Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital no dia 20 de janeiro de 2020.
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A frase em sentença de juiz só assusta pelo que contém de realidade
A rápida e exagerada reação ao texto de uma sentença proferida recentemente em que cita as palavras “merdocracia neoliberal neofascista” nos impõe ao menos duas reflexões importantes. O que afinal de contas compõe o conteúdo de um Estado democrático? E do que temos tanto medo?
Leia na íntegra sentença que critica governo Bolsonaro como “merdocracia neoliberal neofascista”
Sentença vem do verbo “sentire”, pois traduz o sentimento que se tem acerca dos elementos do caso concreto. Não se trata de proferir decisões desconectadas das provas existentes no processo ou não fundamentadas juridicamente. Nada disso. Trata-se apenas de honrar o termo que designa o ato em que o Estado, através do Poder Judiciário, manifesta-se nos autos de um processo. Mas manifesta-se através de um ser humano, de alguém que sente e sofre.
Sentimento é expressão de afeto. O juiz não está fora do mundo. Somos “seres-no-mundo”, expressão que Heidegger cunhou para explicitar o fato de que as pessoas, as coisas, os acontecimentos interferem naquilo que somos e no que expressamos. A violência também. E o momento presente é de extrema violência, representada por falas e atos oficiais que não hesitam em destruir direitos, eliminar empregos, facilitar mortes.
A sentença, que é objeto de virulentas reações de conteúdo pretensamente moral, faz referência a fatos que são ainda mais violentos, e tristemente reais.
A recomendação de “abstinência sexual como política pública” ou a denúncia do Presidente da República por “incitação ao genocídio indígena” no Tribunal Penal Internacional, não são ilações. São fatos. Outros poderiam ser citados, como o escárnio do Presidente para com a tortura sofrida pela Presidenta Dilma, o fato de durante a campanha ele haver sugerido “fuzilar a petralhada”, os pronunciamentos em relação ao desaparecimento e a morte do pai de Felipe Santa Cruz ou à tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão.
O texto-denúncia incluído na sentença mais parece um desabafo, uma forma pública de gritar contra o mecanismo neofascista posto em marcha no Brasil. Um mecanismo bem representado pelo vídeo recentemente publicado pelo Secretário de Cultura que, segundo Jair Bolsonaro, era “de verdade”. Alguém que “atende o interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã”.
Este texto não irá discutir a oportunidade ou não de que tais referências políticas estejam inseridas em uma sentença judicial. Admitamos, porém, que as questões estão imbricadas. Afinal de contas é esse quadro político fascista e conservador que vem determinando os rumos da legislação brasileira, especialmente da legislação de proteção a quem vive do trabalho. Mas a questão principal não é essa. O problema parece estar especialmente no fato de que Jerônimo Azambuja Neto chamou nosso estado de uma “merdocracia”. Segundo André Mendonça, da AGU, ele violou o Código de Ética da Magistratura em razão de seu linguajar. Afinal, ele usou a palavra merda.
Seria cômico, se não fosse trágico. Ora, o Presidente da República disse “puta merda” e “porra” ao cumprimentar empresários em um encontro oficial, conforme aponta Painel da Folha de S. Paulo. Em agosto de 2019, ele aconselhou as pessoas a “fazerem cocô dia sim dia não para reduzir a poluição ambiental”. No carnaval, publicizou vídeo de conteúdo escatológico e referiu-se à prática de “Golden Shower”. Ao falar com um “fã asiático”, fez alusão ao órgão sexual do rapaz, perguntando se era “pequeninho”. Em abril, ao se referir à imagem do Brasil no exterior, disse: “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. O filho Carlos Bolsonaro chamou uma criança de “garotinha de merda”, enquanto o outro, Eduardo, twittou “se for para falar esse tipo de merda p/ imprensa pelo menos dê os nomes ou então fica quieto”. Isso apenas para ficar com os exemplos mais escatológicos. O governo, portanto, não deve se escandalizar com o linguajar utilizado na sentença.
Na realidade, o texto incluído em decisão judicial só causou tamanha reação, porque denuncia o que estamos vivendo no Brasil: a ilusão de uma democracia nunca concretizada.
Ou talvez, a realidade de uma democracia liberal, que não passa de aparência; que não é para todos. Se olharmos para as últimas décadas, facilmente perceberemos que a Constituição de 1988 nunca foi realidade para boa parte da população brasileira. Veremos que a lógica da tortura institucionalizada e de eliminação dos indesejáveis também se manteve, mesmo sob o manto de uma constituição cidadã.
Desde que a lógica da violência institucional não disfarçada, de verbo e de ato, foi vencedora nas eleições presidenciais, a pouca ilusão que tínhamos, de que vivíamos em um ambiente democrático, deu lugar a realidade da censura. A Resolução recentemente editada pelo CNJ, sobre o uso de redes sociais pela magistratura brasileira, é exemplo disso. Como bem referiu o conselheiro Luciano Frota, em seu voto vencido, “estabelecer, a priori, a proibição de manifestação de opinião ou de crítica pública, partido político a candidato, a liderança política, sem considerar o contexto, é impor censura prévia, frustrar o exercício da cidadania, cercear a livre manifestação de pensamento”.
Se estão amordaçados, as juízas e juízes falarão em suas sentenças?
O que assusta, portanto, é a denúncia, é a coragem de dizer o que muitos pensam, mas calam. O que assusta é adoecimento social, provocado por um governo que flerta impunemente com o autoritarismo, com o nazismo, e que está fazendo com que as pessoas, em diferentes espaços de fala, sintam a necessidade de enunciar a violência de que têm sido vítima. Sintomático que isso ocorra em uma sentença trabalhista, pois talvez seja esse o âmbito do Poder Judiciário que mais vem sofrendo assédio moral, por parte do governo, com sua política de retirada de direitos e asfixia da instituição.
A denúncia de que vivemos uma “merdocracia neoliberal neofascista” só assusta pelo que contém de realidade.
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VALDETE SOUTO SEVERO
É Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.