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DECISÃO - Antecipação de tutela: calamidade pública pelo coronavírus - RS

AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL Nº 5030881-75.2021.8.21.0001/RS AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL RÉU: MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE DESPACHO/DECISÃO Vistos. Trata-se de analisar pedido de antecipação de tutela requerida pelo MINISTÉRIOPÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL em face do MUNICÍPIO DE PORTOALEGRE. Narrou que, mesmo em vigor o Decreto 55.799/21, o Município réu editou, em26/03/2021, o Decreto 20.977 através do qual contraria o Sistema de Distanciamento Controlado, estabelecido pela conjugação dos decretos estaduais 55.240/2020 e 55.799/21, em momento que não aconselha qualquer flexibilização das medidas sanitárias determinadas. Discorreu sobre a gravidade da atual situação de calamidade pública pela epidemia docoronavírus em Porto Alegre, bem como os números de leitos, pacientes internados eaguardando, falecidos e os vacinados. Discorreu sobre o direito que entende aplicável ao casopresente. Requereu seja declarada, liminarmente a suspensão da eficácia do DecretoMunicipal 20.977. Anexou documentação.Vieram conclusos para análise. Relatados brevemente. Decido, fundamentadamente. Segue documento na íntegra: DECISÃO_Antecipação_de_tutela_calamidade_pública_pelo_coronavírus_RS.pdf

Concessão Tutela Antecipada para Garantia de Direito à Educação e Transporte Escolar em Comunidade Indígena.

Poder Judiciário JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Rio Grande do Sul 2ª Vara Federal de Passo Fundo AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 5005808-13.2019.4.04.7104/RS AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL RÉU: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL RÉU: MUNICÍPIO DE PASSO FUNDO/RS DESPACHO/DECISÃO Da tutela antecipada antecedente. O Ministério Público Federal ajuizou a presente ação civil pública contra o Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Passo Fundo, objetivando tutela antecipada em caráter antecedente no seguinte sentido: Diante do exposto, o Ministério Público Federal, a título de tutela antecipada em caráter antecedente, requer a este Juízo Federal que, por meio de medida LIMINAR INAUDITA ALTERA PARTE: 1) seja recebida a inicial; 2) determine ao Estado do Rio Grande do Sul que, no prazo máximo de dez dias, inicie o transporte escolar dos alunos da comunidade Goj Jur até a Escola Estadual Manoel Inácio, em Mato Castelhano, e desta até a comunidade, de acordo com os horários do educandário; 3) determine ao Município de Passo Fundo que atue, com o fim de execução do transporte escolar aos aluno, em colaboração com o Estado do Rio Grande do Sul, inclusive e a depender dos convênios existentes com o ERGS, execute diretamente o transporte escolar pretendido; 4) caso não acolhido o pedido precedente, determine aos réus que, no prazo máximo de dez dias, iniciem a prestação das atividades educacionais na forma do art. 210, §2º, da CF/88, em local adequado, por exemplo, em unidade escolar desativada ou em desuso neste município; fixe multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) pelo descumprimento dos comandos postulados, valor a ser revertido em favor da comunidade, especificamente para possibilitar o acesso à educação a todas as crianças que ali habitam; Referiu que a comunidade indígena Goj Jur constitui-se a partir da agregação de diversos indígenas oriundos de outras comunidades, aparentemente movidos por disputas indígenas internas no âmbito de suas comunidades de origem ou simples expulsão por parte de lideranças indígenas; atualmente estão acampados na área ao lado da rodoviária. Mencionou que, desde 07/06/2018, vem tentando junto a 7ª Coordenadoria Regional de Educação providências necessárias à prestação de serviços educacionais aos alunos deste acampamento. Disse que foram aventadas três possibilidades de negociação pelas partes envolvidas: (a) que o processo educacional ocorresse na própria comunidade; (b) em face da urgência, que o processo educacional ocorresse em escola regular; (c) que o processo pedagógico ocorresse em escola indígena, em município diverso. Deliberou-se que a primeira alternativa não seria sustentável, tendo em vista o atendimento dos requisitos mínimos de segurança. A segunda tentativa, em que pese o município tenha disponibilizado vagas para crianças indígenas na Escola Municipal de Educação Infantil Padre Zezinho e o Estado do RS tenha disponibilizado vagas para alunos do ensino fundamental na Escola Estadual Eulina Braga, também não restou viabilizada, tendo em vista a dificuldade de adaptação dos alunos indígenas. No que tange a terceira alternativa, o Estado do RS matriculou os alunos indígenas na escola indígena existente no Município de Mato Castelhano, distante 22Km de Passo Fundo. A partir disso, foi realizada reunião com os réus para resolver a questão do transporte dos indígenas, questão que ainda não foi resolvida, ressaltando que o ano letivo iniciou em 04 de agosto de 2019. Aduziu que cabe aos Estados e Municípios prestar educação infantil, fundamental é média. Expôs sobre a violação ao direito fundamental à educação. Decido A análise do pedido de antecipação de tutela sem a oitiva da parte contrária se faz necessária considerando que já iniciou as aulas do 2º semestre do ano letivo e a demora na analise poderia levar ao perecimento do próprio direito pleiteado ou perda do resultado útil do processo. A tutela antecipada requerida em caráter antecedente encontra-se prevista no artigo 303 do Código de Processo Civil de 2015, nos seguintes termos: Art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo. Desse modo, nos termos do artigo 300 do Novo Código de Processo Civil, o juiz concederá tutela de urgência quando [i] “houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito” –ou seja, aparência suficiente do direito - e [ii] “o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo” – isto é, presença de comprovada situação de urgência no caso concreto. Examino, sob este enfoque, a presença concreta de tais requisitos no que se refere aos requerimentos feito pela parte autora nos autos. Segundo consta na petição inicial e nos documentos acostados aos autos, especialmente o Inquérito Civil nº 1.29.004.000314/2018-36, pelo menos desde junho de 2018, o Ministério Público Federal está tentando junto ao Estado do RS, representado pela 7ª Coordenadoria Regional de Educação, e ao Município de Passo Fundo, providências necessárias à prestação de serviços educacionais às crianças e adolescentes da comunidade indígena Goj Jur, atualmente acampada na área ao lado da rodoviária desta cidade. Durante os trabalhos, foram aventadas três possibilidades de negociação: (a) que o processo educacional ocorresse na própria comunidade, com estrutura precária construída pelos próprios indígenas para servir de sala de aula; (b) que o processo educacional ocorresse em escola regular, disponibilizando-se educação bilíngue e transporte até as escolas; (c) que o processo pedagógico ocorresse em escola indígena, embora em município diverso, responsabilizando-se os réus pelo transporte escolar. A primeira, desejada pela comunidade indígena, foi considerada inviável tanto pelo MPF quanto pelo Estado do RS, tendo em vista a ausência de requisitos mínimos de segurança. Houve tentativa de realização da segunda possibilidade, sendo que o Município disponibilizou vagas para as crianças indígenas na Escola Municipal de Educação Infantil Padre Zezinho, sem realizar o transporte; já o Estado do RS informou a matrícula dos alunos do ensino fundamental na Escola Estadual Eulina Braga. No entanto, o cacique da comunidade informou que os alunos estariam com sérias dificuldades de adaptação, especialmente porque o Estado não ofereceu o estudo bilíngue e porque havia alunos indígenas que se comunicavam somente na língua materna. Quanto à terceira, o Estado do RS informou a matrícula na escola indígena existente no Município do Mato Castelhano, distante 22Km de Passo Fundo, a qual teria condições de acolher os indígenas. No entanto, nem o Estado do RS nem o Município de Passo Fundo se dispuseram a disponibilizar o transporte até a escola indígena de Mato Castelhano, sendo que as crianças e adolescentes indígenas da comunidade Goj Jur estão sem acesso à educação. Neste contexto o MPF ingressou com a ação para obrigar o Estado Rio Grande do Sul e Município de Passo Fundo garantirem o transporte necessário para o acesso a educação diferenciada das crianças e adolescentes indígenas da comunidade Goj Jur. Logo, avaliando a probabilidade do direito pleiteado, a resposta jurisdicional suscita responder alguns questionamentos: a) as crianças e adolescentes indígenas da comunidade Goj Jur tem direito a prestação estatal de fornecer uma educação diferenciada? b) o objeto deduzido em juízo viola algum dos vetores da liberdade, igualdade ou fraternidade ou algum princípio fundamental do Estado Democrático de Direito? c) há a obrigação dos entes federativos a realização de transporte das crianças e adolescentes? Vejamos atentamente. A educação pública indígena envolve um conjunto de prestações estatais que atendem a necessidade concreta do desenvolvimento da personalidade das crianças e adolescentes indígenas conforme as particularidades da etnia que integram, da formação da identidade cultural própria dos povo indígenas como grupo pertencente a categoria sociológica e historicamente diferenciado, possibilita a construção, manutenção e reprodução da higidez da organização social e cultural dos indígenas, atendendo aos seus costumes, línguas, crenças e tradições. A oferta da educação diferenciada além de atender as particularidades acima evita a cessação da reprodução cultural indígena e o que a Corte Interamericana de Direitos Humanos chamou de "produção de vácuo cultural" (produced a cultural vacuum), assim como tem o potencial de evitar que as crianças estejam expostas a situações de alguma forma de preconceito, clivagens operativas, bullying ou suscetibilidade a diferenciações negativas comumente ocorrentes no âmbito escolar de nosso país, ou como relatado na manifestação de caciques da Comunidade Indígena (Ata nº1/2019 de 21/06/2019 entregue ao MPF e anexado no E1-PROCADM3) "para não sofrerem com discriminação e perda da cultura". No informe do Relator Especial da ONU, o Dr. Rodolfo Stavenhaguen referiu que educação diferenciada dos povos indígenas se configura como um direito humano indispensável, in verbis: A educação é instrumento indispensável para que a humanidade possa progredir até os ideais de paz, liberdade e justiça social, que está a serviço de um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais genuíno para fazer a redução da pobreza, das incompreensões, das opressões, e das guerras. O direito a educação se revela chave para milhões de indígenas em todo mundo, não somente como meio para sair da exclusão e discriminação que vem sofrendo historicamente, sino também paro o disfrute, manutenção e respeito de suas culturas, idiomas, tradições e conhecimentos. (Stavenhaguen, Rodolfo. Los pueblos indígenas y sus derechos. http://www.cinu.org.mx/prensa/especiales/2008/indigenas /libro%20Satavenhaguen%20UNESCO.PDF. Tradução Própria). A historiadora e jurista Dra. Thaís Janaina Wenczenovicz aponta que a educação indígena se constituí como política de afirmação as comunidades nativas e aos povos tradicionais e se justifica essencialmente como reparação histórica, acrescido ao incentivo à diversidade ou, ainda, a promoção de justiça social e da equidade educacional. Refere a eminente professora que o direito a educação escolar indígena se caracterizada pela afirmação das identidades étnicas, pela recuperação das memórias históricas, pelo reconhecimento das matrizes linguísticas e conhecimentos dos povos indígenas e pela revitalizada associação entre escola/sociedade/identidade, em conformidade aos projetos societários definidos autonomamente por cada povo indígena e revela historicamente a democratização das relações sociais no país. (Wenczenovicz, Janaina Wenczenovicz. Artigo: Direitos fundamentais, educação indígena e identidade emancipatória: reflexões acerca de ações afirmativas no Brasil). Mas antes de adentrar no âmbito normativo é preciso observar em que estandarte descritivo e prescritivo na contemporaneidade o direito a educação diferenciada dos indígenas e suas prestações logicamente decorrentes, como a do trasporte escolar para Escola Indígena de Mato Castelhano, estão relacionados a vetores da liberdade, da igualdade e da fraternidade nos Estado Democráticos de Direito. Primeiro é importante observar que sob os aspectos fáticos-históricos a desigualdade baseada nas raças, etnias e origem foram uma constante na cosmovisão dos ideais de inautencidade cultural, sobretudo diante das ideologias eurocentristas e de branqueamento que em certos momentos históricos foram inventadas e se apresentaram falaciosamente como superiores e culturalmente mais desenvolvidas que os negros, índios, ciganos, árabes, judeus, etc. que impulsionaram uma série de acontecimentos segregatórios e de imposição cultural, como os processos sistêmicos de escravização, colonização, encomiendas, cristianização, holocausto e aparthaid. Ocorre que tais fenômenos reproduzem no tempo, mesmo depois da cessação institucionalizada, uma continuidade cultural de segregação disfarçada, exigindo dos países e da sociedade internacional esforços para o reconhecimento e valorização cultural da diferença, distribuição equitativa de bens e serviço e promoção de uma paridade participativa dos grupos minoritários que ficam em desvantagem em razão da subrepresentação no modelo de democracia representativa. Contudo, a democracia em sentido forte, como essência da nossa organização jurídica e política, se mostra como um ponto de partida com a necessidade de aprofundamento e graus de satisfação das necessidades cotidianas, na efetivação de direitos fundamentais e perspectivas de convívio e tolerância. Percebe-se uma situação complexa na relação entre democracia, república e estado de direito, onde o poder majoritário e contramajoritário podem se opor circunstancialmente, mas num âmbito mais aprofundado de democracia constitucional permite que tais âmbitos estejam em relação de equilíbrio conformativo e complementaridade recíproca como garantia de um projeto constitucional com esquema coexistencial. Desse modo, é possível perceber que a Democracia que rege todas as obrigações jurídicas do Estado e dos cidadãos tem um conceito aberto com vários matizes. Trata-se categoria dinâmica, flexível, aberta, garantidora, libertadora e operativa, sempre em construção e reconstrução. (BERCHOLC, Jorge O. Temas De Teoria Del Estado. 2ªed. Ciudad Autônoma de Buenos Aires: La Ley, 2014, 45-47). De todo modo, a democracia é oriunda de ideais de liberdade, igualdade e fraternidade dos povos, cujo caminho segue em progressiva construção, com avanços e recuos e também de reconstrução que, na evolução do tempo quanto maior ou mais extensa seja a participação democrática, maiores serão as exigências e maiores serão o número de novas demandas. Nessa linha, surgem novos direitos, novas garantias e necessidade de positivação desses direitos e garantias no elenco constitucional. Diante disso concluí Bobbio que: “Para um regime democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo.”(BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015, 13ª ed., p. 23.). Neste contexto, a verificação de compatibilidade do direito a educação diferenciada dos indígenas e suas prestações logicamente decorrentes exige entender que os povos indígenas tem um direito coletivo e individual de organização social e manutenção cultural intimamente relacionado a autonomia de pensamento e a não-integração ou não-assimilação à sociedade majoritária, cujo necessário reconhecimento pela Democracia Constitucional incluí a avaliação positiva da diferença de povos indígenas e étnicos que constrói um princípio geral de proteção de identidade e proibição de avaliação negativa que informa o princípio da não-discriminação. Nesta linha, uma educação diferenciada para crianças e adolescentes indígenas envolve o direitos à consagração da esfera de autonomia de cada criança e adolescente indígenas em seu enfoque individual e dos grupos humanos (comunidades indígenas) em seu enfoque coletivo, de modo que por um lado o preceito da proibição de excesso é um dos postulados aglutinadores da garantia desses direitos, pois consagra um feixe de competências negativas que envolvem o direito à não intervenção ou impedimento de ações ou de certas faculdades jurídicas, o direito à afetação não arbitrária ou à eliminação de bens legais e posições legais permitidas, que garantam a proteção da vida e da dignidade que proíbem a interferência em posições legais invioláveis de liberdade que incluam, entre outras coisas, a integridade física, julgamentos justos, liberdades de locomoção, expressão e informação adequada e em linguagem compatível com a cultura, crenças e tradições (sem impedimento ou discriminação), de pensamento, de consciência ou ideológica, de crença, profissional, de iniciativa privada, de expressão coletiva, política, sexual, filosofia de vida e autonomia. De outro lado, o preceito da proibição da proteção insuficiente confere competências positivas destinadas a assegurar e promover a dignidade humana, mediante prestações estatais e valorização positiva das diferenças culturais, com enfoque em uma igualdade libertadora e direitos diferenciais de um projeto de desenvolvimento plural e emancipador. Desse modo, quanto ao aspecto deontológico, é observável, que de um lado os direitos fundamentais negativos com suas posições jurídicas permissivas (Erlaubnisnorm), de proteção a bens jurídicos (Schutzgut) e de não intervenção (Eigriff) ou impedimento (Hinderung) ou prejuízo (Beeinträchtigung) e eliminação (Beseitigung) a estas posições tem os conteúdos deontológicos de dar, não fazer ou fazer próprios de normas que criam direitos subjetivos. De outro lado, os direitos sociais e culturais obrigam segundo um mandamento de promoção e ação (Handlungsstufe) que detém o conteúdo deontológico de dar, fazer e algumas vezes, inclusive, de não fazer que permitem a exigibilidade de tais direitos.(ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 1997. p. 222ss y 294. Também BOROWSK, Martin. Grundrechte als Prinzipien. P. 146-151.) Nessa linha, a garantia, concretização e promoção dos direitos negativos que exigem abstenção e limitação do Estado se analisam sobre o enfoque do postulado da proibição do excesso (ÜbermaBverbot).(BOROWSK, Martin. 1998, p.115, in apud: LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais sociais. p 76.) Já os direitos sociais e culturais a garantia de proteção/promoção se realiza por meio do enfoque da proibição da proteção insuficiente ou da no suficiência (untermaBverbot).(SILVA, Virgilio Afonso. Op. Cit. p.28 BOROWSK, Martin. Óp. cit. 120 e 151.) Em seguida realizando a análise contextual das áreas de liberdade e autonomia evidenciam as dimensões de importância das necessidades existenciais de uma vida em sociedade, onde os indivíduos são reciprocamente afetados em seus relacionamentos e, por isso, se por um lado, sob a afetação do medo os sujeitos querem dominação, padronização, disciplina e docilização, de outro por meio da afetação da esperança que os sujeitos querem liberdades, multiplicidades, satisfação de necessidades concretas para dar sentido à vida. Nessa linha, considerando a natureza múltipla e diversificada das sociedades contemporâneas, a liberdade, seja por exemplo de pensamento, consciência, religião, expressão, reunião, associação, tradição cultural, organização social própria, comunicação na linguá particular, orientação sexual e política, consagra a pluralidade, protege existência individual e social, a identidade de indivíduos, grupos, coletividades e minorias contra práticas de assimilação e dão base ética e legal à cultura sem sujeição externa. Nesta linha que se encontra a posição garantista de direitos que destaca a relação de liberdade com o direito à cultura e organização social como é a da manutenção cultural indígena, na forma que segue: La libertad de consciencia, es un derecho cultural típico, de hecho el primer y fundamental derecho a la tutela de la propia identidad y diferencia cultural. Lo mismo dígase de la libertad religiosa, de la libertad de expresión y de otras libertades fundamentales, las que vienen a tutelar las diversas identidades, no conformes, no homologables de cada persona. (FERRAJOLI. LUIGI. Pincipia iuris. Teoria Del Diritto y della democracia. Roma-Bari Laterza. 2007. Vol.2.p.59. La differenza sessuale e le garanzie dell ‘eguaglianza.1993. p.49-53.) Assim, se observa que o direito a educação indígena diferenciada, assim como os meios necessários a seu acesso, que no presente caso é o transporte escolar para a Escola Indígena de Mato Castelhano, envolve além da garantia da existência com sentido e expressão da liberdade social e cultural, a relação complementar com a igualdade, a diferença cultural e a justiça social. Em uma perspectiva tradicional é interessante referir as observações de Canotilho no sentido de que à concretização do princípio da igualdade pode se realizar em três planos: a) Proibição do arbítrio (genérico) que impede diferenciações que não se baseiem num fundamento sério; num sentido legítimo e sem um fundamento razoável; b) Proibição da discriminação (concreto) que indica que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação econômica ou condição social; c) Obrigação de diferenciação (discriminação positiva) que visa contrabalancear uma desigualdade de fato para igualar direitos conforme as características concretas de cada indivíduos ou grupos para garantir uma igualdade substancial. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5° ed. Coimbra: Livraria Almedina. 2002. p. 407 e 424 a 430). Ademais, a análise da pluralidade reconhecida pelas Constituições Democráticas e Tratados Internacionais De Direitos Humanos exige que o vetor da igualdade reconheça o postulado ou preceito da proibição de proteção suficiente que garanta condições materiais à vida digna, onde a proteção da igualdade libertadora e dos direitos diferenciais se entrelaçam e modelem um projeto de pluralismo jurídico emancipatório que possa relacionar a justiça social, igualdade e diferença. Dessa forma, é importante notar que não existe uma dicotomia entre igualdade e diferença, já que o valor oposto da igualdade é a desigualdade. As diferenças, sejam naturais ou culturais, diferenciam e individualizam pessoas e definem sua identidade específica e, portanto, são valorizadas e protegidas por direitos fundamentais. As desigualdades, por sua vez, sejam econômicas ou sociais, são disparidades entre sujeitos produzidos pelo contraste de direitos econômicos, assim comoposições de poder e de sujeição e são removidas, reduzidas ou compensadas por níveis de igualdade substancial garantidos pela satisfação de direitos sociais.(FERRAJOLI. Derechos y Garantías. La ley Del más débil. Editorial Trotta. 2010, p. 82-83.) Nessa linha, o postulado de proteção suficiente requer um enfoque não apenas na justiça liberal, mas também na complementação da justiça social e sua relação com a igualdade. Numa visão bidimensional de redistribuição e reconhecimento defendida por Nancy Fraser, a justiça social envolve por um lado a inclusão social e por outro a não integração ou não assimilação a sociedade majoritária, uma vez que remete a direitos de distribuição de recursos e garantias sociais necessários a amenização dos efeitos do sistema de socialização econômica negativa e direitos de reconhecimento que envolvem a valoração positiva da diferença de pessoas, grupos e etnias que monta um principio geral de proteção identitária e proibição da valoração negativa que informa o principio de não discriminação.(FRASER. Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma concepção integrada de justiça. In: IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia; SARMENTO, Daniel. (coord.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro Lúmen Júris, 2010, p. 167-172. Também LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O conceito de terras indígenas na Constituição Federal de 1988: critica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol. 1. Ed. Curitiba: Editora CRV, 2014. p.61-63.) É importante ressaltar, que esse dever jurídico de reconhecimento referido por Fraser não dispensa as reivindicações de justiça econômica, ao contrário, assevera que a garantia de um regime de igual respeito e consideração a diferença cultural, a paridade participativa e perspectivas plurais exigem certas condições objetivas, bem como de que certas condições subjetivas sejam satisfeitas: As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e desigualdade que impeçam a igualdade de participação, isto é, que excluem arranjos sociais que institucionalizam a privação, as grandes disparidades de renda, riqueza, e tempo de lazer, impedindo a possibilidade de algumas pessoas de interagirem com outras como iguais. A condição subjetiva para a igualdade de participação requer que os padrões institucionalizados de valores culturais expressem igual respeito por todos os participantes e garanta a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social.( FRASER, Nancy. A teoria da justiça na contemporaneidade, in Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano 2, Número 2, 2010). Desse modo, a educação diferenciada para indígenas, assim como as necessárias prestações estatais de transporte para levar as crianças e adolescentes a escola indígena de Mato Castelhano, além de concretizar o reconhecimento a identidade cultural, organização social conforme costume, crenças, tradições e língua própria, também permitem o desenvolvimento da personalidade, formação técnica e humanizadora necessária para manutenção de uma vida digna, atendendo tanto os vetores da liberdade, como da igualdade, já que esta, como ensina Bobbio (in Igualdade e liberdade. 1997. p.13) pressupõe um valor relacional da pessoa humana como ser genérico pertencente a uma dada categoria e direito em progressiva construção, cujo sentido tem conotação histórica, social e valorativa, cujos amplos enfoques se manifestam na igualdade jurídica (isonomia), igualdade política (isegoria), igualdade no acesso ao exercício de funções (isotimia), igual respeito e consideração, igualdade de condições e oportunidades, igualdade de posição, igualdade econômica ou material e inclusive igualdade ao reconhecimento da diferença, cuja categoria é relacionada também a fraternidade que mantém a relação de igualdade e diferença existencial num estagio de convivência pacifica, justa e solidária entre diferentes pessoas, grupos e povos dentro de certos campos espaciais e temporais e no resguardo de direitos coletivos e culturais dos povos, poli-étnicos e das minorias. Neste contexto, o direito a educação diferenciada dos indígenas e suas prestações logicamente decorrentes em uma relação de meio fim, como a do trasporte escolar que se constituí meio necessário para o acesso daquela prestação final, convergem com os vetores da liberdade, da igualdade e da fraternidade consagrados em nosso Estado Democrático de Direito. Explicado isso, é preciso verificar no âmbito jurídico como vem sendo desenvolvidos os aspectos normativos que constituem as obrigações estatais referente a educação indígena diferenciada e a obrigação da prestação do transporte escolar como meio para atingir aquele fim, analisando sua estrutura, justificação e abrangência. O âmbito normativo que rege o direito subjetivo a educação pública diferenciada das comunidades indígenas e seus meios necessário para atingimento deste fim (no caso, o transporte escolar) envolve a Constituição Federal, Tratados Internacionais de Direitos Humanos, leis nacionais dos entes da federação e legislação administrativa regulamentar. Todo esse bloco concatenado de proteção está relacionada a cinco vetores normativos do direito nacional, internacional e comparado, conforme o jurista internacional Benedict Kingsbury: 1. Reivindicação de direitos humanos e não discriminação, 2 reivindicação de direitos de minorias; 3 reivindicação baseada em autodeterminação; 4. reivindicações baseadas na soberania histórica; 5; Reivindicação como povos indígenas baseadas em tratados ou outros acordos entre povos indígenas e Estados. (Kingsbury, Benedict. Cinco estruturas conceituais concorrentes de reivindicações de povos indígenas em direito internacional e no direito comparado. NYU Journal of International Law and Politics, 34, 2001.p 189.) Importante ressaltar que diante da pluralidade de normas é tarefa do jurista de coordenar estas fontes, considerando o que elas dizem e aplicando o que Erik Jayme chama de “diálogo das fontes”, através do qual as normas dialogam entre si, a fim de obter a efetividade de sistemas autônomos de proteção, aponta um procedimento hermenêutico que caminha em uma nova direção, deixando de lado a exclusão para dar lugar à coexistência, deixando de lado a intransigência a fim de aceitar o diálogo.(MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes. 2008. p. 24 e 148). Começando pela Constituição Federal de 1988 verifico que esta traz a educação como um direito social e fundamental da pessoa humana e, como tal, torna-se exigível a sua ampla e irrestrita efetividade, já que assegura direito público subjetivo ao ensino obrigatório, assegura as comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, garante o exercício dos direitos culturais e protege as manifestações culturais indígenas, além do que reconhece os índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...] IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. [...] § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino. § 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios; § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório. § 5º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Além disso, no âmbito dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos a Convenção 169 da OIT inaugurou uma nova fase na consideração dos direitos dos povos indígenas, superando a visão estruturada sobre as ideias de tutela e o caráter provisório do status dos povos diferenciados, previsto na Convenção 107 da OIT anterior. Houve também a superação das ideias de que os povos indígenas seriam um obstáculo ao desenvolvimento econômico e social. Antes da Convenção 169 da OIT, prevaleceu uma visão enfocada, no lado culturalista etnocêntrico, que manifestou certo grau de posição de hierarquia inferior da cultura indígena em relação às culturas nacionais majoritárias ou dominantes, de modo que as práticas de integração e homogeneização cultural e as políticas resultantes da assimilação foram consideradas vantajosas para os indígenas e, por outro, uma abordagem estruturalista que considerou a questão indígena do ponto de vista econômico e não cultural, a fim de autorizar a integração de acordo com os fundamentos do progresso econômico e do desenvolvimento nacional. (IKAWA. Daniela. Direitos dos povos indígenas. Igualdade diferença e direitos humanos. 2010. p.518). No entanto, a Convenção 107 da OIT, de 1957, que dispõe sobre a proteção dos direitos trabalhistas dos povos indígenas e seus costumes, ainda pressupunha a inferioridade e a condição dos estágios menos avançados dos povos indígenas, atribuindo ao Estado políticas sistemáticas de tutela e integração. progressiva para a vida das sociedades dos respectivos países. Assim, o sistema normativo anterior à Convenção 169 da OIT, seja na legislação nacional, seja na Convenção 107 da OIT, manifesta características assimilacionistas ou integracionistas cuja reivindicação imediata é silenciar e disciplinar e onde a pretensão mediata seria trazer diferentes povos e grupos abandonando sua essência cultural. Em um contexto de pressão dos movimentos indígenas dos anos 60, 70 e 80 para o reconhecimento do direito à diferença e crítica à orientação integracionista da Convenção 107 da OIT, resultou na elaboração da Convenção 169 das Nações Unidas. A OIT, realizada em 1989, que instituiu obrigações para com Estados signatários em relação aos povos indígenas, representou novos moldes conceituais e consideração do direito à diferença dos povos indígenas, suas crenças, seus costumes, reconhecendo seu controle sobre suas instituições, formas de vida, desenvolvimento econômico e definitivamente manter suas identidades, línguas, religiões dentro dos estados em que vivem. Em seguida, a Convenção 169 da OIT representou uma estrutura internacional para a eficácia do reconhecimento legal de terras tradicionais e a juridicidade de seus costumes e proporcionou a formação de uma metodologia de fundação legal multicultural focada na alteridade concreta e consistente com um sistema mais baseado na comunidade, com relevância a fraternidade para reservar o núcleo essencial do direito à diferença cultural/ existencial dos povos indígenas e remover o assimilacionismo e a tutela integracionista. Além disso, é notável que a Convenção 169 da OIT não menciona proteção e integração. Além disso, a Convenção 169 da OIT positivamente protegeu e valorizou o direito à identidade cultural diferenciada dos povos indígenas em seus diversos artigos e declarou-se como um instrumento de proteção dos direitos sociais previsto no artigo 2º, as liberdades fundamentais previstas no art. .3º, direitos de cidadania no artigo 4º, direito a melhora nas condições de vida dos povos interessados englobando a educação, direito de petição no art. 12, o direito à não discriminação (art. 20), e os direitos a educação nos artigos 27, 29 e 30.1. Art. 7.2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria. Artigo 27. 1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos apropriados para essa finalidade. Artigo 29 Um objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes ministrar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na da comunidade nacional. Artigo 30.1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e culturas dos povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos derivados da presente Convenção. Além disso, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovada pelo Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990, a qual entrou em vigor internacional em 02 de setembro de 1990, aponta que não será negada a criança indígena ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma. Artigo 29 1. Os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada no sentido de: a) desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da criança em todo o seu potencial; b) imbuir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, bem como aos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c) imbuir na criança o respeito aos seus pais, à sua própria identidade cultural, ao seu idioma e seus valores, aos valores nacionais do país em que reside, aos do eventual país de origem, e aos das civilizações diferentes da sua; d) preparar a criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e pessoas de origem indígena; Artigo 30 Nos Estados Partes onde existam minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, ou pessoas de origem indígena, não será negado a uma criança que pertença a tais minorias ou que seja indígena o direito de, em comunidade com os demais membros e seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma. Acrescente, ainda, que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece, no artigo 14, item 3, que o Estado tem a obrigação de adotar medidas no sentido de que o indígena seja educado de acordo com a sua própria cultura e idioma. Artigo 14 [...] Os Estados adotarão medidas eficazes, junto com os povos indígenas, para que os indígenas, em particular as crianças, inclusive as que vivem fora de suas comunidades, tenham acesso, quando possível, à educação em sua própria cultura e em seu próprio idioma. O Estatuto da Criança e do Adolescente também é aplicado para crianças e adolescentes indígenas, desde que observadas as peculiaridades socioculturais de suas comunidades, o qual dispõe que: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...] V - acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica. E a Lei nº 9.394/96, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional, prevê: Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de: [...] VI - assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, respeitado o disposto no art. 38 desta Lei; VII - assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual. Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: [...] V - oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. VI - assumir o transporte escolar dos alunos da rede municipal. Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: [...] § 3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. A Lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação, também expressa que: Art. 8º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste PNE, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei. § 1º Os entes federados estabelecerão nos respectivos planos de educação estratégias que: [...] II - considerem as necessidades específicas das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, asseguradas a equidade educacional e a diversidade cultural; Observa-se ainda que a Lei 6001 (Estatuto do Índio) garantiu há muito tempo a alfabetização dos nativos “na língua do grupo a que pertença.” Ademais, o decreto Presidencial nº 26 atribui ao MEC a responsabilidade de inserir a Educação Escolar Indígena ao sistema regular de ensino, bem como desenvolver ações inclusivas. Também no âmbito regulamentar foram editados Regulamentos e Resoluções administrativas, entre eles: Parecer CNE/CEB nº 14/1999, aprovado em 14 de setembro de 1999 - Dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas; Resolução nº 10, 28 de março de 2006 - Estabelece as orientações e diretrizes para assistência financeira suplementar aos projetos educacionais no âmbito da educação escolar indígena; Decreto nº 6.861, de 27 de maio de 2009 - Dispõe sobre a Educação Escolar Indígena, define sua organização em territórios etnoeducacionais, e dá outras providências; Resolução nº 9, de 1º de abril de 2009 - Estabelece critérios, parâmetros e procedimentos para a assistência técnica e financeira para a realização da I Coneei e implementação dos Territórios Etnoeducacionais; Resolução nº 2, de 5 de março de 2009 - Estabelece as normas para que os municípios, estados e o Distrito Federal possam aderir ao Programa Caminho da Escola para pleitear a aquisição de ônibus e embarcações para o transporte escolar; Pois bem. A educação é algo imprescindível à formação do indivíduo, pois ela é a ferramenta para o alcance de uma vida melhor, com mais dignidade, além de promover o acesso à cidadania, ao cumprimento de direitos e deveres, a formação da identidade cultural própria dos povo indígenas, a garantia de sua organização social e cultural, atendendo aos seus costumes, línguas, crenças e tradições, com possibilidades de recuperação das memórias históricas e reconhecimento das matrizes linguísticas, evitando a cessação da reprodução cultural indígena, o fenômeno da "produção de vácuo cultural" (produced a cultural vacuum). Além disso, a educação diferenciada é instrumento essencial para o exercício da comunicabilidade e expansão da linguagem particular do grupo que pertencem, aprendizagem e garantia do livre desenvolvimento da personalidade da criança, como garantia efetiva do dever da sociedade e do Estado na proteção integral da criança, conforme norma (e não recomendação) prevista no art. 227 da Constituição Federal, observando que a necessária superação da infância (cujo termo etimológico vem de infantia do latim, in + fari, ou seja aquele que ainda não desenvolveu a capacidade de falar de se comunicar na comunidade particular a que pertence) exige fundamentalmente a evolução da capacidade de emissão e recepção de mensagens comunicativas sem obstáculos, condição inexorável para uma vivência digna e cidadã. Neste contexto, que o bloco concatenado de normas, confere obrigações aos entes estatais de promover a educação indígena diferenciada e intercultural, bem como bilíngue e comunitária, assegurando às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. E em decorrência disso, também tornam obrigatórias a satisfação dos meios, como no presente caso, o direito ao transporte escolar necessário para atingir o objetivo fim que é o acesso ao direito subjetivo fundamental a educação diferenciada e de qualidade. Observo que no caso dos autos, após intensa negociação do MPF com o Estado do RS e o Município de Passo Fundo, o Estado do RS providenciou a matrícula na Escola Estadual Indígena no Município de Mato Castelhano, distante em torno de 22Km de Passo Fundo, a qual tem condições de acolher as crianças e adolescentes indígenas; no entanto, não se responsabilizou pelo transporte. Ocorre que, após todas as opções administrativas possíveis para resolver a situação, verificou-se que a mais adequada seria matricular os alunos em unidade escolar estadual na cidade Mato Castelhano, distante 22 Km de Passo Fundo. Ora, o Estado ao assumir a matrícula dos alunos indígenas em escola estadual de outro município, assumiu, como consequência, a obrigação de providenciar os meios necessários (transporte) para o fim (educação) fosse alcançado. Isso porque providenciar a matrícula dos alunos sem disponibilizar o seu transporte, no caso, seria inviabilizar qualquer solução para o impasse, considerando que a comunidade indígena não tem recursos financeiros de arcar com o transporte. Inclusive, diante de certa frustração da expectativa de não oferecer a educação diferenciada de ensino fundamental para as crianças indígenas dentro deste Município, faz com que surjam deveres de cooperação entre os entes federativos decorrentes da constituição, ainda que o artigo 10 da Lei nº 9.394/96 (lei que trata das diretrizes e bases da educação nacional) estabeleça que cabe aos Estados assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual. Assim, ainda que num juízo sumário, típico das tutelas de urgência, vislumbro elementos suficientes para deferir que o Estado do RS promova as diligências necessárias no sentido de fornecer o transporte das crianças e adolescentes da comunidade Goj Jur, atualmente acampadas na área ao lado da rodoviária de Passo Fundo, até a Escola Estadual Indígena de Mato Castelhano (ida e volta). O periculum in mora resta evidente, tendo em vista a informação de que os alunos indígenas da comunidade Goj Jur estão afastados das aulas desde o início do período letivo de 2019, bem como que as aulas do segundo semestre letivo iniciaram-se em 04 de agosto de 2019. Registre-se que o cumprimento da presente decisão deverá ser feito pelo Estado do RS, nos termos acima delineados, o qual poderá ser perfectibilizado através de contrato emergencial ou até mesmo através de convênio com o Município de Passo Fundo, nos termos do PEAT - Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar no Rio Grande do Sul (Lei estadual nº 12.882/08). Neste ponto, esclareço contudo, que não há qualquer ilegalidade do Estado do Rio Grande do Sul optar perfectibilizar a execução do transporte mediante o convênio com o Município de Passo Fundo, nos termos do PEAT - Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar no Rio Grande do Sul (Lei estadual nº 12.882/08). As razões são várias. Primeiro porque o Município do Passo Fundo não contribui de qualquer modo para permitir o acesso das crianças e adolescentes indígenas a uma educação de ensino fundamental diferenciada. Conforme referido, o bloco concatenado de proteções do direito subjetivo a educação pública diferenciada das comunidades indígenas e seus meios necessário para atingimento deste fim (no caso, o transporte escolar) envolve a Constituição Federal, Tratados Internacionais de Direitos Humanos, Leis e legislação administrativa e regulamentar que obrigam todos os entes inclusive o Município. Então, diante da não oferta de educação diferenciada as crianças indígenas surge de outro lado a expectativa legitima de contribuição nos moldes de um federalismo cooperativo para garantia do direito ao transporte escolar, bem como pelo fato de que sendo as crianças residentes no Município de Passo Fundo o interesse local para o fornecimento do transporte dadas as características excepcionais de necessidade premente, concretização do direito fundamental ao ensino fundamental e circunstância fática caracterizado pelo número pequeno de crianças a serem transportadas e pequena distância para efetivação do transporte (22 km) dentro da microrregião, cujo tempo esperado não leva mais que meia hora, sendo inclusive um modo de transporte mais rápido que se fosse o caso de atravessar a cidade. Desse modo, considerando o disposto no art. 30, V e VI da Constituição Federal no sentido de cabe ao Município organizar e prestar serviço de interesse local e manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental entendo que há suporte jurídico suficiente para considerar valida a cooperação do ente Municipal nos termos do PEAT - Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar no Rio Grande do Sul em equilíbrio, cooperação e conformação com as normas constitucionais e legais que outorgam a competência administrativa sobre ensino fundamental e transporte escolar. Tal solução vai de encontro as soluções jurídicas no direito comparado sobre tensões de competência entre os entes federativos. A par das críticas possíveis ideológicas de serem feitas a Carl Schmitt, entendo que a sua compreensão em muito pode ajudar o caso concreto no plano dogmático constitucional, sobretudo pelo fato da repartição de competências nossa ser uma teoria doutrinária alemã de sua época. Schmitt sustenta que a existência política concreta de um Estado implica que ele deve decidir por si as questões de sua existência, respeitando, sempre, o pacto federativo (Bundesvertrag). A união durável da federação serve à conservação política (politischen Selbserharltung), que a tem como objetivo comum (gemeinsamen Zweck). Nesse sentido, sendo o fundamento da federação o próprio pacto federativo, é preciso que este seja sempre posto em destaque, especialmente nos conflitos de competência, afim de se que torne um princípio federativo. [SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Berlin: Duncker e Humblot, 1989, p. 376.] Para o constitucionalista alemão, o pacto federativo não é totalmente livre, mas um pacto estatutário-interestático (zwischenstaatlicher staatsvertrag), que visa a uma organização durável (dauernde Ordnung), no sentido de ser uma federação perpétua (ewiger Bund). A federação, e todo o seu regime de repartição de competências envolve algumas ideias centrais, que lhe garantem a própria coesão: autoconservação (selbsterhaltung), durabilidade (Begriff der Dauer), pacificação durável (Dauern Befriedung) e um direito de tutela (Aufsichtsrecht). Nessa linha, para que a Federação seja perpétua, durável, pacífica, é indispensável que se trabalhem com a existência de uma “guerra federativa” (Bundeskrieg), onde as antinomias políticas e jurídicas (expressadas nos conflitos de competência) ressaltam e precisam ser resolvidas, através de uma saída principiológica de raciocínio metodológico e não de ponderação constitucional. Para Schmitt, a resolução dessa “guerra federativa” se faz pela atenção aos direitos de autoconservação (Selbsterharltungsrecht) e de autodeterminação (Selbstbestimmungsrecht) , bem como pela implementação de alguns princípios, que se colocam entre o binômio da associação federativa (Bundesmässiges Zusammensein) e da pluralidade (Mehrheit), especialmente: a) o princípio da homogenidade (Homogeniitäter Prinzip); b) o princípio da primazia do interesse (Interesses Prinzip); e, c) o princípio federativo propriamente dito (Bundes Prinzip). Sempre que colocadas duas normas constitucionais ou infraconstitucionais em conflito, em que a hierarquia constitucional não permite sobressair a resolução do caso concreto, nem tampouco a ponderação principiológica, Schmitt entende que, nos conflitos de competências, é indispensável analisar dentro de cada caso qual a relação que se estabelece entre os princípios da homogeneidade, da primazia do interesse e da conservação federativa. Ou seja, num eventual alegação de incompetência administrativa ou condição de possibilidade jurídica do Município de Passo Fundo realizar o transporte escolar para Mato Castelhano necessário para que crianças indígenas tenham o acesso a educação diferenciada de ensino fundamental, é preciso investigar a disposição desses três princípios no caso em tela, a fim de que se possa ter uma solução a mais legítima “possível”, dentro da realidade constituinte de um determinado país. Assim, adotando-se uma teoria principiológica, seria necessário averiguar, dentre as saídas possíveis, qual delas atende melhor o princípio federativo, quer dizer, qual solução permite fortalecer ainda mais a autonomia e a autoconservação da federação? Em segundo lugar, qual o interesse que está em ênfase no caso concreto, a competência constitucional de permitir e garantir o acesso ao ensino fundamental pela crianças indígenas mediante transporte escolar na Microrregião?; e, por fim, dentro de outros problemas igualmente tratados sobre a mesma matéria, qual a saída que se verifica mais homogênea com a que se pretende adotar? Respondidas essas considerações, pode-se, quem sabe, chegar a uma solução mais adequada, e que guarde legitimidade com os valores e os anseios inscritos nos princípios constitucionais. Analisando o caso concreto, entendo que a determinação que o Estado do RS realize o transporte escolar podendo perfectibilizar a execução por meio de contrato emergencial ou através de convênio com o Município de Passo Fundo, nos termos do PEAT - Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar no Rio Grande do Sul é o que melhor conserva a autonomia federativa no presente caso, porque a atuação, inclusive neste último caso não retira ou compromete gravemente a competência municipal, seja sob o aspecto burocrático, seja sob o aspecto financeiro, seja sob as definições jurídicas previamente estabelecidas pelo legislador. Ademais, a sua atuação faz implementar antes a políticas públicas voltadas a garantir o acesso ao ensino fundamental diferenciado a crianças indígenas cujo interesse tem primazia sobre algum entrave burocrático de pequeno impacto ao ente público, ainda mais considerando as expectativas frustradas pelo não oferecimento da educação diferenciada dentro da zona urbana do Município. Por fim, a saída mais homogênea que se pode ter é garantir sempre que o ente com facilidade nas condições técnicas de prestação seja capaz de se responsabilizar pela implementação do Estado de Bem-Estar Social e satisfação de um direito fundamental e humano que também está entre suas obrigações. Logo, se o Estado do Rio Grande do Sul optar pelo cumprimento por intermédio do Município de Passo Fundo considerando a forma mais rápida e eficiente para o cumprimento, este Município deverá cumprir também a decisão no mesmo prazo determinado, considerando que tal lógica de solução não compromete os vetores de autoconservação, durabilidade e pacificação durável do pacto federativo, bem como atendem satisfatoriamente a necessidade concreta do desenvolvimento da personalidade das crianças e adolescentes indígenas conforme as particularidades da etnia que integram, da formação da identidade cultural própria dos povo indígenas, possibilitando a construção, manutenção e reprodução da higidez da organização social e cultural dos indígenas, atendendo aos seus costumes, línguas, crenças e tradições, com possibilidades de recuperação das memórias históricas e reconhecimento das matrizes linguísticas, evitando a cessação da reprodução cultural indígena, o fenômeno da "produção de vácuo cultural" (produced a cultural vacuum), assim como impedindo que as crianças estejam expostas a eventuais situações de preconceito. Ante o exposto, defiro o pedido de tutela antecipada antecedente para determinar que o Estado do RS, no prazo máximo de 10 dias, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais) pelo descumprimento, promova as diligências necessárias no sentido de fornecer o transporte das crianças e adolescentes da comunidade indíegna Goj Jur, atualmente acampadas na área ao lado da rodoviária de Passo Fundo, até a Escola Estadual Indígena de Mato Castelhano (trajeto ida e volta), o qual poderá ser perfectibilizado através de contrato emergencial ou até mesmo através de convênio com o Município de Passo Fundo, nos termos do PEAT - Programa Estadual de Apoio ao Transporte Escolar no Rio Grande do Sul (Lei estadual nº 12.882/08). Nesta última possibilidade de cumprimento da decisão, apenas esclareço que não poderá o Município negar cumprimento com base na negativa de competência, considerando a fundamentação supra Intime-se o Estado do RS e Município, com urgência Intimem-se as partes da presente decisão, sendo a parte requerente para aditar a petição inicial no prazo de 30 dias, requerendo a confirmação do pedido de tutela final FABIANO HENRIQUE DE OLIVEIRA Juiz Federal  

Transgênero: Mudança de nome sem cirurgia de transgenitalização

1a Vara da Família - Leopoldina Regional - Rio de JaneiroPROCESSO Nº:AUTORA: ...AÇÃO: RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. SENTENÇA Trata-se de ação de retificação de registro civil, proposta pelo autor objetivando alteração do seu nome e sexo. Alega a parte autora que, desde tenra idade, sempre apresentou características psíquicas próprias do sexo feminino, declarando-se transexual. Por tal motivo, requer a alteração de seu nome para ..., bem como de seu sexo para feminino, a fim de realizar de maneira plena sua dignidade pessoal, afastando o estigma e a violência sofrida ao longo de toda sua vida, por conta do desconforto psicológico face ao sexo anatômico. Com a inicial vieram os documentos de fls.02/55, dentre eles: Parecer psicológico às fls.38/41, a avaliação psicológica conclui que a modificação dos documentos será uma importante realização para o requerente, eis que marcará a inscrição simbólica de ... como mulher, ou seja, formalizar uma situação de fato. Relatório social às fls. . Certidões dos Ofícios de Registro atestando que nada consta no nome do autor às fls. . Estudo Social às fls. ,com parecer favorável à procedência do pedido. Estudo Psicológico às fls. , com parecer favorável à procedência do pedido.Parecer final do Ministério Público às fls. , no qual opina pela procedência do pedido, devendo ser retificado o registro de ..., para que dele passe a constar o nome ... e o sexo feminino, com a respectiva averbação em seu registro de nascimento, na forma acima citada.O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR.Trata-se de ação para retificação de registro civil envolvendo caso de transgênero feminino, no qual o requerente pleiteia a alteração de seu nome, bem como a alteração de seu sexo, para que passe a constar feminino, sem que haja qualquer referência no assentamento às alterações sofridas.Antes de adentrar o cerne da questão, reputo importante tecer algumas considerações iniciais acerca do delicado assunto a ser tratado na presente sentença. Trata-se de matéria não legislada que deve ser resolvida com base nos direitos fundamentais do indivíduo.Em primeiro lugar, temos que para qualquer pessoa, independentemente de condição sua, étnica, religiosa, política, gênero e de orientação sexual, se aplicam os mesmos direitos garantidos a todos. Qualquer restrição ao direito inerente à pessoa humana de buscar sua felicidade deve ser rechaçada de plano, como marco de uma sociedade tolerante, pluralista e inclusiva.A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU estabelece em seu artigo 7 que“Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”Nesse mesmo sentido, há ampla regulação do sistema internacional de direitos humanos sobre o tema, e cito especificamente o Pacto Interamericano de Direitos Civis e Políticos, que estabelece, em seu artigo 2º: “1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição. 2. Na ausência de medidas legislativas ou de outra natureza destinadas a tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto, os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a tomar as providências necessárias com vistas a adotá-las, levando em consideração seus respectivos procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto.” Desse modo a explicitação dos direitos fundamentais da pessoa em razão de sua autodefinição de gênero ou orientação sexual tem-se como necessária apenas em razão de se detectar que na vida social essa questão enfrenta forte preconceito e segregação, especialmente por parte do Estado brasileiro, ao deixar de adotar as medidas necessárias para a efetivação dos direitos fundamentais dessa população ou através de um agir concreto contrário a esses direitos.E a necessidade de sua explicitação e efetivação se dá de dois modos: (1) a eliminação da discriminação e (2) o compromisso dos Estados-Parte a tomar as providências concretas e imediatas necessárias para eliminar a discriminação.A Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, de 05 de junho de 2013, nos dizeres de VECCHIATTI, Paulo Roberto Lotti e VIANA, Tiago Gomes (“LGBTI E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS: A construção da cidadania internacional arco-íris”, disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=a3f66d3a6aab9fa2) estabelece os conceitos de discriminação e discriminação indireta que tenham por base a nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, filosofia política ou de outra natureza, origem social, posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante, refugiado, repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência, característica genética, estado de saúde física ou mental, inclusive infectocontagioso, e condição psíquica incapacitante, ou qualquer outra condição (art. 1º). A Convenção também reitera o princípio da igualdade e da não-discriminação (art. 2º) e que todo ser humano goza do direito ao reconhecimento, exercício e proteção, em condições de igualdade, individual e coletivamente, de seus direitos humanos e liberdades fundamentais previstos na legislação interna e nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados-parte (art. 3º). No mesmo sentido, a Constituição Federal estabelece que o Estado brasileiro se rege pelo fundamento da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e possui como objetivo fundamental “ IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (artigo 3º, IV).Especificando o combate à qualquer forma de discriminação temos os “Princípios de Yogyakarta” de 2.006, documento redigido por grupo eminente de especialistas em direitos humanos, entre eles a brasileira Sonia Onufer Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, que estabelecem princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Esse documento internacional estabelece em seu Princípio 2 que “Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero. Todos e todas têm direito à igualdade perante à lei e à proteção da lei sem qualquer discriminação, seja ou não também afetado o gozo de outro direito humano.” E com relação à discriminação estatui que:“A discriminação com base na orientação sexual ou identidade gênero inclui qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivos ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade perante à lei ou proteção igual da lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais. A discriminação baseada na orientação sexual ou identidade de gênero pode ser, e comumente é, agravada por discriminação decorrente de outras circunstâncias, inclusive aquelas relacionadas ao gênero, raça, idade, religião, necessidades especiais, situação de saúde e status econômico.”O Princípio 3, referente ao “direito ao reconhecimento perante a lei”, estabelece que:“Toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei. As pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida. A orientação sexual e identidade gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade. Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero. Nenhum status, como casamento ou status parental, pode ser invocado para evitar o reconhecimento legal da identidade de gênero de uma pessoa. Nenhuma pessoa deve ser submetida a pressões para esconder, reprimir ou negar sua orientação sexual ou identidade de gênero.” Portanto, além da igualdade e do direito à não-discriminação, o indivíduo pode se autodefinir quanto ao seu gênero e por óbvio não pode ser forçado a se submeter a nenhum procedimento médico como pré-condição para alterar seus registros civis.Nenhum país pode recusar a modificação do registro a partir da autodefinição de gênero do indivíduo, nem criar obstáculos de qualquer modo para que o indivíduo possa ter acesso a esse direito.No Brasil, em razão da falta de legislação específica e da incompreensão do sistema internacional de direitos humanos, o Poder Judiciário conta com decisões diversas acerca do tema, que em última instância cerceiam a liberdade individual dessa população e negam seus direitos elementares.Especificamente a ausência de adoção de uma legislação que combata a homofobia e transfobia, como determina a Resolução nº 2807 de 06 de junho de 2013 da OEA, e que promova a inclusão e que possibilite sem entraves burocráticos a modificação do nome e designação sexual, o que é também contrário à Resolução nº 2.600/2010 da OEA que determina que Estados-membros considerem adotar medidas de enfrentamento ao tratamento discriminatório motivado por orientação sexual e identidade de gênero. Está bem estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça que o transgênero que se submeteu a operação de redesignação de sexo pode alterar seu prenome e designativo do sexo em razão do princípio da dignidade da pessoa humana: Resp n. 10008398/SP, 3ª Turma, julgado em 15/10/2009, DJe 18/11/2009 (RDTJRJ vol. 100 p. 210, RMP vol. 37 p. 301 e RSTJ vol. 217 p. 840).No que tange à questão posta nos autos, a alteração do prenome e designativo sem a operação de redesignação de sexo o STJ decidiu no julgamento do Recurso Especial nº 1626739/RS: “A exigência de cirurgia de transgenitalização vai de encontro à defesa dos direitos humanos por condicionar o exercício do direito à personalidade à mutilação física. Somente a vontade livre e consciente da pessoa, sem qualquer imposição estatal, pode legitimar o devido procedimento cirúrgico.”Em primeiro lugar, a própria linguagem necessita de adaptação, preferindo-se o termo “transgênero”, termo “guarda chuva” que abarca a pessoa que possui “identidades que se cruzam, se movem entre, ou desafiam a fronteira construída socialmente entre os gêneros”.O transgênero, por definição, é "alguém que permanentemente modificou seu gênero social através de sua apresentação pública, sem o recurso à transformação genital" (STRYKER, Susan e WHITTLE, Stephen. “The Transgender Studies Reader”. New York: Routledge, 2006). Lamentavelmente observa-se que a transgeneridade é considerada enfermidade (CID – 10, F 64.0), de acordo com a Classificação Internacional de Doenças, podendo assim ser definido como a condição do indivíduo que possui identidade de gênero diferente da designada ao nascimento e que apresenta uma sensação de desconforto ou impropriedade em relação ao seu sexo anatômico, manifestando o desejo de viver e ser aceito como sendo do sexo oposto.O Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais – Quarta Edição (DSM – IV), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, identifica a suposta enfermidade como Transtorno da Identidade Sexual (nº 302).Neste mesmo passo, a Portaria nº 1.652/02, do Conselho Federal de Medicina, estabelece em seu artigo 3º, os critérios definidores do transexualismo para a indicação da cirurgia de trangenitalização, a saber: ART. 3º QUE A DEFINIÇÃO DE TRANSEXUALISMO OBEDECERÁ, NO MÍNIMO, AOS CRITÉRIOS ABAIXO ENUMERADOS: 1) – DESCONFORTO COM O SEXO ANATÔMICO NATURAL; 2) – DESEJO EXPRESSO DE ELIMINAR OS GENITAIS, PERDER AS CARACTERÍSTICAS PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS DO PRÓPRIO SEXO E GANHAR AS DO SEXO OPOSTO; 3) – PERMANÊNCIA DESSES DISTÚRBIOS DE FORMA CONTÍNUA E CONSISTENTE POR NO MÍNIMO, DOIS ANOS; 4) – AUSÊNCIA DE OUTROS TRANSTORNOS MENTAIS. Segundo outros estudos, contudo, a condição de transgênero não corresponde a nenhuma “anomalia psiquiátrica”, observando que a CID é uma tabela criada por médicos de uma nação estrangeira e que, portanto, não necessariamente está correta e nem pode solapar direitos fundamentais, salientando que até 1.973, por exemplo, a homoafetividade era considerada por essa mesma classificação também uma “anomalia”.Temos por certo que “a identidade de gênero é um fenômeno biológico”, como concluiu a pesquisa “Evidence Supporting the Biologic Nature of Gender Identity” realizada por Aruna Saraswat, MD; Jamie D. Weinand, BA, BS; Joshua D. Safer, MD da Escola de Medicina da Universidade de Boston, publicada na Endocrine Practice ( Endocr Pract. 2015;21(2):199-204).No mesmo sentido o estudo da Revista The Lancet Psychiatric “Removing transgender identity from the classification of mental disorders: a Mexican field study for ICD-11”, de Rebeca Robles, PhD, Ana Fresán, PhD, Hamid Vega-Ramírez, MSc, Jeremy Cruz-Islas, MSc, Victor Rodríguez-Pérez, PhD, Tecelli Domínguez-Martínez, PhD, Prof Geoffrey M Reed, (Volume 3, No. 9, p. 850–859, setembro de 2016).A evidência científica não tem o condão de acabar com mais esse preconceito, que leva a população LGBTI à exclusão e segregação, sendo inclusive privada do devido tratamento para sua condição, como conclui o estudo da Escola de Medicina da Universidade de Boston: “Gender identity is a fundamental human attribute that has a profound impact on personal well-being. Transgender individuals are those whose lived and identified gender identity differs from their natal sex. Various etiologies for transgender identity have been proposed, but misconceptions that gender identity can be altered persist. However, clinical experience with treatment of transgender persons has clearly demonstrated that the best outcomes for these individuals are achieved with their requested hormone therapy and surgical sexual transition as opposed to psychiatric intervention alone.” Desde 1 de janeiro desse ano, em razão de decisão da Comissão de Saúde do Parlamento Dinamarquês, por exemplo, a condição de transgênero deixou de ser considerada uma “doença mental”, segundo a Anistia Internacional.A OMS, por seu turno, também alterará, a partir de 2.018, a classificação de transgênero em sua tabela de classificação internacional de doenças, por pressão da Anistia Internacional e outras organizações de defesa dos transgêneros.A superação do conceito de “anomalia” também implicará, aliado às políticas de inclusão e de combate à segregação, na diminuição do triste recorde do Brasil como um dos países que mais matam transgêneros no mundo, de acordo com a organização “Transgender Europe” (http://transrespect.org/en/idahot-2016-tmm-update/).Compulsando os autos, verifica-se no laudo social a fl. 60v que a autora não pretende se submeter a cirurgia de mudança de sexo, por não acreditar na efetividade desses recursos, “que nunca terá um corpo de mulher, e que sua cabeça e sentimentos é que definem tudo”.Assim, e amparada a autora pelos Princípios de Yogyakarta, não pode ser obrigada a adaptar o sexo anatômico ao psicológico, podendo obter a modificação de prenome e gênero sem a realização prévia de cirurgia de transgenitalização.Demonstrando mais uma vez a violação pelo Estado brasileiro dos direitos fundamentais da população LGBTI, a Procuradoria da República propôs a ADI nº 4275, objetivando a interpretação conforme o arcabouço constitucional ao artigo 58, da Lei nº 6.015/73, para que seja reconhecido o direito do transexual à substituição do prenome e do gênero no registro civil, independente da cirurgia de redesignação. Contudo, até a presente data, não houve o julgamento.No sentido de dar cumprimento aos direitos fundamentais do indivíduo, cumprindo-se a recomendação “e” do Princípio 3 de Yogyakarta, que estabelece que “os Estados deverão garantir que mudanças em documentos de identidade sejam reconhecidas em todas as situações em que a identificação ou desagregação das pessoas por gênero seja exigida por lei ou por políticas públicas”, deve o Estado-Jurisdição (Poder Judiciário) garantir efetividade a esse direito diante do ordenamento jurídico.Desse modo, verifico que o artigo 16, do Código Civil, que integra o rol dos direitos da personalidade, permite a identificação do indivíduo, diferenciando-o das demais pessoas, seja no âmbito familiar, seja no social, verbis: ART. 16. TODA PESSOA TEM DIREITO AO NOME, NELE COMPREENDIDOS O PRENOME E O SOBRENOME.Deste modo, preservando o caráter personalíssimo do citado direito, o ordenamento jurídico prevê a mutabilidade do nome, mas somente em situações excepcionais, conforme a previsão dos artigos 57 e 58 da Lei de Registros Públicos, litteris: ART. 57. A ALTERAÇÃO POSTERIOR DE NOME, SOMENTE POR EXCEÇÃO E MOTIVADAMENTE, APÓS AUDIÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, SERÁ PERMITIDA POR SENTENÇA DO JUIZ A QUE ESTIVER SUJEITO O REGISTRO, ARQUIVANDO-SE O MANDADO E PUBLICANDO-SE A ALTERAÇÃO PELA IMPRENSA, RESSALVADA A HIPÓTESE DO ART. 110 DESTA LEI. (...) ART. 58. O PRENOME SERÁ DEFINITIVO, ADMITINDO-SE, TODAVIA, A SUA SUBSTITUIÇÃO POR APELIDOS PÚBLICOS NOTÓRIOS. Ademais, tais dispositivos legais não excluem a hipótese em exame. A interpretação das normas citadas deve se dar sempre no sentido da maximização dos direitos fundamentais assegurados ao indivíduo.Diante do cenário apresentado, permitir a retificação do prenome e do gênero do autor no seu assentamento civil, vem no sentido de dar efetividade aos direitos fundamentais da autora, salientando que a ausência de um sistema extrajudicial que preveja a mudança desejada sem entraves burocráticos e sem obrigado o indivíduo a se socorrer do Poder Judiciário é violador dos direitos fundamentais da população LGBTI.Por tais razões, o caso e de procedência integral do pedido, mantendo-se o sexo como masculino.Impõe-se ainda o reconhecimento pelo Estado-Jurisdição, incidentalmente, da violação dos direitos fundamentais da autora, na medida em que o Estado brasileiro não propiciou acesso ao sistema de registro civil para que sem dificuldades possa o indivíduo modificar seu nome e gênero, como determinam as recomendações “c” e “d” do Princípio 3 de Yogyakarta: “Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos pelo Estado que indiquem o sexo/gênero da pessoa – incluindo certificados de nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a profunda identidade de gênero autodefinida por cada pessoa.”A ausência de procedimento administrativo para a modificação de nome e gênero, bem como ausência de legislação adequada para o combate à discriminação, violência e segregação, além da ausência de legislação para garantir o direito à subsistência, moradia e ao trabalho, e decisões judiciais negando os direitos fundamentais dos transgêneros implicam em amplo aparato de violação dos direitos fundamentais da população LGBTI, sendo necessária, nos termos do artigo 2º do PIDCP sua declaração incidental na sentença.ISTO POSTO, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO para declarar, incidentalmente, a violação, pela República Federativa do Brasil, dos direitos à vida, à segurança, ao trabalho e à não-discriminação previstos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, nos termos do seu artigo 2º, especificamente pela ausência de legislação de combate à homofobia e transfobia como determina a Resolução OEA nº 2807/2013 e que que possibilite sem entraves burocráticos a modificação do nome e designação sexual, nos termos da Resolução nº 2.600/2010 da OEA, e também em razão das garantias e ações concretas explicitadas pelos Princípios de Yogyakarta de 2.006, e determino a alteração do registro civil de nascimento de ... para que passe a constar o nome de ..., modificando-se a indicação de “sexo” de “masculino” para “feminino”, eliminando-se o registro anterior por completo, declarando resolvido o mérito, na forma do art. 487, I, do CPC. Expeça-se mandado, por ofício, ao Registro Civil do 1º Distrito da 2º Zona Judiciária de Petropólis – para que seja retificado o registro de nascimento, sem qualquer referência às alterações sofridas.Custas pelo requerente, observada a gratuidade de justiça deferida nos autos.Certificado o trânsito em julgado, em não havendo requerimentos, dê-se baixa e remetam-se a central de arquivamento, na nada for requerido no prazo de cinco dias. P.I.Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 2017.André TredinnickJuiz de Direito

Reconhecimento do direito à mudança de nome social de transgênero

Trata-se de pedido de retificação de registro de nascimento, quanto ao nome e ao sexo, em que a Requerente, registrada sob o nome XYXYXYXY, aduz, em síntese, que, embora nascida com o fenótipo masculino, compreende-se como mulher, pretendendo a alteração do nome e do sexo no assento civil, passando a se chamar XXXXXXXX, do sexo feminino.Esclarece, na inicial de fls. xxxx, que durante os anos de sua infância e início da adolescência buscou se ajustar ao seu sexo biológico, porém se tratava de uma “camuflagem sofrida”. Aos 16 anos, travou contato com outras pessoas “com histórias de vida parecidas”, encontrando coragem para se expressar: passou a fazer tratamento hormonal e a se vestir como mulher.Ainda que não tenha se submetido à cirurgia para readequação de sexo (aguarda “na fila”), a Autora esclarece que sua identidade sexual prescinde do ato cirúrgico: “sua aparência, alma e espírito são femininos.”A Autora assevera encontrar “muitas dificuldades em algumas atividades cotidianas em virtude do descompasso entre sua aparência feminina e o nome e sexo masculinos em seus documentos”, seja para votar, utilizar cartão de crédito, fazer cadastros, viajar... passando por “constrangimento de ter que se explicar e pela vergonha das desconfianças alheias”.Instruem a inicial os documentos de fls. xxxxx. Deferida a gratuidade, às fls. xx.Às fls. xx, manifestação do Ministério Público, requerendo esclarecimentos e a juntada de vários documentos, o que foi atendido às fls. xxx (declarações com firmas reconhecidas, ratificando o alegado na inicial), xxx (FAC, sem anotações), xxx (Ofício do SCPC, informando inclusão e exclusão de registros para o CPF da Requerente) e xxx (Certidões do Distribuidor da Comarca). Em nova manifestação, o Ministério Público requereu fosse esclarecido quanto à cirurgia e a pugnou pela realização de estudo psicológico.Às fls. xxx, o Psicólogo NNNNN, deste Tribunal de Justiça, informa que a Requerente está na “fila do SUS” para a realização da cirurgia e apresenta parecer favorável, pois não verificou “aspectos psicológicos que comprometam sua capacidade de escolha”.O Ministério Público, em parecer final de fls. xxxxx, manifesta-se da seguinte maneira, em síntese:“(...) se encontra comprovado o distúrbio psicossocial em virtude do transtorno de identidade de gêneros, de maneira que em razão das normas constitucionais do direito à saúde e à dignidade da pessoa humana, impõe-se o acolhimento do requerimento de alteração do prenome em sua certidão de nascimento.(.......)Todavia, entende o Parquet que para acolhimento da pretensão de alteração de designativo de sexo do transexual perante o registro civil é necessário a prévia realização da cirurgia de transgenitalização, adequando-se a realidade morfológica às realidades psicológica e social do indivíduo em questão.(..........)(.....) opina o Ministério Público pela procedência parcial do pedido, a fim de que se altere somente o prenome do requerente de seu registro civil (....), sendo mantido o gênero masculino em seu registro civil de nascimento e os demais termos do assento, sem prejuízo de futura renovação do pedido caso o requerente se submeta a cirurgia de transgenitalização.”É o relatório. Passo a decidir.O relato contido na petição inicial decerto não desce aos pormenores dos constrangimentos sofridos pela Requerente desde a mais tenra idade. A Autora nasceu “habitando uma pele” que não lhe pertencia. A transexualidade é ainda muito mal compreendida no Judiciário, o qual espelha – fora raras exceções e, de certa forma, inevitavelmente (eis que seus componentes integram o mesmo tecido social) – uma sociedade em que parcelas da população advogam uma “cura gay” e outras (ou as mesmas, inclusive) condenam o ensino das questões de gênero a crianças, nas escolas públicas.Nesse compasso, as diversas manifestações e exigências do Ministério Público ao longo dos 03 (três) anos de tramitação deste feito carregam um forte conteúdo latente: o mesmo preconceito e a forte desconfiança que as pessoas transgêneras enfrentam em seus cotidianos.Talvez sob a equivocada ótica do “desvio” (e imaginando, quiçá, que alguém optasse por trocar de sexo para fugir de suas obrigacões civis e penais), houve requerimentos de que o SCPC dissesse sobre anotações em nome do CPF da Requerente e de juntada de certidões do distribuidor, todos aliás deferidos.É certo que as demandas como a ora sob exame têm chegado ao Judiciário há pouco tempo, razão por que a Jurisprudência oscila no tocante à possibilidade de deferimento, na integralidade, do pedido contido na inicial, ou seja, a retificação dos dados de registro antes da cirurgia de transgenitalização.Entendo perfeitamente possíveis ambas as retificações pretendidas. Principalmente porque – sob o viés da protecão à personalidade como direito fundamental e inviolável – a Requerente se entende mulher há muitos anos e é assim considerada, exceto nas ocasiões em que seus dados documentais a forçam a “revelar” o contrário. Negar-lhe a retificação registral quanto ao sexo em nada lhe socorre, com a devida vênia ao entendimento esposado pela douta Representante do Ministério Público subscritora do parecer final.A se deixar de reconhecer à Autora o direito à mudança para o sexo feminino, apenas permitindo-lhe a mudança do prenome, estaria o Judiciário contribuindo para a perpetuação de um aviltamento a sua condição íntima e pessoal, integrante de sua personalidade, e conformadora de sua existência em sociedade.Conforme apontado pela autora Mably Trindade, na obra Aspectos Históricos do Processo Transexualizador no Rio de Janeiro (ed. Gramma, 2016, p. 20-21), “a possibilidade de alteração de nome e sexo pela via judicial, na maioria das vezes, ainda é atrelada à prévia realização da cirurgia de transgenitalização. Esse modelo prejudica sobremaneira o exercício de direitos civis por aqueles indivíduos que realizaram apenas parte das modificações corporais e, portanto, não possuem todas as características esperadas de um “transexual verdadeiro” (Almeida, 2012a). Tais características, por sua vez, são aferidas em perícias e laudos técnicos apresentados pela Medicina com base em conceitos unívocos do que significa ser homem ou ser mulher. Em outras palavras, coube exclusivamente à Medicina definir a transexualidade e reconhecer o “transexual verdadeiro”, o que acabou embasando decisões judiciárias bastante arbitrárias no que concerne à transexualidade. (....) O modelo que subordina a aquisição de um novo nome e identidade civil ao poder da biomedicina é ainda mais perverso para aquelas pessoas que realizam as modificações corporais sem passar pelo SUS, pois neste caso o reconhecimento por via judicial é dificultado pela ausência da chancela oficial do sistema público, fator de insegurança para o Judiciário.” Como salientado pelo Desembargador Rui Portanova, em acórdão magistral sobre o tema, que reforma sentença que indeferira a mudança de sexo pela ausência de cirurgia:“Não é pela existência de uma genitália masculina que se define o gênero masculino. Com efeito, essa é apenas uma característica masculina, que não prevalece quando se está diante de uma pessoa transgênero. Além disso, é necessário ver essa questão com os olhos voltados mais para o indivíduo e sua dignidade do que para o meio social. Veja-se que, sexualmente, desde a sua condição íntima até do ponto de vista público e social, não aparecerá como homem, mas como mulher. E, para ela, como indivíduo, também já se vê como mulher, e não como homem. Nesse passo, a falta de regramento específico, de meu ponto de vista, não justifica a manutenção do “masculino” como sendo a designação do gênero da autora em seu registro civil de nascimento.” TJRS. Apelação Cível nº 0466124-36.2013.8.21.7000). Oitava Câmara Cível. Comarca de Porto Alegre.A Constituição da República do Brasil preconiza a igualdade, a não-discriminação, a dignidade da pessoa, cuja intimidade, vida privada e imagem são invioláveis (artigo 5º, caput, e inciso X).Ademais, a despeito da existência de uma classificação CID 10 F.64, é importante destacar que, dentre os que estudam a questão transgênera sob os mais diferentes enfoques (médico, antropológico, psicológico, sociológico), inexiste consenso sobre a “patologização”, mas é certo que a exigência da cirurgia está por detrás de uma visão equivocada de que o procedimento “legitimaria” o reconhecimento social e jurídico.Conforme se lê no site Transversus, em artigo de Mauricio Amendola, para o mestre em ciências sociais e professor da PUC-Campinas Tiago Duque, a ideia de uma doença da transexualidade remete imediatamente a noção de cura – que sob a ótica médica, se encontraria na cirurgia – o que nos mostraria muito a respeito das normas sociais. “A ideia de ‘quem tem uma doença, precisa ser curado’ nos ensina o que nós enquanto grupo social aceitamos ou não em relação a gênero e sexualidade”, argumenta.” [1]Trago à colação julgados que – na mesma esteira do já citado acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – abraçaram a tese da possibilidade de retificação sem realização da cirurgia:“Retificação de registro civil. Transexual que preserva o fenótipo masculino. Requerente que não se submeteu à cirurgia de transgenitalização, mas que requer a mudança de seu nome em razão de adotar características femininas. Possibilidade. Adequação ao sexo psicológico. Laudo pericial que apontou transexualismo. Na hipótese dos autos, o autor pediu a retificação de seu registro civil para que possa adotar nome do gênero feminino, em razão de ser portador de transexualismo e ser reconhecido no meio social como mulher. Para conferir segurança e estabilidade às relações sociais, o nome é regido pelos princípios da imutabilidade e indisponibilidade, ainda que o seu detentor não o aprecie. Todavia, a imutabilidade do nome e dos apelidos de família não é mais tratada como regra absoluta. Tanto a lei, expressamente, como a doutrina buscando atender a outros interesses sociais mais relevantes, admitem sua alteração em algumas hipóteses. Os documentos juntados aos autos comprovam a manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual masculina que tem hoje. O autor sempre agiu e se apresentou socialmente como mulher. Desde 1998 assumiu o nome de xxxx. Faz uso de hormônios femininos há mais de vinte e cinco anos e há vinte anos mantém união estável homoafetiva, reconhecida publicamente. Conforme laudo da perícia médico-legal realizada, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico decorre de transexualismo. O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo e considerando que o requerente se sente mulher sob o ponto de vista psíquico, procedendo como se do sexo feminino fosse perante a sociedade, não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral pleiteada. A sentença, portanto, merece ser reformada para determinar a retificação no assento de nascimento do apelante para que passe a constar como "PN". Sentença reformada. Recurso provido.” (TJSP, AC 0013934-31.2011.8.26.0037, 10ª C. Dir. Priv., Rel. Carlos Alberto Garbi, j. 23/09/2014).“Agravo de instrumento. Ação em que se pleiteia a alteração de nome e sexo em assento de nascimento. Insurgência contra a decisão que determinou a suspensão do processo até a data marcada para a realização da cirurgia de transgenitalização. Acerto da decisão recorrida quanto à modificação de sexo no registro. Possibilidade de antecipação da tutela no tocante à mudança do prenome, passando a se adotar no registro o nome social do requerente. Art. 273, § 6º, do CPC. Parecer subscrito por dois peritos a confirmar que o requerente é social e profissionalmente reconhecido como mulher. Identidade social em conflito com o nome de registro. Alteração do nome que independe da realização da operação programada. Necessidade da modificação do nome evidenciada. Decisões judiciais sobre a possibilidade de alteração de nome civil. Art. 57 da Lei 6.015/73. Recurso parcialmente provido. Art. 557, § 1º-A, do CPC.” (TJRJ, AI 0060493-21.2012.8.19.0000, 6ª C. Cív., Rel. Des. Wagner Cinelli de Paula Freitas, j. 08/03/2013).“Alteração de registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração de registro civil. O nome das pessoas, enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como sendo uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. Por maioria, proveram em parte.” (TJRS, AC 70013909874, 7ª C. Cív, Rel. Desa. Maria Berenice Dias, j. 05/04/2006).Por tudo o que foi exposto e porque – lembrando o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 – somos um “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, JULGO TOTALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO para:1- Autorizar a retificação no assento de nascimento da autora, de modo a alterar o seu nome e sexo, de XYXYXYXY do sexo masculino para XXXXXXXX, do sexo feminino. Com o trânsito em julgado expeça-se mandado ao Cartório de Registro Civil da NNN Circunscrição da Comarca NNNNN, ordenando a realização da mencionada retificação no registro de n. NNNNN, livro NNNNN, folha NNNNN. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome, que a modificação procedida decorreu de decisão judicial. O Sr. Oficial Registrador deverá zelar pelo sigilo da retificação, vedado o fornecimento de qualquer certidão para terceiros acerca da situação anterior da parte autora, sem prévia autorização judicial. 2- No mais, transferir todos os direitos e obrigações para com o fisco, sociedades, órgãos de proteção ao crédito, órgãos públicos em geral, possível herança e sucessão, credores, devedores e todos os mais que se fizerem necessários de XYXYXYXY para XXXXXXXX.Expeça-se ofício à Receita Federal informando sobre a alteração de nome e sexo da parte autora, devendo ser mantido o mesmo número de CPF.Sem custas, eis que deferido o benefício da justiça gratuita. Sem honorários advocatícios.Por fim, reputo solvido o mérito da lide, nos termos do art. 487, I, do CPC. Após o trânsito em julgado, arquivem-se. Cristiana de Faria CordeiroJuíza de Direito[1] O que mais está em jogo na sociedade para além do código de “transtorno de identidade de gênero” na Classificação Internacional de Doenças? por: Maurício Amendola. “Deveria despatologizar, ficaria bem mais tranquilo, menos angustiante, quem passa por um comitê se sente meio um alienígena, uma cobaia... ajuda por um lado e rotula do outro”, o agente penitenciário Juliano Maziero passou pelo tratamento do Sistema Único de Saúde (SUS) dado a pessoas consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como portadoras do nomeado transtorno de identidade sexual. A Classificação Internacional de Doenças sentencia através do CID 10 F.64 que a disforia de gênero consiste no “desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado”. Estreitando as relações e conflitos intelectuais entre a medicina e as ciências humanas, o diagnóstico - ou a patologização, isto é, a determinação de que a disforia (do grego, o contrário de “euforia”) é de natureza biológica particular do paciente – origina uma questão intrincada a respeito dos efeitos da associação da transexualidade à “doença” no âmbito social e psicológico, além de provocar o debate em relação ao poder da medicina nas noções do individuo sobre si mesmo, já que está sob a tutela do discurso médico a autorização para todo o tratamento disponibilizado no serviço de saúde pública. Ou seja, apenas quem é transexual - aos moldes da classificação médica e da análise clínica, se é que é procedente dissociar a natureza do termo e os saberes médicos, já que, no limite, a propagação do conceito advém da própria psiquiatria – recebe o tratamento. Diagnóstico. O psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) é defensor do diagnóstico e da categoria exclusiva e restrita dos transexuais, que está intimamente relacionada ao desejo por mudança corporal, especialmente o anseio pela readequação do órgão genital. “Para a medicina, os transexuais vão buscar sempre essa mudança física. É fundamental, porque vai buscar a transição completa, a mudança completa. Existem outros transtornos de identidade de gênero ou o que a população chama de transgêneros, mas não são transexuais”, delimita Saadeh. a artesã Esther Pereira, transexual e militante do movimento LGBTT vê no que chamam de transtorno, um descontentamento um tanto mais subjetivo e social que o delimitado pela medicina, e propõe mudanças na forma como se dá o tratamento, para calar os ecos patologizantes. “Se essas necessidades que esse descontentamento gera fossem atendidas de uma maneira diferente esse sofrimento seria muito menor”, desabafa. Para o doutor em ciências sociais e professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Jorge Leite Júnior, a face nociva da patologização está em minorizar os desejos, anseios e a identidade de quem está sendo tratado, uma vez conhecido o status em nossa sociedade de alguém considerado doente pela psiquiatria. “São pessoas que tem sua humanidade diminuída frente ao discurso médico”. Além disso, ele vê uma relação de poder intrínseca à indicação clínica de transtorno e embora não desconsidere totalmente os avanços dos estudos médicos a respeito das origens da transexualidade, não reconhece sua serventia social para a população chamada transgênera. “É uma questão maior, a quem serve dizer ‘isto é um problema’, ‘isto é uma doença’, isso vai garantir mais direitos a alguém?”, indaga. Judit Busanello, psicóloga e diretora do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do estado de São Paulo alega que a transexualidade não é um transtorno que incapacita, mas sim, que causa sofrimento e o tratamento psicológico se apega em amparar esse sofrimento. “Não precisa figurar como transtorno põe lá assim: ‘a diferença da mente’”, afirma o agente penitenciário Juliano com bom humor. Para o mestre em ciências sociais e professor da PUC-Campinas Tiago Duque, a ideia de uma doença da transexualidade remete imediatamente a noção de cura – que sob a ótica médica, se encontraria na cirurgia – o que nos mostraria muito a respeito das normas sociais. “A ideia de ‘quem tem uma doença, precisa ser curado’ nos ensina o que nós enquanto grupo social aceitamos ou não em relação a gênero e sexualidade”, argumenta. A filósofa Márcia Tiburi entende que os saberes médicos são decisivos para incorporar novas maneiras de encararmos a sexualidade: “Um ponto muito forte para a democratização da sexualidade, é a medicina parar de legislar sobre os corpos dos intersexuais”, diz.

Indeferimento de imissão de posse em imóvel ocupada por idosa e doente

SENTENÇAXXXXXXXXXXX propôs ação de Imissão na Posse em face de YYYYYYYYYYYYYY. Alega que arrematou judicialmente o imóvel descrito na inicial, porém não foi imitida na posse do bem.A ré se defende afirmando que reside no imóvel há 40 anos, tendo alugado da antiga proprietária. Com o falecimento da locadora, passou a efetuar o pagamento dos aluguéis ao filho do de cujus. Ocorre que a ré é pessoa idosa e foi acometida de doença que a incapacita para o trabalho, de modo que foi autorizada a residir no local sem pagar a contraprestação desde 2006.Réplica às fls. 105/111.Prolatada decisão saneadora às fls. 188 que restou preclusa (fls. 190).É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR.A causa está madura para o julgamento, sendo suficientes os elementos probatórios para permitir a cognição da demanda, uma vez que a questão de mérito é exclusivamente de direito.A autora busca a imissão na posse de bem arrematado em hasta pública judicial em processo de execução de sentença que condenou a proprietária formal ao pagamento de cotas condominiais.Analisando os autos, verifico que restou incontroverso nos autos a posse ininterrupta, mansa e pacífica da ré desde julho de 1976 (fls. 87).A ré alega que sua posse, que se iniciou de forma precária, num contrato de locação e, portanto, com a implícita cláusula de desocupação do bem, passou a ser exercida plenamente, como se proprietária fosse.Os documentos anexados aos autos evidenciam a existência de um contrato de locação (fls. 86/88) e recibos de aluguéis adimplidos até dezembro de 2001 (fls. 89/102).É verdade que a ré utiliza do imóvel para fins de moradia, garantia fundamental e direito social de segunda dimensão, previsto no caput, do artigo 6º, da Constituição Federal, dotado de sensível densidade social que impõe ao Estado uma conduta comissiva de adoção de políticas públicas para o fim de sua efetiva concretização.Como ensina o Professor Miguel Baldez:“Não há dúvida, entretanto, de que uma leitura mais competente da Constituição, ou do que dela resta, e dos conceitos gerais do direito permite construir o direito à moradia como direito público subjetivo, portanto exigível. Assim, combinando-se o art. 5º da Constituição Federal, que garante ao cidadão e aos residentes no país, “a inviolabilidade do direito à vida”, com os fundamentos também constitucionais de solidariedade, dignidade da pessoa humana, e não se tendo como pensar a vida humana fora das relações sociais, deve concluir-se que a mulher e o homem só exercem a vida, ou tem vida em sentido social, quando praticam com o exterior atos de posse.”[1] (Sem grifos no original)De outro viés, há que se ter sempre em mente que os direitos fundamentais, além de sua eficácia vertical, que os torna exigíveis do Estado, também apresentam uma aplicabilidade horizontal. Vale dizer, os direitos fundamentais, de que é exemplo o direito à moradia, devem ser aplicados e observados nas relações privadas.Ou seja, os direitos fundamentais não só servem de paradigma para o controle vertical de constitucionalidade de leis e atos administrativos, mas também possuem uma eficácia horizontal que impõe a observância das garantias constitucionais nas relações de direito privado.Nesse ponto, impossível deixar de destacar a publicização do direito privado, amplamente reconhecida nas decisões dos Tribunais Superiores: STF, Segunda TurmaRE 201.819/RJRelator Ministro Gilmar Mendes:“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.(...)”.Desse modo, não é demais afirmar que todos estamos obrigados a observá-lo nas relações sociais e jurídicas, incluindo-se a Administração Pública, os Legisladores, o Poder Judiciário e os particulares.Isso porque a crescente participação do exercício do poder econômico nas relações em sociedade impõe que se estabeleçam limites contra os mais fortes, pois é exatamente nos conflitos de interesse entre os detentores do poder social e econômico e os menos abastados que as liberdades se apresentam especialmente ameaçadas.É bem de ver, então, que a moradia, definida como direito fundamental no artigo 6º da Constituição da República, configura-se critério inarredável de interpretação de normas jurídicas e de incremento da função social da posse.Ressalte-se, nesse passo, que não se discute propriedade nos presentes autos, mas tão-somente a posse sobre o imóvel em pretensão deduzida em processo de clara natureza dúplice.O âmago da questão é a posse ad interdicta, ou seja, aquela que concede a seu titular a prerrogativa de defendê-la através do desforço imediato, utilizando dos meios moderados e necessários, bem assim mediante o manejo das ações possessórias previstas no ordenamento jurídico pátrio, como no caso em análise.No deslinde da causa, impõe-se aferir se a ré exerce a posse legítima de forma contínua e pacífica ou se a autora, ao adquirir a propriedade formal do imóvel tem um direito melhor do que o da ré a justificar o deferimento judicial da imissão na posse.Vale dizer que, de um lado, há a propriedade registral adquirida pela autora que objetiva tomar posse do bem. E, de outra parte, há a posse materialmente exercida pela ré para o fim de moradia que consiste na destinação de maior densidade social que se pode conferir a um direito.É evidente que a mera formalidade da aquisição da propriedade registral não pode se sobrepor ao direito humano de uma mulher de residir num imóvel que ocupa como residência há mais de 40 anos e, apesar disso, não foi sequer chamada ao processo de cobrança das cotas condominiais que culminou com a alienação judicial.Certamente a autora, ao adquirir a propriedade do imóvel, também teve inserida na sua esfera jurídica a posse indireta do bem. Porém, a posse direta densamente exercida pela ré é legítima e protegida pelo ordenamento jurídico-constitucional.Afigura-se patente que a posse da ré se revelou de tal forma densa socialmente que não pode ceder à pretensão da autora em se imitir na posse do bem.Os alegados prejuízos sofridos pela autora em decorrência da aquisição formal da propriedade do imóvel deverão ser solucionados no campo em que desde sempre se circunscreveu a questão: o econômico e patrimonial.O que não se pode admitir é privilegiar o poder econômico representado pela propriedade registral, no caso, em detrimento da existência digna de uma mulher ao exercer a posse para fim de moradia.Pelo exposto,JULGO IMPROCEDENTE o pedido, na forma do artigo 487, I, do CPC.Condeno a parte autora ao pagamento das custas do processo e dos honorários advocatícios, que fixo em R$ 1.000,00 (mil reais), com fundamento no 85, § 8º, do Código de Processo Civil.P.R.I. Rio de Janeiro, 11 de julho de 2016. SIMONE DALILA NACIF LOPESJUIZ DE DIREITO [1] BALDEZ, Miguel, in: http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=50&id_publicacao=156&id_indice=1033

Revogação de internação compulsória de dependente químico

Processo nº8592-07/2012 DECISÃO Trata-se de pedido de internação compulsória, feito pelo Ministério Público, na qualidade de legitimado extraordinário de direitos individuais indisponíveis, do cidadão Peter Cesar Rezende Moutinho, em face do Município de Queimados. Há decisão deferindo a internação a fls.42, para que o Município de Queimados a providencie. Ofício do Município informando que não há vagas, no momento, para internação. O Ministério Público, as fl. 47v e 52v, reitera o cumprimento da tutela deferida. O Município apresenta resposta às fls. 59/60, com os documentos de fls.61/63. A fl. 68v, cota do MP, com requerimentos e pedido de cumprimento da tutela antecipada. A fl. 69 informação do MP de que o cidadão Peter não está interditado, bem como que não corre contra si ação de interdição. As fls. 82/83 ofício do CAPS-AD de Queimados informando sobre o relatório clínico do cidadão Peter César Rezende Moutinho.Eis o breve relatório. Decido.Inicialmente, atenda-se ao MP, as fls. 67v, item 1, no tocante à exclusão de Peter, segundo réu, do polo passivo.Rejeito a denunciação da lide de fls. 59/60, eis que há responsabilidade solidária constitucional na prestação do direito à saúde, na forma, do art. 197 da CR, como já assentado pela jurisprudência pacífica deste Tribunal, sendo, inclusive, objeto da súmula nº 65.No tocante ao cumprimento do pleito antecipatório, qual seja, a internação compulsória de Peter, faz-se necessário tecer alguns comentários.O pedido foi requerido com base na Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Essa lei constituiu as bases da Reforma Psiquiátrica Brasileira, tendo tramitado por 11 anos no Congresso.A história da Psiquiatria é marcada pelo asilamento e tratamento desumano aos chamados “doentes mentais” (já que a própria existência da doença mental é controvertida na própria Psiquiatria)[1]. A Lei nº 10.216/01 pretendeu romper com essa ordem. O objetivo foi privilegiar a desospitalização dos internos nos manicômios, com a sua extinção progressiva.Contudo, o art. 6º do referido diploma legal manteve a internação psiquiátrica de modo excepcional e sempre mediante laudo médico. São 3 as modalidades: 1) voluntária; 2) involuntária; 3) compulsória, que é a determinada pelo Poder Judiciário e hipótese dos autos.O art. 9º, por sua vez, dispõe que a internação compulsória será determinada de acordo com a legislação vigente e pelo juiz competente. Dessa forma, deve-se procurar, no ordenamento jurídico, outra lei (que não a lei nº 10.216/01) que determine a internação compulsória.Atualmente, as leis que contém essa autorização são os art. 99 da LEP, bem como o art. 319, VIII do CPP, que tratam da aplicação da medida de segurança de internação provisória para a hipótese de uma pessoa semi ou inimputável cometer um ato definido como crime.Diz-se atualmente, pois, está tramitando no Senado o PLC 37/13 (antigo PL 7663/11), que altera a lei de drogas (Lei nº 11.343/06) e passará a autorizar a internação forçada de usuários de drogas, o que leva a uma conclusão óbvia: se a lei de drogas irá passar a prever a internação forçada de usuários de drogas, logo, atualmente não há qualquer dispositivo legal que autorize tal ato.Desse modo, considera-se ilegal qualquer pedido nesse sentido (pedido juridicamente impossível), pois, não há, no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que autorize a internação compulsória de um dependente químico que não tenha cometido um crime ou tenha sido interditado para esse fim[2].Assim, o pedido de internação compulsória, desacompanhado da interdição da pessoa a que se pretende internar, não encontra amparo no nosso ordenamento jurídico.Ainda que, por amor ao debate, considere-se legalmente possível tal pedido, mesmo que acompanhado do pedido de interdição, ter-se ia que equiparar o dependente químico a uma pessoa com transtorno mental e, aí sim, aplicar a Lei nº 10.216/01.Todavia, entende-se impossível tal equiparação, eis que o usuário de drogas não possui qualquer doença mental, mas sim um transtorno comportamental. Esse é o entendimento da Psiquiatria Crítica mais abalizada.[3]Visto sob o ângulo da Constituição, o deferimento de internações compulsórias de dependentes químicos é ainda mais assustador. Violam-se a um só tempo os direitos constitucionais da liberdade de locomoção, da dignidade da pessoa humana e, especialmente, da saúde; muito embora grande parte das decisões favoráveis utilizem tais argumentos.Ao contrário, a própria ONU não recomenda a internação forçada, equiparando-a à tortura, conforme o Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU, datado de em 05 de março de 2013:Cuidados médicos que causam grande sofrimento sem nenhuma razão justificável podem ser considerados um tratamento cruel, desumano ou degradante, e, se há envolvimento do Estado e intenção específica, é tortura.(...)A institucionalização não consensual, imprópria ou desnecessária de indivíduos pode constituir tortura ou maus-tratos, bem como o uso da força para além do que é estritamente necessário (grifei).[4] No caso em tela, o laudo médico produzido pelo próprio Ministério Público (fls. 29/30) é expresso: “Peter não é portador de uma patologia mental incapacitante, mas de uma dependência química, que, uma vez tratada, devolve o estado mental do paciente ás suas funções plenas” (grifei).O relatório do CAPS-AD (fls. 82/83) atesta que Peter não aderiu ao tratamento, especialmente em razão do contexto familiar, em que seu pai é usuário de álcool e, conforme relato da própria mãe, provoca o seu filho.Entende-se, assim, que o tratamento forçado de dependentes químicos, além de ser inconstitucional e ilegal, é, também, ineficaz. Isso porque se não houver o desejo de parar do paciente, a cada retorno de uma internação forçada, haverá uma recaída. No caso em questão, é notória a necessidade de tratamento de toda a família.No tocante ao tratamento da dependência química, as experiências em países europeus, que sempre tiveram taxas altíssimas de mortes por abuso de drogas, demonstram que é ineficaz uma política baseada exclusivamente em internação: cerca de 97% dos internados apresentam recaídas (Hughes e Stevens:2007).[5]ConformeInternacional Drug Policy Consortium, tratamentos que tenham a abstinência total como foco são insuficientes para reduzir o uso de drogas e os danos associados a ele. Agências da ONU recomendaram a extinção das internações compulsórias e dos centros de reabilitação por não haver evidências científicas de que estes métodos são eficazes no tratamento de dependentes químicos (UNAIDS:2012)[6].Especificamente em relação ao crack, cujos usuários são marginalizados socialmente e fazem uso simultâneo de mais de uma droga (lícita ou ilícita), o tratamento é mais complexo. Evidências internacionais indicam que, para o sucesso do tratamento, são necessárias intervenções psicossociais, com a participação da comunidade e do meio cultural. No entanto, essas intervenções só são efetivas quando é estabelecido um vínculo de confiança com o dependente químico, que opta voluntariamente pelo tratamento (Connolly e Donavan:2008)[7].O Poder Judiciário é o guardião natural dos Direitos Humanos. Não se pode, de modo algum, e sob nenhum fundamento, admitir qualquer violação de direitos humanos por parte de seu guardião.Dessa forma, e por todo o acima exposto, REVOGO A TUTELA ANTECIPADA DE FLS. 42, e, por consequência, a internação compulsória do cidadão PETER CESAR REZENDE MOUTINHO.Intimem-se.Queimados, 12 de setembro de 2013ISABEL TERESA PINTO COELHOJUIZ DE DIREITO [1] Nesse sentido, Szasz (2010:xii) afirma não existirem doenças mentais, pois, “o diagnóstico de doença mental como desordens do cérebro não é baseado em pesquisa científica; é uma mentira, um erro, ou um restabelecimento ingênuo de uma premissa há muito desacreditada da teoria da doença”. In SZASZ, TS. The myth of mental illness. New York: Harper Perennial; 2010.[1][2] O art. 1.185 do Código de Processo Civil, estabelece a possibilidade de interdição do usuário de drogas. Este dispositivo vem sido utilizado recentemente para requerer a internação compulsória de usuários de drogas por seus familiares.[3] Por todos: Joel Birman. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2001.[3][4] RELATÓRIO DA ONU. 2013. [acesso em 12 de setembro de 2013]. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HRC.22.53_English.pdf[5] HUGHES, C. e STEVENS, A. (2007). European Monitoring Center for Drugs and Drug Addiction (2010).“2010 Annual report on the state of the drugs problem in Europe”. [acesso em 29 de agosto de 2013]. EMCDDA, Lisboa, Novembro. Disponível em: http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2010.[6] UN AIDS, Joint Statement (2012). “Compulsory drug detention and rehabilitation centres”. [acesso em 29 de agosto de 2013]. Disponível em: http://www.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/document/2012/JC2310_Joint%20Statement6March12FINAL_en.pdf.[7] CONNOLLY, J., FORAN, S., DONAVAN, A., CAREW, A. e LONG J. (2008). “Crackcocaine in the Dublin region: an evidence base for a crackcocaine strategy.” [acesso em 29 de agosto de 2013]. HRB Research Series 6. Disponível em: http://www.hrb.ie/uploads/tx_hrbpublications/HRB_Research_Series_6.pdf

Sentença de Reintegração de Posse - Invasão - Improcedência

Autos nº 007.96.318877-9Primeira Vara Cível do Foro Regional VII – Itaquera V I S T O S. O espólio de JOÃO PREMIANO, devidamente representado por sua inventariante e viúva Adoração Matheus Premiano propôs ação de REINTEGRAÇÃO DE POSSE, com pedido de liminar, em face de ABELMA RAMOS DO NASCIMENTO e centenas de outros (conforme registro no distribuidor), além de demais possuidores que não participam do processo, alegando, em síntese, que é detentor do domínio e legítimo possuidor de “um terreno sem benfeitorias consistente em três e meio alqueires de terras no sítio denominado ‘dos pereiras’ no Lageado Novo, confrontando e dividindo na frente com uma picada hoje denominada Estrada do Paiol, de um lado confrontando com propriedade de Carmine Zazelli (ou seu sucessores) e nos fundos com um córrego, formando um triângulo”. Relata que mantém o terreno cercado por arame farpado e mourões de madeira, com constante vigilância, porém, em 01 de maio de 1.995 ocorreu uma invasão em massa do imóvel, onde os réus arrancaram as cercas que havia no local e demarcaram as terras para ocupação. Que embora resistisse às invasões, nos meses subseqüentes, estas tiveram caráter definitivo, embora tentativas infrutíferas de solução amigável ocorressem. Pede a reintegração de posse e demolição das benfeitorias (fls. 02/06). Juntou os documentos de fls. 08/51, em particular e de interesse, a escritura de aquisição do domínio (fls. 11/13), seu registro (fls. 14) e fotos do terreno quando do início da invasão (fls. 35/46) e proposta de aquisição do terreno por parte dos invasores membros da Associação Comunitária José Bonifácio (fls. 49/51). Designada prévia audiência de justificação de posse (fls. 52), com nova designação (fls. 59), não foi possível a sua realização (fls. 72). Nova designação ocorreu (fls. 76), que, por sua vez, também não pode ser realizada, exigindo nova designação no termo da audiência (fls. 91), e mais outra (fls. 102). As fls. 117/123 constam à assinatura e nome de 63 pessoas citadas e cientificadas. Enfim, realizada a audiência de justificação em 28 de julho de 1.997, ouviram-se duas testemunhas do autor e juntaram-se novas fotos (fls. 125/142). Centenas de instrumentos de mandato por parte dos réus e ocupantes foram sendo juntadas nos autos a partir da audiência de justificação. O Magistrado concedeu a liminar inicialmente pleiteada (fls. 230). Antenor Domingos dos Santos e outros contestaram a ação afirmando, em apertada síntese, que a liminar não poderia ter sido concedida, pois a posse é velha, além do mais, não se trata de invasão, mas de 250 imóveis de alvenaria que abrigam famílias inteiras de trabalhadores que agiram em completa boa-fé, bem como o autor jamais teve a posse do imóvel (fls. 253/256). Antonio Luiz Rosa e outros também contestaram o pedido inicial afirmando que a posse é velha, tendo os requeridos há mais de 20 anos no imóvel e inclusive já há ação pendente discutindo a demarcação das terras, além de já terem direito a usucapião. Pedem a improcedência (fls. 258/261). Ananias da Silva e outros também contestaram o pedido sob a alegação de que a posse é velha e que há ação de demarcação em andamento, além do mais pedem retenção por benfeitorias (fls. 264/266). A fls. 281/283 o autor trouxe planta da área objeto do pedido inicial. Como a reintegração não se executava, determinou-se a expedição de força policial (fls. 284vº). Desentranhamentos seguidos do mandado de reintegração foram deferidos (fls. 292/336). A Associação Dos Sem Teto Nossa Casa Nosso Sonho pleiteou participação nos autos no pólo passivo (fls. 338/340), juntando estatuto e mais de uma centena de procurações (fls. 342/531). A liminar inicialmente concedida foi revista (fls. 533). O autor reitera o pedido de liminar e força policial (fls. 545, 550/551). Mariza Passarelli Teixeira Branco e Ari Teixeira Branco pleitearam participação na lide como litisconsortes necessários (fls. 554/557), acostando cópia da ação demarcatória que promoveram contra o aqui autor e sua mulher (fls. 559/642). Em audiência de tentativa de conciliação, as partes pleitearam suspensão do processo porque estavam “em vias de celebrar transação” (fls. 644). Os autos foram ao arquivo e retornaram por diversas vezes. A fls. 693 e seguintes o autor voltou a pleitear a revalidação da liminar, com plantas do imóvel. O feito foi saneado a fls. 701, designando-se audiência de instrução e julgamento. O autor juntou cópia do laudo acostado nos autos de demarcação que tramita em apartado (fls. 715/784). Na audiência de instrução e julgamento, ouviram-se três testemunhas do autor e juntou-se cópia de uma planta (fls. 788/792). Em memoriais finais, só o autor os apresentou, sendo os réus inertes (fls. 794/796). É o relato do necessário. D E C I D O. A esta altura, a única solução jurídica possível é a improcedência. É que em meados de 1.995 ocorreram sucessivas invasões no imóvel do autor e, já no ano seguinte, o número de invasores passava de 250 pessoas. O tempo foi passando e, embora tenha sido concedida liminar de reintegração de posse, esta jamais foi concretizada, embora por diversas vezes tenha havido o uso de força policial. Hoje, há milhares de pessoas no local e, segundo a última informação, colhida na audiência de fls. 790, seriam cerca de 650 famílias que habitam em imóveis simples, mas já com luz, água, faltando apenas asfalto e pagamento do IPTU, pois a área “não está legalizada”. Muitos dos inicialmente invasores já alienaram seu pedaço de chão com as benfeitorias construídas e assim sucessivamente, não se sabendo mais, quem invadiu e, portanto, teria agido de má fé, daqueles que adquiriram o imóvel com o suor do rosto e de boa fé. Diversos requeridos deste feito seguramente já não mais têm interesse nos autos e, ao contrário, milhares de outros que residem no local decerto desconhecem a existência deste processo. A realidade é implacável, sendo provável, pelo tempo transcorrido, que muitos dos moradores já tenham regularizado seu espaço pela via da usucapião, portanto, a reintegração genérica, sem base atual, não pode ser concedida.Na verdade, o Estado falhou ao não conseguir reintegrar o autor na posse do imóvel, quando diretamente se requisitou força policial para concretização da medida, além do mais, a demora de uma solução nestes autos também corroborou em muito para a perpetuação de um problema, onde não mais se pode conceder a reintegração de posse, sob pena de injustamente afetar milhares de famílias que hoje necessitam do imóvel construído para levar uma vida minimamente digna. O Estado não tem mais o direito de retirá-los do imóvel, eis que se omitiu quando chamado pelo autor. Em recente decisão do Magistrado Mário Dacache, nos autos nº 2.122/95, deste mesmo juízo, em relação á situação análoga e referente à área próxima daquela descrita nestes autos, decidiu-se que: “A Prefeitura do Município, reconhecendo a existência do problema social ínsito nesta ação e em duas outras de áreas contíguas que tramitam nas duas outras varas cíveis deste foro, ajuizou ação de desapropriação ora em trâmite na 5ª Vara da Fazenda Pública. Pretende-se regularizar a situação de fato já consolidada no tempo (os réus ocupam o imóvel, no mínimo, desde 1.994), mediante pagamento de indenização a quem de direito. Não é razoável que para proteção da posse de uma empresa seja destruído um bairro inteiro numa verdadeira operação de guerra, desencadeada pelo Estado, quando existe outra solução mais afinada com o interesse social, isto é, a desapropriação do imóvel com o pagamento da indenização a quem faça jus”. Ocorre que hoje a área transformou-se em um dos muitos bairros pobres de São Paulo, logo, a partir da inação do Estado em criar as condições de moradia para milhares de pessoas que vivem na rua, sem teto próprio, estas, por extrema necessidade, acabaram por praticar o ato de desapropriação indireta do imóvel, repartindo o espaço de forma a permitir uma moradia minimamente digna. A partir da inação do Estado parte da população fez uso de um dos instrumentos que, a princípio, só ao Estado é permitido, o de desapropriação indireta de área que não cumpria sua função social. Anote-se que o próprio autor indicou a área como “terreno sem benfeitorias”, ao menos em grande parte de sua extensão. Em recente decisão do Magistrado José Luis Gavião de Almeida, em situação parelha com a destes autos, decidiu-se que: “O particular que tem sua propriedade invadida por mais de cinco mil pessoas que, se desalojadas, não terão para onde ir, deve buscar do Poder Público a indenização a que faz jus decorrentes da desapropriação indireta. Entretanto, a reintegração de posse não deve ser deferida, em homenagem ao princípio da função social que a propriedade tem, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 4.132/62 e art. 5º, XXIII, da Constituição Federal” (ementa da redação no acórdão proferido na apelação nº 823.916-7, j. 27.08.2002 – RT 811/243). Como razão de decidir, no corpo do acórdão, o Magistrado supra nominado, arrazoou no sentido de que: “tecnicamente a sentença não merece reparos. Mas o direito evolui, situação que, particularmente, atingiu o direito de propriedade. Não é mais possível idealizar a proteção desse direito no interesse exclusivo do particular, pois hoje princípios da função social da propriedade aguardam proteção mais efetiva. Não fora isso, a função do Judiciário, de solucionar conflitos de interesse, não pode desprezar a necessidade de por fim ao embate posto nos autos, mas de impedir, com a decisão dada, que outras lides venham a acontecer.Está em estudo um litígio entre um particular que teve suas terras inutilizadas invadidas e um grupo de mais de cinco mil famílias que ali se instalaram por não ter outro lugar para ficar.Retiradas do local, por certo deverão ocupar outro. Se particular, novo conflito será criado. Se públicas, também o Poder Público, em tese, tem direito de recuperá-las. O certo é que, para qualquer local onde sejam essas pessoas levadas, o mesmo problema que aqui aparentemente se resolve será novamente criado. Sequer condenar os requeridos a flutuar é possível, pois em tese o espaço aéreo sobre um imóvel pertence ao dono da superfície (art. 526 do CC).Quando o Poder Público, responsável pela proteação de todos os cidadãos, inclusive dos aqui requeridos, permite durante muito tempo que muitos se instalem em determinado local, há de ser reconhecida a desapropriação indireta. É o sacrifício do um proprietário, indenizado, entretanto, por toda a sociedade, que servirá de solução a um conflito que se eternizaria com a simples determinação de sua desocupação.Entendido que o imóvel foi, de forma indireta, desapropriado, não caberia a ação possessória que tem por finalidade recuperar a posse em decorrência da propriedade. Mas, tendo havido perda desta, para o interesse público em disputa, a pretensão deve ser tão somente indenizatória contra o Poder Público responsável pela política urbana. Os bens indiretamente expropriados, porque aproveitados para fins de necessidade, utilidade pública, ou de interesse social, não podem ser reavidos in natura, impossível vindicar o próprio bem, a ação cujo fundamento é o direito de propriedade, visa, precipuamente, à prestação do equivalente da coisa desapropriada, que é a indenização. . . (STF, RTJ 61/389)”. Na mesma toada, recorda magistral precedente jurisprudencial da lavra do Desembargador José Osório que também se aplica como uma luva ao presente caso, que pela sua erudição e riqueza singular, entendo por também transcrever.“No caso dos autos a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção.Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abastração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares de pessoas. (…) Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento só tem vida no papel. (…).Loteamentos e lotes urbanos são fatos e ralidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social, deixam de existir como loteamento e lotes.A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'. Esta não pode subsistir em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclisma, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade.É verdade que a coisa, o terreno, ainda existe fisicamente.Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC (de 1.916). O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a um finalidade viável, jurídica e economicamente. Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. (…)Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do conteúdo ético social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de vista jurídico. (…)O princípio da função social atua no conteúdo do direito. E, dentre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do Código Civil (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário. (…)Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos” (apCiv. 212.726-1-8-SP, j. 16.12.1994). Enfim, o que se tem nestes autos é uma verdadeira impossibilidade de reintegração de posse ante o tempo e a situação hoje existente, cabendo ao autor, como forma de não se empobrecer sem justa causa e, ante a responsabilidade do Estado, propor a ação de reparação que permita recompor, pela via da indenização, seu patrimônio. Face todo o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido inicial. Atento ao princípio da causalidade, deixo de fixar a sucumbência. P. R. I. C. Transitada esta em julgado, ocorrendo silêncio no quinquídio seguinte, arquivem-se os autos. São Paulo, 31 de janeiro de 2.006. AMABLE LOPEZ SOTO Juiz de Direito

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