação, criticando o movimento “Escola Sem Partido”, afirmou, recentemente, que os seus projetos constituem verdadeiro cerceamento pedagógico e impedem “o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo”, que “a liberdade dos professores é ferida e censurada” e que “um professor, ao abordar o preconceito e trabalhar o desenvolvimento de uma cultura de paz e o respeito e tolerância em sala de aula, cumpre os objetivos fundamentais da Constituição Federal, que pretende garantir um Brasil sem discriminação” (Ministério da Educação e Cultura: manifestação sobre o Programa Escola Livre, que, em Alagoas, exigia neutralidade aos professores em sala de aula).

E não se olvide, ainda, que, segundo o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, elaborado pela ONU, em 2006, afirma que, para a garantia do império dos Direitos Humanos a Educação “vai além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o desenvolvimento social e emocional de quem se desenvolve no processo de ensino-aprendizagem.”

Decididamente, o direito à educação, que exige ação educativa voltada para a formação da cidadania, de acordo com os preceitos constitucionais e de Direitos Humanos, não se resume ao direito de ir à escola, mas, exige, sim, uma educação de qualidade, capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, preparada para responder aos interesses de quem estuda e de sua comunidade.

É exatamente essa a dimensão do princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, conforme previsto expressamente no artigo 206, inciso II da Constituição Federal.

Decididamente, a educação, de acordo com o compromisso social e político que lhe impõe a Constituição Federal, deve promover o respeito à diversidade (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras), a solidariedade entre povos e nações e, como consequência, o fortalecimento da tolerância e da paz.

Ademais, consta expressamente da Declaração de Viena, de 1993, em seu item 80, que, para os Direitos Humanos, a educação “deverá incluir a paz, a democracia, o desenvolvimento e a justiça social, conforme definidos nos instrumentos internacionais e regionais de Direitos Humanos, a fim de alcançar uma compreensão e uma consciencialização comuns, que permitam reforçar o compromisso universal em favor dos Direitos Humanos”.

A construção gradativa de uma sociedade efetivamente igualitária, democrática e justa exige a oferta da educação, a todos os seres humanos, como um instrumento constitutivo da humanidade e emancipatório.

Além disso, lembre-se de que o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil, afirma, em seu artigo 13, § 1º, que “os Estados-parte no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação”, que “concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais” e que “concordam, ainda, que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.

É por tudo isso que o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, previsto expressamente no artigo 206, inciso II da Constituição Federal, exige que o professor seja, antes de tudo, um educador, não um mero transmissor de informações ou conhecimentos como pretende o movimento “Escola Sem Partido”, que pariu o projeto em análise.

Como se vê, o PL 867/2015, assim como todas as suas variações estaduais e municipais engendradas no seio do movimento “Escola sem Partido”, não pretende, na realidade, garantir direitos constitucionais já estabelecidos, mas, sim, restringi-los e até mesmo negá-los, mediante uma tentativa de estabelecer uma interpretação equivocada da nossa constituição, amputando intencionalmente dispositivos constitucionais com base em uma concepção absolutamente deturpada do que seria o processo de educação.

8.-O PRINCÍPIO DO PLURALISMO DE IDEIAS E CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS

De acordo como o que preceitua o principio constitucional do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, a ideia de liberdade implica o respeito à diversidade de pensamento, o que exige, no processo educacional, o reconhecimento das diferenças regionais e sociais (CF/88, art. 3º), passando pelas garantias do ensino religioso facultativo e das línguas indígenas maternas no ensino fundamental (CF/88, art. 210, §§ 1º e 2º), e pelo ensino da História do Brasil a partir das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígenas, africana e europeia (LDB, artigos 26, §4º e 26-A) (inciso III).

Mas, ignorando, também, que o princípio do pluralismo refere-se tanto às ideias como às concepções pedagógicas, o projeto em exame amputa o respectivo dispositivo constitucional garantidor desse princípio, reduzindo-o ao “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico” (art. 2º, II).

Aliás, o projeto também reduz a expressão principiológica “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (CF/88, art. 206, II), limitando-a à expressão “liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência” (Art. 2, III).

Ao propor a neutralidade na escola, na verdade, o projeto em análise visa anular a individualidade e o poder emancipatório do próprio aluno,ignorando a sua condição de sujeito de direitos e desprezando a sua capacidade de formar opiniões próprias.

E ao cercear a liberdade de ensinar e aprender, o Programa Escola sem Partido deixa de garantir que a escola seja um espaço plural de conhecimento e saberes, o que evidencia a sua antinomia com o sistema constitucional.

As escolas devem garantir a todas as crianças e adolescentes a oportunidade de acessarem as diferentes ciências e concepções de mundo, suas contradições, antíteses e refutações, o que torna indispensável, porque fundamental, o debate sobre ética, política, religião e ideologia.

E, para que o processo de educação seja efetivo e desenvolvido de acordo com a proposta principiológica constitucional, há de ser garantida a liberdade de ensinar do professor.

Entretanto, propositadamente, em evidente postura ideológica ditada pelo movimento “Escola Sem Partido”, o projeto em menção, ignorando o texto do inciso III do artigo 206 da CF/88, excluiu o “pluralismo de concepções pedagógicas” e a “liberdade de ensinar” de seu texto.

O princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, ao contrario do que propõe o projeto em exame, exige que o processo educacional direcione as suas atividades e práticas para a formatação de uma sociedade aberta a múltiplas e diferentes visões de mundo.

A escola, assim, de acordo com os objetivos e princípios constitucionais, deve ser um espaço público estratégico para a emancipação política e para por cobro às ideologias sexistas, racistas e religiosas, bem como para possibilitar o enfrentamento dos preconceitos, das discriminações e da desigualdade.

9.- CONCLUSÃO.

Decididamente, o Projeto de Lei n. 867/2015, de autoria do Deputado Izalci (PSDB/DF), gerado no ventre do "Movimento Escola sem Partido", como está expressamente afirmado em sua própria “Justificação”, é inconstitucional, pois viola o direito fundamental à liberdade de expressão e manifestação de pensamento, ignora a proibição constitucional à censura, impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, vulnera o princípio da igualdade, coloca os professores e professoras sob constante vigilância e censura, negando-lhes a liberdade de cátedra, nega aos alunos e alunas a possibilidade do exercício do direito constitucional a uma educação emancipatória, impossibilita a ampla aprendizagem, confunde a educação escolar, que é de responsabilidade estatal, com aquela que deve fornecida pelos pais, ou seja, confunde espaço público com espaço privado, viola o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, contraria a exigência constitucional da laicidade do Estado e fere de morte, em sua essência, o direito constitucional à educação e o seu significado político e social.

Esse projeto constitui um verdadeiro ovo de serpente, que o invocado movimento “Escola sem Partido” tenta, ideologicamente, implantar em nosso sistema de educação, em flagrante violação aos preceitos constitucionais, à democracia e à cidadania.

São Paulo, 04 de agosto de 2016.





André Augusto Salvador Bezerra



Presidente do Conselho Executivo da

Associação Juízes para a Democracia






[1]O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. In Direitos Humanos – Visões Contemporâneas, edição de Associação Juízes para a Democracia, 2001, p. 22

[2]Princípios Penais no Estado Democrático, Coleção Para Aprender Direito, 1ª edição, São Paulo, 2014, Estúdio Editores.com, p. 29

[3]Curso de Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 396

[4]Direitos humanos e o direito constitucional internacional, pg. 83, Ed. Max Limonad, SP, 1996

[5]Ingo Wolfgang Sarlet, Comentários à Constituição do Brasil, Editora Saraiva, Almedina e IDD, São Paulo, 2013, p. 517.

[6]Ingo Wolfgang Sarlet. op. cit. p. 520

[7]É verdade que o Supremo Tribunal Federal tem afirmado, em suas últimas decisões a respeito da validade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, que estes não têm estatura constitucional, se não foram aprovados de acordo com as exigências do § 3º do artigo 5º da CF (aprovação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros). Entretanto, tem decidido, também, a Suprema Corte, que, embora não estejam equiparados às normas constitucionais, os Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos são normas supralegais, ou seja, estão acima das leis, que aqueles não podem contrariar. Com efeito, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o STF, analisando a hierarquia das normas jurídicas no direito brasileiro, decidiu que os tratados internacionais que versem sobre matéria relacionada a Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal, salvo aqueles que, nos termos do artigo 5º, §3º da CF, tiverem sido aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional, ganhando, assim, caráter de norma constitucional, tal qual as emendas constitucionais. Também vale lembrar outra decisão do STF, nesse mesmo sentido, sobre a previsão legal da possibilidade de prisão do depositário infiel em face dos dispositivos e princípios da Convenção Americana de Direitos Humanos: “Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). […](RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto) – grifo nosso. Portanto, o STF tem decidido, reiteradamente, que estão os Tratados e Convenções de Direitos Humanos, no espectro vertical das normas, acima das leis, o que torna absolutamente inaceitável qualquer antinomia ou incompatibilidade entre as leis e aquelas normas, regras e princípios de proteção de direitos humanos. Decididamente, apesar do reducionismo hermenêutico dessas decisões do STF, está absolutamente consagrado, de modo incontestável, que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, são, na pior das hipóteses, supralegais, ou seja, estão acima das leis e as submetem.

[8]Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000

[9]Sarmento, Daniel, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, São Paulo, 2013, p. 256

[10] Sarmento, Daniel. op. cit. p. 256.

[11]Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado.

[12]Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

[13]Art. 5º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no art. 4º desta Lei.

§ 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho compatível com as dimensões adotadas.

§ 2º. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no § 1º deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores.

[14]ANEXO. DEVERES DO PROFESSOR. I - O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária. II - O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. III - O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas. IV - Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito. V - O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. VI - O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

[15]CAPÍTULO I. ARTIGO 12. Liberdade de Consciência e de Religião. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pelas leis e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas. 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.

[16]PARTE I. Deveres dos Estados e Direitos Protegidos. ARTIGO 13. Liberdade de Pensamento e de Expressão. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2.- O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessária para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. 4. A lei pode submeter os espetáculos públicos à censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2º. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.



[17]Para onde vai a educação?, p. 60

[18]Elementos de Direito Constitucional da Republica Federal da Alemanha. Trad. Luíz Afonso Reck. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 133
Imprimir