Poder Judiciário JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária de Santa Catarina 7ª Vara Federal de Florianópolis
PROCEDIMENTO ESP.DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL Nº 5007305- 02.2018.4.04.7200/SC
AUTOR: RODOLFO HICKEL DO PRADO
ACUSADO: LUIS NASSIF
DESPACHO/DECISÃO
Cuida-se de procedimento do Juizado Especial Federal instaurado a partir da queixa-crime apresentada por RODOLFO HICKEL DO PRADO em face de LUIS NASSIF, na qual busca-se a condenação do querelado pela suposta prática do crime do artigo 139 do Código Penal (difamação), por seis vezes e, também, do crime do artigo 138 do Código Penal (calúnia) por quatro vezes, com as penas aumentadas na forma do artigo 141, II, do Código Penal, uma vez que o Querelante é servidor público e teria sido, supostamente, difamado e caluniado em razão de suas funções. Postula-se, ainda, a condenação à reparação do dano, no montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Os fatos descritos na queixa-crime dizem respeito à postagem na internet de matéria, assinada pelo jornalista Luiz Nassif, no site GGN - O Jornal de todos os Brasis, no dia 30/10/2017, cujo título é "Sobre a capivara do corregedor da UFSC e o estado de exceção", cujo teor, ainda disponível no referido site (https://jornalggn.com.br/crise/corregedor-que- entregou-reitor-a-pf-ja-foi-condenado-por-calunia-e-difamacao/ Acesso em 04/03/2020) é o seguinte:
Sobre a capivara do corregedor da UFSC e o estado de exceção
Por Luis Nassif - 30/10/2017
O dossiê dos Jornalistas Livres sobre Rodolfo Hickel do Prado, o corregedor que levou o reitor Luiz Carlos Cancellier ao suicídio, é o mais contundente libelo contra o estado de exceção em vigor no país.
A reportagem mostra o corregedor como uma pessoa totalmente desequilibrada, com uma extensa capivara de abusos, contra condôminos do seu prédio, contra ex-esposas, contra funcionários e alunos da UFSC, um doente social que se valia do fato de ser filho de um oficial da Polícia Militar para toda sorte de abusos.
Não se trata apenas de um sujeito truculento, mas de um desequilibrado perigoso, que arruinou gratuitamente a vida de inúmeras pessoas. Com diferentes graus de desequilíbrio, não foge muito do arquétipo do moralista revestido de poder de Estado.
No entanto, essa tendência animalesca à destruição de pessoas foi valorizada pela Controladoria Geral da União, e apoiada por uma juíza e uma delegada inebriadas pelo orgasmo da violência de Estado.
Todos aqueles que defendem a universalização da condução coercitiva, que admitem a publicidade de qualquer ato policial, aqueles que, como Luís Roberto Barroso, aderem ao assassinato de reputações para preservar a sua própria reputação, que meditem sobre o Estado que estão criando.
Hickel do Prado seria apenas um truculento a mais, não fosse o poder de Estado do qual foi revestido pelos defensores da exceção.
Do Jornalistas Livres
Corregedor que entregou reitor à PF já foi condenado por calúnia e difamação
Sem poder suportar a demolição moral que sofreu a partir das armadilhas de uma personalidade reincidente na prática da calúnia e da perseguição, o reitor Luiz Carlos Cancellier morreu aos 59 anos, impossibilitado de encontrar saída para a trama em que foi enredado. O destino do reitor e da universidade poderiam ser outro se os antecedentes criminais e o perfil do seu principal acusador tivessem sido levantados e viesse à tona o depoimento das vítimas dentro e fora da universidade. Antes de a Justiça e da Polícia Federal darem crédito à rede de intrigas e acusações que encurralaram o reitor num beco sem saída, sem esperança de reivindicar sua inocência para os “ouvidos moucos” dos aparelhos punitivos, o corregedor geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, 58 anos, já respondia por inúmeras denúncias de calúnia, difamação, ameaças e intimidações. Em seis processos localizados pela reportagem, nos quais em ao menos dois ele foi condenado em instância criminal e civil, um traço do seu caráter permanece: o abuso de autoridade de quem se aproveita da influência e posição para lançar falso testemunho e intimidar pessoas inocentes.
Atropelado em sua tentativa de acomodar as divergências políticas internas e colocar em prática seu projeto conciliador de universidade, o reitor nunca teve acesso à ficha criminal do servidor da Advocacia Geral da União (AGU), que foi nomeado para o cargo de corregedor um dia depois da sua vitória nas urnas. Antes de ser conduzido à estrutura de gabinete pela ex-reitora Roselane Neckel, candidata derrotada à reeleição, ninguém sabia quem era de fato Rodolfo Hickel do Prado. Nem ela mesma, de quem ele teria se aproximado como promessa de manter controle estratégico num território perdido sob o apelo do combate à corrupção. Os objetivos da célula de fiscalização que Hickel viria a assumir eram os mais nobres possíveis: “A criação da Corregedoria dá mais visibilidade e instrumentaliza a execução de processos que zelam pelo bom encaminhamento da administração e sua transparência”, anunciou a então reitora quando a criação do órgão foi aprovada pelo Conselho Universitário, no dia 19 de agosto de 2014. Só que não. Depois da sua nomeação, em 4 de maio de 2016, o obscurantismo, a perseguição pessoal e o terror psicológico começaram a minar a vida da comunidade universitária.
Violada em sua autonomia e mergulhada em uma crise política e emocional sem precedentes, a universidade poderia ter sido preservada, caso a ficha criminal do novo corregedor tivesse sido minimamente investigada, como pede um cargo dessa natureza. Todos os processos que mostram conduta de desequilíbrio, falso testemunho e agressividade poderiam ter sido localizados no site do Tribunal de Justiça do Estado pela Superintendência da Corregedoria Geral da União. “Com essa ficha corrida ele nunca poderia ter sido nomeado para cargo nenhum”, afirma o ex- procurador da UFSC Nilton Parma. “A Corregedoria Geral da União deveria ter investigado”.
A morte do reitor tem sido amplamente apontada como culminância da criminalização generalizada que usa o combate necessário à corrupção e às irregularidades nos órgãos federais para condenar homens públicos antes de serem julgados. “Em nome da transparência e do controle social dirigentes públicos têm sofrido toda sorte de humilhações e pré-julgamentos por segmentos dos órgãos de controle, Justiça Federal, Polícia Federal e da mídia”, diz nota do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. O manifesto do Conif reconhece os avanços no controle social das instituições públicas, mas alerta sobre os riscos que o desrespeito às instituições democráticas e aos direitos humanos impõem ao Estado brasileiro. Trata-se, seguindo o Manifesto dos Reitores das Redes Federais, de “uma campanha sórdida para o descrédito das instituições, dos servidores e dos gestores públicos”.
Nessa campanha de “sepultamento do Estado de Direito” que sepultou o próprio reitor e a possibilidade de paz na comunidade universitária, o corregedor da UFSC teve, com sua conduta pessoal e seus antecedentes criminais escondidos da comunidade, um papel chave. O resultado é angústia, sofrimento coletivo, acirramento das divisões políticas e um luto vivido com guerra. A reitoria está esvaziada como um cemitério, com 16 renúncias de primeiro escalão, e um corregedor que age sozinho, depois de os outros dois eleitos também se exonerarem, assim como a quase totalidade da equipe de assessores, como vamos detalhar mais adiante.
INVASÃO MILITAR A DOMICÍLIO BASEADA EM FALSA DENÚNCIA
Numa primeira investigação, verificamos que Hickel deixou de ser réu primário já em 7 de novembro de 2011, quando foi condenado pela Justiça Criminal pela prática continuada do crime de difamação. O processo, pelo qual foi sentenciado a quatro meses e 24 dias de detenção, além de pagamento de multa, refere-se ao mesmo crime três vezes repetido contra o procurador de Justiça estadual, Ricardo Francisco da Silveira, falecido em 2013, pouco antes receber a ação indenizatória no processo cível. Depois de promover uma espetaculosa e ilegal invasão da Polícia Militar à casa do seu amigo, o professor gaúcho Flávio Cozzatti, Rodolfo Hickel imputou-lhe a falsa acusação de “obstruir a ação policial”, um padrão recorrente nas suas acusações. Consta dos autos que ao comandar a operação no condomínio Forest Park, no bairro de Coqueiros, em Florianópolis, o servidor da AGU e então síndico do prédio referiu-se a ele para os policiais nos seguintes termos: “esse procuradorzinho de merda, vem aqui querendo dar carteiraço”. (Processo nº 082. 10.004574-1 Juizados Especiais Criminais da Capital).
O caso, que se desdobrou em vários processos, parece um ensaio em menor escala da cilada policial que Hickel armaria seis anos mais tarde para prender o reitor, vítima fatal da difamação. Logo depois de retornar de Joinville, onde atuava pela AGU, o corregedor conseguiu se eleger síndico do condomínio de Coqueiros. “Depois de eleito, ele começou a botar terror em todos os moradores e a implicar com o charuto ou o cachimbo que eu fumava na sacada e daí começou um processo de perseguição”, conta Flávio Antonio Cozzatti, ainda morador do edifício. Conforme os autos, Hickel cortou a fiação da TV a cabo do vizinho, segundo foi comprovado com laudo da empresa Viamax. “Abri a caixa e cortei o resto dos fios. Subimos para dormir quando formos surpreendidos pelo aparato policial em nosso lar”, narra o professor. Como justificativa do chamado, Hickel alegou que estava sendo ameaçado de morte com arma de fogo pelo vizinho.
No dia 3 de junho de 2010, mais de cinco viaturas com oito homens da Polícia Militar armados, sendo três do Bope portando fuzis e metralhadoras, arrombaram e invadiram o apartamento do professor Cozzatti. Quando viu o síndico alcançar uma escada para que os policiais subissem por ela a sacada do seu apartamento, o professor pediu à mulher que chamasse por telefone o socorro do irmão (como ele se refere ao procurador Ricardo da Silveira dentro e fora dos autos), que acabara de deixar a residência. A cena narrada nos autos logo remete à humilhante prisão do reitor Cancellier na manhã do dia 14 de setembro.
Em frente à garagem do prédio, interditada pelos policiais, o procurador Ricardo Francisco viu a movimentação dos policiais e soube por eles que estavam fazendo um “flagrante de ameaça à mão armada” na casa da família que considerava como sua. Chegou a tempo de presenciar os policiais arrebentando a porta com armas em punho, puxarem Flávio Cozzatti pelo braço e aplicarem nele uma gravata na frente da esposa e dos dois filhos (um rapaz de 24 anos e uma adolescente de 14). Foi quando tentou intermediar a situação, perguntando se havia mandado de busca em domicílio.
Nos autos, o procurador já falecido deixou o seguinte testemunho: “Meu irmão estava prestes a ser espancado pelos policiais quando eu cheguei”. Tendo o síndico como guia da operação, os policiais responderam que não precisavam de mandado porque se tratava de um flagrante. Um deles, da corporação do BOPE, dirigiu-se a Flávio ameaçando-o com um par de algemas no rosto: “Colabora professorzinho de merda!!!! Se não, te algemo e toda a tua família, e levo para a Delegacia presos”, diz o diálogo reproduzido no processo. Ficou comprovado, na tentativa de flagrante, que não havia arma em posse da vítima. “Nunca tive. Sempre me manifestei publicamente contra o armamento”, atesta o professor. Flávio e Ricardo tinham na época 50 anos, por coincidência, a mesma idade de Rodolfo.
Ainda conforme o testemunho nos autos, Cozzatti só não foi preso com algemas porque o procurador alegou que seria uma ilegalidade contra uma pessoa rendida que não apresentava qualquer resistência. “Depois soubemos que Rodolfo Hickel do Prado se utilizou do artifício de ser filho de um oficial da PM”, conta Flávio. O reitor Cancellier, que era também um jurista, não teve a mesma sorte: sofreu abusos vexatórios ainda maiores, vestiu uniforme laranja e foi submetido a exame íntimo anal, denunciado pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade em célebre discurso na cerimônia do Conselho Universitário que o homenageou um dia após o suicídio. Lédio e outros juristas apontaram o amigo Cau como primeira vítima fatal do novo estado de exceção.
Sempre segundo os autos, testemunhas ouviram Hickel referir-se a Ricardo com o mesmo desprezo, como “um procuradorzinho de merda”, e de acusá-lo de “barrar o trabalho dos policiais”. A mesma acusação seria levantada contra o reitor, capaz de fazer a delegada Érika Marena pedir à juíza federal Janaína Cassol Machado a sua prisão temporária e o seu afastamento da universidade, mesmo sem antecedentes criminais e sem processo legal. Foi o próprio Hickel quem entrou primeiro com representação na Corregedoria Geral do Ministério Público contra o amigo-irmão de Cozzatti, acusando-o de interdição do trabalho da polícia e da justiça, exatamente como fez com o reitor. Mas diferente da atitude da delegada e da juíza, o corregedor geral do MP na época, Paulo Ricardo da Silva, não se deixou engambelar pelas intrigas: não só mandou arquivar o processo por julgá-lo improcedente, como deu uma canetada no acusador, no dizer do jargão judicial. “Na época avaliei que não havia nenhum indício de que o acusado tivesse dado um carteiraço, como ele alegava, nem motivos para a prisão”, comenta Paulo, hoje procurador de Justiça, que fez o comentário a partir do processo localizado no site do Tribunal de Justiça e dos documentos fornecidos por Cozzatti à reportagem.
Ainda segundo os depoimentos nos autos, Cozzatti foi levado de casa aos empurrões, metido numa viatura com três homens da PM e humilhado na frente de “um corredor polonês de vizinhos de rua espantados e indagando os motivos da prisão”. O professor foi levado à delegacia de polícia de Coqueiros e do centro da cidade, onde Hickel iniciou um processo de queixa-crime contra ambos. Mas o mais perverso estaria por vir no dia seguinte à invasão: O então síndico espalhou cartazes de edital pelo Forest Park, convocando os condôminos para uma reunião em que deveriam apreciar as atitudes do professor e aplicar-lhe multa. Os pretensos crimes cometidos por Cozzatti estavam discriminados em letras maiúsculas: ameaça de morte com arma de fogo; depredação do patrimônio do prédio; interdição do trabalho da polícia. O futuro corregedor da UFSC também espalhou cartazes pelo condomínio anunciando que estava proibida a entrada de Ricardo, que era coproprietário do apartamento de Flávio Cozzatti, do qual tinha chave e controle remoto. O processo contra os policiais lançados pelo síndico à operação foi arquivado pela justiça militar, mas os PMs foram condenados na justiça comum em 15 de julho de 2014 por abuso de poder e receberam anotação na ficha funcional, conforme sentença que acessamos. (Processo 00000959-56.2012.8.24.0082).
Os “amigos-irmãos”, cuja aliança começou aos 18 anos no movimento estudantil, lutando contra a ditadura militar, em Porto Alegre, entraram com ações individuais de indenização em 18 de março de 2013. Hickel foi condenado na vara cível a pagar R$ 15.000,00 pelos danos morais causados ao procurador e recorreu alegando não ter dinheiro. Ricardo solicitou que fosse anexado o imposto de renda e contra-cheque de servidor da AGU e estavam acordando a forma de pagamento quando a sentença foi extinta devido ao falecimento da vítima, que não deixou herdeiros. (Processo nº 0004770-92.2010.8.24.0082 – 2ª Vara Cível da Capital). Enquanto isso, a ação cível de Cozzatti prosperou para fase final e ele abriu outros processos que estão em grau de recurso por parte de Hickel. (Processo nº 0002768-18.2011.8.24.0082, 2ª Vara Cível do Continente). Entre eles, está a acusação de ter sido destituído pela assembleia do condomínio da função de síndico pelos desmandos praticados, sempre segundo Cozzatti. E também de não ter até hoje prestado contas do dinheiro gasto em sua gestão, além de ter tentado cobrar os custos do processo calunioso que promoveu da conta dos condôminos. “Esse homem é um crápula perigoso, que se acostumou a aterrorizar as suas vítimas, em geral pessoas que discordam dele”, diz. “O meu desconforto é pouco; o que me agride é essa situação quando uma pessoa desrespeita as regras mínimas de convivência, é mau, calhorda e continua agindo de forma impune. O reitor foi a primeira perda, quando será a próxima?”
CRIME DE TRÂNSITO E CARTEIRAÇO
Desde 7 de abril de 2017, Hickel está sendo processado também pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina por prática de crime de trânsito, sob suspeita de fuga. O processo foi gerado a partir de registro de ocorrência no dia 23 de março de 2016, às 17 horas, quando foi autuado por “direção perigosa”, considerada “imprudente” e “totalmente irresponsável” pelas testemunhas. Poucos dias antes da posse como corregedor geral, Hickel foi flagrado por uma viatura com quatro policiais no seu Renan Fluence, trafegando na contramão em alta velocidade, em via perigosa e área de risco, na rua Marco Aurélio Homem, na entrada do Morro da Serrinha, em Florianópolis. Foi denunciado pelo juiz por colocar em risco a vida “da coletividade”.
Hickel foi surpreendido por quatro policiais do DEIC, Arthur de Oliveira Rocha, Renato Gamba Torres, Thiago Elpídio Cardoso e Filipe Bueno da Silva, que o viram ultrapassar vários veículos, inclusive, a viatura policial. Segundo o testemunho de Arthur, ao ser parado pela viatura com a sirene e as luzes ligadas, o advogado apresentou sua carteira da OAB e só mostrou a CNH quando o pedido foi reiterado. O futuro corregedor justificou que estava ultrapassando um caminhão em manobra de conversão à direita da pista. Todavia, após verificar imagens das câmeras de residências locais, os policiais registraram que “a versão do condutor era inverídica, pois não havia nenhum caminhão conforme fora mencionado”.
As testemunhas e os autos afirmam que as imagens das câmeras constataram: “O motorista estava alterado, falando em alto e bom som que iria falar com todos os policiais somente na corregedoria”. Registram ainda o “comportamento alterado do condutor, a esbravejar que isto não vai ficar assim e que iria até a corregedoria da polícia civil relatar o caso”. As testemunhas declaram que o motorista “não lhes dirigia mais a palavra após a chegada dos policiais militares, afirmando em tom ríspido que iria provocá-los na Corregedoria”. Depois de ter assinado o termo circunstanciado na Delegacia de Investigações Criminais (Deic) em 27 de abril deste ano, o processo foi encaminhado para o Juizado Especial Criminal da Comarca. Uma audiência está marcada para novembro. (Processo nº 0001348-41-2017.8.24.0090 Juizado Especial Cível e Criminal da Trindade, Florianópolis). Como de hábito, Hickel entrou com ação de notícia-crime na Justiça por abuso de autoridade, mas os policiais foram salvos pelas câmeras de vigilância dos vizinhos comprovando de quem foi o abuso, inclusive o trecho percorrido na contramão pelo futuro corregedor e a sua tentativa de intimidar os policiais. Ainda assim, Hickel recorreu e o Ministério Público se manifestou de novo pelo arquivamento.
DA PRISÃO ILEGAL AO ESVAZIAMENTO DA UNIVERSIDADE
A perseguição de Hickel ao reitor começou quando ele lhe solicitou que tivesse mais cuidado com as pessoas da comunidade. Cancellier recebia diariamente queixas de servidores, professores e alunos se dizendo tratados com truculência pelo corregedor, conforme seu chefe de gabinete Áureo Moraes. “Não se pode tratar alguém sob suspeita que mais tarde pode não ser confirmada como se fosse uma sentença de condenação. É preciso ter cortesia e civilidade com todas as pessoas, não importa a que classe pertençam”, pronunciou-se o jornalista José Hamilton Ribeiro, que esteve na UFSC no dia do falecimento para dar uma palestra no Curso de Jornalismo. “Isso seria a volta à Ditadura Militar”, completou. Quando estava prestes a ser denunciado por um pedido de Processo Administrativo Disciplinar, movido por um professor que ele teria ameaçado e desacatado, Hickel acusou Cancellier de interdição do trabalho da Polícia Federal na Operação Ouvidos Moucos. A denúncia motivou uma emboscada militar com um contingente de 105 homens da Polícia Federal de várias partes do Brasil que algemou e prendeu o reitor quando ele mal iniciava o dia de trabalho na universidade.
Na TV Globo, Folha de S. Paulo e outras mídias comerciais, a prisão cinematográfica foi justificada pelo roubo de R$ 80 milhões de verbas do Ensino a Distância, correspondente à verba total do Programa Universidade Aberta. Soube-se tardiamente que o montante dos desvios ainda não comprovados, ocorridos dez anos antes da gestão de Cancellier e sem nenhum envolvimento pessoal dele, não passam de R$ 500 mil. Hickel, de fato, denunciou o reitor por tentativa de obstrução dos trabalhos, mas a divulgação maliciosa da verba total do programa, como se fosse o valor do desvio sob suspeita, continuou a ser criminosamente espalhada mesmo após corrigida. E continua a sê-lo mesmo após o suicídio.
Na UFSC e nos meios jurídicos, não faltam notícias de professores, servidores, estudantes e profissionais da área jurídica tratados como suspeitos, intimidados ou insultados pelo corregedor no trato profissional. “Ele exerce o poder de forma cruel e excessiva”, diz Nilto Parma, advogado do professor de Administração Gerson Rizzatti Júnior na representação que move contra Hickel. Apresentada em 5 de julho deste ano, a denúncia foi retida pelo próprio reitor para não gerar conflitos. Com o seu falecimento e a pressão do apelante, deu origem a uma portaria determinando o seu afastamento por 60 dias para abertura de Processo Administrativo Disciplinar, assinada pelo chefe de gabinete Áureo Moraes. . Sua revogação pela reitora Alacoque Lorenzini Erdmann é hoje motivo de grave crise institucional na universidade. (Veja o processo na íntegra ao final do dossiê)
Considerada uma atitude de covardia e traição à autonomia universitária, a anulação desencadeou uma renúncia em massa gradual. O primeiro a pedir exoneração foi o próprio chefe de gabinete, acompanhado nos dias seguintes por 16 ocupantes de cargos de primeiro escalão, num total de 20, incluindo pró-reitores e secretários com status de pró-reitor. Pediram demissão os seguintes gestores, todos confirmados hoje pela manhã à reportagem: Álvaro Lezana, diretor geral do gabinete; Gelson Albuquerque, assessor institucional; Pedro Manique, pró-reitor de Assuntos Estudantis; Jair Napoleão, pró-reitor de Administração; Rogério Cid Bastos, pró-reitor de Extensão; Sérgio Freitas, pró-reitor de Pós-graduação; Vladimir Fey, secretário de Planejamento; Cláudio Amante, secretário de Inovação; Carla Búrigo, pró-reitora de gestão de pessoas; Alexandre Marino, pró-reitor de Graduação; Luiz Henrique Cademartori, secretário de Aperfeiçoamento Institucional; Gregório Varvakis, secretário de Educação a Distância; Edison Souza, secretário de Esportes; Paulo Pinto da luz, secretário de obras e Lincoln Fernandes, secretário de Assuntos Internacionais.
Em reunião interna com os pró-reitores, a medida foi atribuída por Alacoque a ameaças de processo por improbidade administrativa que teria sofrido do Ministério Público Federal e da Superintendência da Corregedoria Geral da União. O afastamento de Hickel e a permanência do PAD para investigar os desvios de conduta do corregedor é um ponto de honra para todos esses dirigentes. Eles acreditam que a partir do gesto de coragem do professor Gerson, muitas outras vítimas dos excessos do corregedor vão romper o silêncio. “Vai ser como o caso do médico Abdelmassih: uma denúncia moverá muitas outras”, aposta o ex-procurador.
Depois da forte reação contra a derrubada da portaria, a reitora em exercício encaminhou o PAD à consulta na Corregedoria Geral da União, algo visto pelos insurgentes como entregar o julgamento ao próprio carrasco. Uma comissão de apuração foi definida pelo Conselho Universitário na terça-feira (24), com o objetivo de investigar os acontecimentos relativos à Operação Ouvidos Moucos e às circunstâncias que levaram ao suicídio do reitor. Em entrevista de vídeo ao site Notícias da UFSC, na sexta-feira, a reitora afirmou que essa comissão tem 30 dias prorrogáveis por mais 30 para realizar o seu trabalho e clamou pela pacificação da universidade. Enquanto Alacoque gravava a entrevista, uma reunião dos gestores no Centro de Cultura e Eventos decidia pela debandada geral dos que ainda estavam indecisos.
A debandada de integrantes dos órgãos de gabinete, contudo, começou logo com a posse de Hickel. Para se ter uma ideia da crise instaurada, os dois corregedores eleitos para compor a corregedoria sob a chefia dele pediram afastamento por não suportarem a sua conduta intimidadora e destemperada, conforme o ex-chefe de gabinete da reitoria, Áureo Moraes. Entre eles estão Ronaldo David Vianna Barbosa, um crítico dos seus métodos, que deixou a corregedoria poucos dias após sua nomeação e Marcelo Aldair de Souza, que também pediu para ser removido de setor. Ambos chegaram a ir ao corregedor Geral da União, Fabrício Colombo, reclamar dos procedimentos abusivos de Hickel. “Além da contumaz truculência, a principal queixa é que o corregedor tratar suspeitas que ele mesmo levanta como sentenças de condenação”, diz um servidor que era lotado na Procuradoria Geral e também pediu pra sair.
Além de Ronaldo e Marcelo, quatro servidores alegaram não suportar as grosserias e intimidações do corregedor e solicitaram ao gabinete remanejamento para outro setor da UFSC, entre eles duas servidoras com cinco anos de trabalho na procuradoria, e outros dois auxiliares recém-designados para o novo órgão. Uma delas é Karina Jansen Beirão, bacharel em Direito da Procuradoria, que já conhecia a atuação do inquisidor quando vinha à universidade orientar a criação do órgão. Ao saber da escolha de Hickel para o cargo, não pensou duas vezes: saiu em licença-maternidade e no retorno pediu remoção. A outra, Ana Peres, administradora, suportou dois meses e pediu para sair, conforme informações do ex-chefe de gabinete, Áureo Moraes. Até o estagiário de jornalismo do gabinete, Marcus Vinícius dos Santos se demitiu. Hoje, Hikel comanda uma corregedoria solitária, na qual é chefe dele mesmo, mas feitor de todos os que discutem suas ordens, como o professor Rizzatti, ex-colaborador da corregedoria.
Na segunda-feira (23), único dia em que ficou afastado pela portaria, Hickel não interrompeu a fome inquisidora: continuou a fazer intimidações, conforme servidores da Reitoria. Ao todo, ele já emitiu três portarias determinando a instauração de Processos Administrativos Disciplinares contra professores, servidores e alunos de diversos cursos, sem sindicância anterior e com afastamento preventivo. Os investigados foram suspensos de todas as suas atividades na UFSC e proibidos de entrar no campus, incluindo um professor já com tempo de aposentadoria e longa ficha de serviços prestados à comunidade científica. “O problema é que ele nunca dá motivo para as intimidações”, diz Rizzatti. A falta de sindicância foi um dos argumentos utilizados pela reitora em exercício para anular a instauração do PAD que investiga as denúncias contra o corregedor.
Incentivados pelo ambiente hostil da corregedoria, Marcone José de Souza Cunha e Camila Trapp Sampaio, servidores formados em Direito, que auxiliavam no trabalho de controle, pediram exoneração da UFSC para fazer outros concurso. A professora Mônica Salomón Gonzáles, do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Sócio-econômico, nomeada com o professor Gerson Rizzatti, foi quem mais sofreu nas mãos do inquisidor. Ela disse ao titular da Secretaria de Aperfeiçoamento Institucional, Luiz Henrique Cadermatori, e ao ouvidor da UFSC, Arnaldo Podestá Júnior, que foi interrogada pelo corregedor durante cerca de três horas, como se estivesse numa delegacia. Chamou a isso de “tortura psicológica”.
O próprio advogado de Gerson, Nilto Parma, se disse desrespeitado e insultado por ele, assim como a advogada Marina Ferraz Miranda, professora da Udesc e seu aluno cliente, que deverão testemunhar na representação contra o corregedor. “Apenas argumentei que não cabia acusação de improbidade administrativa contra meu cliente, porque é facultado ao servidor o direito legal de solicitar dispensa de encargos que não se julgue capaz de cumprir e fui insultado por ele”, afirma Parma. O Advogado do Siintufsc, Guilherme Querne, também relatou ao SEAI muitos problemas e dificuldades para fazer a defesa de servidores por conta do temperamento hostil de Hickel.
PROCESSOS POR AGRESSÃO A MULHERES
O relacionamento de Rodolfo Hikel com as mulheres é um capítulo à parte, que deveria ser objeto de outra investigação mais aprofundada, tanto no exame dos processos quanto na apuração de campo. Uma ação amplamente conhecida e comentada nos bastidores jurídicos foi impetrada em 2003 pela sua segunda ex-mulher, Iôni Heiderscheidt, advogada e professora da UFSC, na época professora da Univali. Reclamando indenização por prejuízos financeiros e danos emocionais, ela relata com riqueza de detalhes como perdeu o bebê depois de várias agressões físicas e psicológicas. Anexa nos autos testemunhas e cópia do protocolo de entrada na Maternidade Carlos Corrêa com dores e forte sangramento. Segundo narra, mesmo depois dos riscos que sua gravidez sofreu nessa ocorrência, foi agredida novamente até sofrer um aborto. Embora tenha perdido a ação indenizatória pela ausência de provas, como exame de corpo de delito e Boletim de Ocorrência, o conteúdo da acusação não foi desmentido pelo juiz. Em outra ação, impetrada pela ex-namorada ou ex-noiva de Rodolfo, Lúcia Helena Cardoso, também professora universitária, alega os mesmos padrões de comportamento do acusado: perseguição, intimidação, assédio psicológico e repetidos episódios de agressão física e moral.
PERFIL DE CORREGEDOR: EQUILÍBRIO, SENSIBILIDADE E PACIÊNCIA
Qualquer que se seja a pessoa com quem se fale a respeito do corregedor na universidade já ouviu falar dessas ações públicas ou sigilosas envolvendo o homem que concentra hoje o poder de fiscalização, denúncia e punição de irregularidades na instituição. Comentários sobre essas ações passam de boca em boca, como narrativas de corredor que ninguém investiga. Mas essas e outras histórias são terrivelmente reais e concretas para as vítimas e as suas famílias. E, à medida que não são de fato apuradas, só servem para amedrontar e acovardar as pessoas prejudicadas e aumentar ainda mais os poderes do inquisidor para intimidar pessoas, fortalecer as divergências políticas internas e espalhar a discórdia no seio da universidade.
Por ora o fato mais importante diz respeito ao perfil de Rodolfo para o cargo de corregedor, no momento em que a universidade é devastada por uma crise desencadeada pelo falecimento do reitor e pela presença de um estado policialesco. As orientações que regulamentam a implantação das corregedorias seccionais pelo decreto federal 5.480, estabelecem em 11 itens as habilidades e características de comportamento que compõem o perfil necessário a um ocupante do cargo. Pelo menos oito itens parecem apontar exatamente para o oposto do comportamento da primeira pessoa a ocupar o cargo. Conforme o item 3, por exemplo, o candidato deve ter sensibilidade e paciência; o 4, indica capacidade de escuta; o 5, equilíbrio emocional; o 6, capacidade de trabalhar sob situações de pressão; o 7, proatividade e discrição; o 9, independência e imparcialidade; o 10, adaptabilidade e flexibilidade e o 11, maturidade na prevenção, apuração e solução de conflitos.
Envolvido também em queixas de assédio moral contra alunas da universidade, que chamou a depor com base em suas manifestações e curtidas em postagens nas redes sociais, conforme já publicaram os jornalistas Luiz Nassif https://www.conversaafiada.com.br/brasil/quem-e-a-figura- central-da-tragedia e Paulo Henrique Amorim https://m.youtube.com/watch?v=uhRqokWT0qQ, Hickel visivelmente não apresenta a conduta exigida para o cargo de corregedor. Talvez o único requisito que preencha do perfil recomendado hoje é o primeiro, que se refere à “larga experiência em processos disciplinares”, que ele não tinha, conforme auxiliares que se afastaram da corregedoria, mas adquiriu intensamente depois de assumir o cargo. E também o oitavo item, que se refere à análise crítica, aspecto enfaticamente exercido em relação à administração de Cancellier, o que não significa “independência à administração”, requisitada no item 2, como salienta Rizzatti.
Mais do que crítico ao reitor, Rodolfo tinha uma mágoa contra ele que declarou em suas entrevistas aos jornais logo depois da prisão, quando denunciou que estava sendo perseguido. Em entrevista ao Diário Catarinense, publicada no dia 19 de setembro, sob a manchete: “‘Pressões começaram logo após a minha posse’, diz corregedor que investiga desvio de bolsas na UFSC”. Na reportagem, ele acusa o reitor de rebaixar o seu salário de CD-3 para CD-4, o que implicaria numa perda de R$ 1 mil. http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2017/09/pressoes-comecaram-logo-apos-a-minha- posse-diz-corregedor-que-investiga-desvio-de-bolsas-na-ufsc-9905872.html
Pessoas que atuam na área de recursos humanos na universidade ficaram estarrecidas com a essa alegação monetária do corregedor. Houve uma alteração na estrutura da administração e a função dele foi igualada à da auditoria interna, explica o chefe de gabinete recém-exonerado, garantindo que não foi uma redução da gratificação. “Várias pessoas passaram por esse reenquadramento”.
TIRANIA PESSOAL ENCORAJADA PELO ESTADO DE EXCEÇÃO
Esse primeiro levantamento realizado nos autos judiciais indicam que os antecedentes de Hickel não o credenciariam sequer para o cargo de síndico, quanto menos para a responsabilidade do controlador máximo de irregularidades de um órgão público tão importante e tão necessitado de harmonia quanto a universidade, como lembrou o ex-procurador. Foi na condição de síndico de condomínio que Rodolfo Hickel sofreu a primeira condenação criminal por calúnia e difamação e quase destruiu a vida da família de Cozzatti. “Os traumas psicológicos em mim, na minha mulher e nos meus filhos foram imensuráveis”, diz ele, com o rosto lavado por um pranto convulsivo pelas lembranças que o fizemos reviver durante vários dias de apuração.
A dor da família de Cancellier, sua revolta contra o homem que levou o irmão ao gesto de desespero e o estado de exceção que o agasalhou e encorajou suas calúnias é ainda mais dilacerante. Hickel foi nomeado por Roselane em 4 de maio de 2017, seis dias antes da posse do novo reitor, num momento de grande alegria e júbilo para os irmãos Cancellier que, segundo Accioli, o mais velho dos três, selaria o início da desgraça de um homem público de carreira ilibada.
Ao menos quatro dos 14 candidatos preteridos devem entrar com recurso contra a escolha. “Há irregularidades na eleição. Fiz um recurso ao Conselho Universitário quando o professor Cancellier assumiu, mas ele mesmo, sempre tentando soluções pacificadoras, me pediu para desistir porque não queria ser acusado de perseguir o corregedor nomeado pela gestão anterior”, testemunha Fabrício Guimarães, graduado em Direito, ex-assistente administrativo da Procuradoria da UFSC, que trabalhou 17 anos com processos disciplinares. O principal argumento do seu recurso para anulação das eleições: “A lista tríplice foi escolhida não pelo CUN, mas por uma comissão designada pela então reitora, que elegeu Rodolfo Hickel após submeter essa lista a uma reunião esvaziada do CUN, um dia após a vitória der Cancellier nas eleições”, argumenta Guimarães.
O traço persecutório, difamador, abusivo e ameaçador demonstrado neste inventário de conduta encontrou alimento em outra personalidade semelhante que chegou à UFSC depois de ter sido proscrita de outros órgãos. Agindo juntos, os parceiros da perseguição ganharam crédito de uma juíza e de uma delegada da Polícia Federal no contexto nacional de supressão geral dos direitos democráticos desde o golpe de 2016. E a tramoia cresceu no terreno fértil do estado de exceção não-declarado que o país vive, encorajando as ações policialescas que desrespeitam as garantias constitucionais e excitam a opinião pública com a fúria injusta dos coliseus. Envolvido num conjunto de suspeitas de irregularidades iniciadas 10 anos antes de sua gestão, sem acesso à universidade, distante dos amigos pelo terror psicológico que os afastou, e sem direito à defesa, o reitor não viu outra saída para acabar com a dor da humilhação a não ser lançar-se ao precipício como denúncia.
NOTA DA REDAÇÃO: Os Jornalistas Livres encaminharam 16 perguntas ao corregedor sobe os processos judiciais aqui abordados, com questões sobre seus métodos de trabalho e de tratamento pessoal, bem como a onda de denúncias acerca de sua conduta na universidade e a sua relação e possível influência nos orgãos federais da Justiça, Polícia e Corregedoria da União. Propusemos como teto para recebimento das respostas as 19 horas de domingo (29/10), mas até o fechamento da edição desta reportagem não houve retorno (evento 01, OUT6).
Do texto da matéria, o Querelante destaca como condutas supostamente criminosas, sem, contudo, indicar precisamente quais seriam caluniosas e quais seriam difamatórias, as afirmações de que "trata-se de um doente social", "truculento", "desequilibrado perigoso", "arruinou gratuitamente a vida de inúmeras pessoas", "possui diferentes graus de desequilíbrio", "tendência animalesca à destruição de pessoas" e que "seria apenas um truculento a mais, não fosse o poder de Estado do qual foi revestido pelos defensores da exceção" (p. 4 da queixa-crime). Também aponta a divulgação de um "dossiê" publicado pelo blog "Jornalistas Livres", no qual se afirma que o Querelante já foi condenado criminalmente e que possui antecedentes criminais como conduta criminosa apta a ensejar a condenação do Querelado.
Desde a propositura da queixa-crime, várias diligências foram realizadas no sentido de se intimar o Querelado para a realização de audiência de conciliação, nos termos do artigo 520 do CPP, com a finalidade de se implementar os princípios e diretrizes da Justiça Restaurativa.
Decido nestes autos, ao retornar à titularidade plena da 7ª Vara Federal, após período de afastamento de dois anos para o exercício de função administrativa (Direção do Foro da Seção Judiciária de Santa Catarina) e para a conclusão de pesquisa em programa de doutorado. Após examiná-los e em que pesem as nobres intenções de se concretizar a conciliação e os ideais da Justiça Restaurativa na seara penal, expressos nas decisões anteriores e nos esforços da Secretaria para a realização da aludida audiência, tenho que o caso requer solução diversa, pelas razões que passo a expor.
1. Da importância da liberdade de expressão no marco jurídico interamericano e brasileiro
A Convenção Americada de Direitos Humanos, incorporada do direito brasileiro pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, em seu artigo 13, estabelece que:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua
O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
A Declaração Americana em seu artigo IV dispõe que "Toda pessoa tem direito à liberdade de investigação, de opinião e de expressão e difusão do pensamento por qualquer meio". O artigo 4 da Carta Democrática Interamericana destaca que: "São componentes fundamentais do exercício da democracia a transparência das atividades governamentais, a probidade, a responsabilidade dos governos na gestão pública, o respeito aos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa."
A transcrição das normas supra citadas demonstra que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos busca dar grande alcance à liberdade de expressão e cercá- la com as maiores garantias. Conforme já se afirmou: "numa perspectiva comparada [...] o marco interamericano foi desenhado para ser mais generoso, e para reduzir ao mínimo as restrições à livre expressão dentro das sociedades do continente" (CIDH - COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre o direito à liberdade de expressão, Versão em Português, maio de 2014, p. 2).
No âmbito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, ao declarar os dispositivos da antiga lei de imprensa como não recepcionados pela Constituição de 1988, teve a oportunidade de afirmar que "o artigo 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. A liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa. Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilidade ou consequência do pleno gozo das primeiras" (APDF 130/DF, Rel. Ministro Carlos Ayres Britto, j. 30/04/2009).
Daí afirmar-se que a liberdade de expressão exerce, ao menos, três funções essenciais nos sistemas democráticos.
Inicialmente, trata-se de direito que reflete um dos atributos mais essenciais dos seres humanos enquanto tais: o de pensar o mundo a partir de sua própria perspectiva e assim construir sua realidade por intermédio de processos comunicativos. Hannah Arendt, em “A Condição Humana”, já afirmava que ação e discurso - elementos essenciais da liberdade de expressão - são atributos intrínsecos à humanidade. Para a autora, "a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns para os outros, certamente não como objetos físicos, mas qua homens. [...] É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original" (ARENDT, 2015, p. 219).
Em segundo lugar, a liberdade de expressão é elemento constitutivo da democracia. Não há regime democrático sem liberdade de expressão. Para Konrad Hesse: "Sem a liberdade de manifestação de opinião e liberdade de informação (...) o desenvolvimento de iniciativas e alternativas pluralistas, assim como ‘formação preliminar da vontade política’ não são possíveis, publicidade da vida política não pode haver, a oportunidade igual das minorias não está assegurada com eficácia e vida política em um processo livre e aberto não se pode desenvolver. Liberdade de opinião é, por causa disso, para a ordem democrática da Lei Fundamental 'simplesmente constitutiva'” (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 302/303).
Por fim, a importância da liberdade de expressão decorre de seu caráter viabilizador do exercício dos demais direitos fundamentais. Por intermédio da liberdade de expressão é que se possibilita o exercício da liberdade religiosa, da liberdade de associação, do acesso à educação e à cultura, à formação da opinião pública, à participação política de forma qualificada, entre outros direitos fundamentais.
Nas palavras da Corte Interamericana de Direitos Humanos, "a plena e livre discussão evita que se paralise uma sociedade e a prepara para lidar com as tensões e fricções que destroem as civilizações. Uma sociedade livre, hoje e amanhã, é aquela que possa manter abertamente um debate público e rigoroso sobre si mesma" (CIDH, Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev. 17 de fevereiro de 1995).
A liberdade de expressão no cotejo com discursos críticos sobre funcionários públicos no exercício de suas funções
A democracia implica no controle - seja por órgãos técnicos inseridos na estrutura do Estado, seja por meio da opinião pública - da administração pública e de seus atos. Nessa perspectiva, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa atuam como impulsionadores da transparência das atividades do Estado, com a consequente responsabilidade dos agentes públicos. A participação da cidadania, não apenas através de eleições regulares, mas por intermédio do acompanhamento atento das decisões que impactam o conjunto da sociedade, somente é possível num ambiente em que a liberdade de expressão e de imprensa sejam as mais amplas possíveis, notadamente no que tange aos temas que envolvem o trato da coisa pública e os agentes estatais.
Nesse sentido, o discurso crítico à atuação dos agentes públicos deve gozar de maior espectro de proteção, no cotejo com outras formas de discurso, em especial, no que diz respeito à imprensa.
Respeitadas as diferenças de cultura jurídica, não é demasiado citar o precedente New York Times vs. Sullivan, no qual a Suprema Corte estadunidense afirmou que "nenhum servidor público ou ocupante de cargo público pode ganhar uma ação contra a imprensa, a menos que prove não só que a acusação feita contra ele era falsa e nociva, mas também que o órgão de imprensa fez essa acusão com 'malícia efetiva' - que os jornalistas não só foram descuidados ou negligentes ao fazer as pesquisas para a reportagem, mas que também a publicaram sabendo que ela era falsa ou com 'temerária desconsideração' (reckless disregard) pela veracidade ou falsidade das informações ali contidas" (DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 311). O efeito prático dessa decisão foi o de impor um ônus da prova aos funcionários públicos praticamente impossível de ser suprido, o que levou Dworkin a qualificar a decisão como "realmente extraordinária" pelo fato de permitir "que a imprensa norte-americana desempenhasse com mais confiança seu papel de proteger a democracia - mais do que a imprensa de qualquer outro lugar do mundo (DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 342).
Conforme pontifica a Corte Interamericana de Direitos Humanos: "o tipo de debate político a que dá lugar o direito à liberdade de expressão e informação gerará, indubitavelmente, certos discursos críticos ou inclusive ofensivos para quem ocupa cargos públicos ou está intimamente vinculado à formulação da política pública" (CIDH, Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev. 17 de fevereiro de 1995). Isso não quer dizer que os funcionários públicos não podem ter sua honra protegida pelo direito, mas tal proteção deve dar-se de acordo com os princípios do pluralismo democrático (v.g. Corte I.D.H., Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica. Sentença de 2 de julho de 2004. Série C, n. 107, § 128).
A não recepção das normas penais que criminalizam o discurso crítico a funcionários públicos pela Constituição Federal de 1988
No Relatório produzido pela Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos do ano de 2002, a Comissão manifestou a incompatibilidade das denominadas "leis de desacato" contra o artigo 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O argumento central é que o uso do direito penal para sancionar expressões dirigidas contra funcionários públicos atuam como um "meio de silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas" (CIDH, Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev. 17 de fevereiro de 1995).
A CIDH considerou, da mesma forma, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em completo antagonismo com o princípio democrático e republicano, que sujeita o governo e a administração a controle popular para conter eventuais abusos de seus poderes coercitivos (CIDH, Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev. 17 de fevereiro de 1995).
Os mesmos argumentos são válidos no que diz respeito aos tipos penais que dispõem sobre difamação, injúria e calúnia, quando vinculados a fatos imputáveis a funcionários públicos no exercício de suas funções. A CIDH, no referido relatório, considerou que o uso de tais leis penais para silenciar as opiniões críticas é tão grande nestes casos, como no caso das leis de desacato. Em suas palavras:
Na arena político em particular, o limiar para a intervenção do Estado a respeito da liberdade de expressão é necessariamente mais alto devido à função crítica do diálogo político em uma sociedade democrática. A Convenção requer que este limiar se incremente, mais ainda, quando o Estado impor o poder coativo do sistema da justiça penal para restringir a liberdade de expressão. Por isso, caso consideremos as conseqüências das sanções penais e o efeito inevitavelmente inibidor que têm para a liberdade de expressão, a punição de qualquer tipo de expressão só pode ser aplicada em circunstâncias excepcionais nas quais exista uma ameaça evidente e direta de violência anárquica (CIDH, Relatório Anual 2002. Capítulo V: Leis de desacato e difamação criminal, item 17).
Dessa forma, o integral respeito à liberdade de expressão, num ambiente democrático, deve assegurar que jornalistas e formadores de opinião exerçam sua liberdade de investigar e publicar sem medo de represálias, assédios ou vinganças, o que inclui o uso da legislação penal que sanciona a calúnia, a difamação e a injúria, no que diz respeito a fatos vinculados ao exercício da função pública.
Com isso, não se quer dizer que os servidores públicos não tenham direito à tutela de sua honra. O que se afirma é que a sanção penal direcionada contra expressões que dizem respeito a interesses públicos, vulnera, a um só tempo, o artigo 13.2 da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, o artigo 5º, IV da Constituição Federal e o artigo 220 da Constituição Federal, com a interpretação que lhe emprestou o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130.
A criminalização do discurso crítico à atuação de agentes públicos como ofensa à proporcionalidade em matéria penal
A CIDH também considerou que a utilização do direito penal para sancionar o discurso de "desacato" fere o princípio da proporcionalidade, pois existem outros meios menos gravosos mediante os quais o governo e seus agentes podem defender sua reputação frente a ataques supostamente infundados, seja através de réplicas através dos meios de comunicação, seja através de reparações na esfera cível.
Juarez Cirino dos Santos ensina que o princípio da proporcionalidade, em matéria penal, "limita a criminalização primária às hipóteses de grave violações de direitos humanos - ou seja, exclui lesões insignificantes de bens jurídicos - e delimita a cominação de penas criminais conforme a natureza e extensão do dano social produzido pelo crime" (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal - parte geral, 8ª ed. Florianópolis: Ed. Tirant lo Blanch, 2018, p. 30).
Luciano Feldens, a seu turno, ao discorrer sobre a aplicação da proporcionalidade em matéria penal, destaca o importante papel atribuído ao Poder Judiciário na garantia dos espaços de liberdade assegurados pela Constituição. Em suas palavras: "É exatamente aqui que a Constituição - e já não mais a dogmática penal - cobra toda a sua força normativa, repassando a tarefa ao órgão incumbido de garanti-la: o Poder Judiciário ou, a depender do regime, o Tribunal Constitucional, ao qual caberá realizar o juízo de invalidação do produto legislativo em desconformidade à Constituição" (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal - a Constituição Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 132). Na mesma obra, o autor propõe que tal exame de proporcionalidade seja realizado mediante a construção de critérios escalonados, que permitam "melhor aferir (porque com menor grau de subjetivismo, e maior grau de precisão), quando estamos diante de uma intervenção legislativa ilegítima, isso porque: (i) não se revela apta à finalidade (de proteção) para a qual instituída (adequação), (ii) representa um sacrifício desnecessário ao direito afetado, considerando que o bem ou interesse protegido (finalidade da norma restritiva) poderia assim estar com a imposição de uma restrição de caráter extrapenal; (iii) a intensidade da restrição imposta ao direito afetado não corresponde, em proporção, e no caso concreto, à importância do fim objetivado pela norma, ou, de outro modo, quando as vantagens causadas pela promoção do fim não são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio" (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal - a Constituição Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 132/133).
O critério da adequação
Neste aspecto, o que se busca responder no exame da adequação é se a medida estatal utilizada é de fato adequada aos fins que ela persegue. "Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim, a partir de um juízo de prognose em que se consideram contrárias à Constituição apenas aquelas medidas legislativas (a) que se mostrem, desde o princípio, como inidôneas para alcançar o fim almejado pelo legislador, (b) em que o próprio fim almejado se revele, em si, legítimo" (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal - a Constituição Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 151).
As normas penais que criminalizam o discurso crítico aos agentes públicos por fatos relacionados ao exercício da função pública produzido pela imprensa podem, à primeira vista, parecer adequadas à finalidade de proteção da honra e da reputação destes agentes, afinal, trata-se de bens jurídicos protegidos constitucionalmente (artigo 5º, X, da Constituição Federal).
Todavia, a se considerar que a tutela penal acarreta, intrinsecamente a possibilidade do encarceramento, tal como nos casos de reincidência, v.g., é de se indagar se sanção de tal natureza é de fato adequada à finalidade de proteção dos bens jurídicos envolvidos e, igualmente de prevenção de condutas supostamente ofensivas à honra dos agentes públicos.
Quer nos parecer, quanto ao ponto, que o hipotético encarceramento de jornalistas e profissionais da imprensa por supostos abusos ou excessos não é medida adequada à finalidade de manutenção dos discursos produzidos pela imprensa em patamar de moderação na crítica à atuação dos agentes públicos. Ao contrário, a utilização das sanções penais pode servir como fator multiplicador dos discursos críticos pela imprensa, diante da indignação que tais excessos punitivos podem desencadear no meio jornalístico.
Ademais, a análise da adequação impõe considerar até que o ponto o resultado pretendido - a produção de um discurso mais moderado na crítica à atuação dos jornalistas e demais profissionais de imprensa - é de fato desejado, já que a criminalização de supostos excessos sempre poderá induzir a resultados diversos, quais sejam, o silenciamento, a intimidação e, no limite, a falha no cumprimento da missão do jornalismo que é o de informar aos cidadãos sobre fatos que dizem respeito ao interesse público, dada a insegurança na definição do que seria, substancialmente, um discurso moderadamente crítico.
Cabe, neste ponto, situar a presente análise no contexto dos países latino- americanos, trazendo ao debate o conceito de cultura do silêncio de Paulo Freire (Ação cultural para a liberdade. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1981), para quem "a sociedade dependente é por definição uma sociedade silenciosa. Sua voz não é autêntica, mas apenas um eco da voz da metrópole".
A partir do conceito de cultura do silêncio de FREIRE, o professor da Universidade de Brasília Venício de Lima destaca que "a cultura do silêncio (...) caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferece ‘comunicados’, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade" (LIMA, Venício A. de. Cultura do silêncio e democracia no Brasil. Ensaios em defesa da liberdade de expressão (1980-2015). Brasília: Editora da UNB, 2015).
Desta forma, quer pelo fato de não "entregar o que promete", ou seja, não ser medida idônea para induzir à moderação nos discursos jornalísticos de crítica à atuação dos agentes públicos pela ameaça de prisão, quer por não produzir um resultado socialmente desejável numa sociedade democrática, conclui-se que a criminalização dos discursos críticos à atuação de agentes públicos pela imprensa, por intermédio dos crimes de calúnia, difamação e injúria, previsto nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, com a causa de aumento de pena do artigo 141, II do Código Penal, não são medidas adequadas ou idôneas para a tutela do bem jurídico honra dos agentes públicos.
Prosseguindo na análise da proporcionalidade das medidas penais em debate, impende analisar o critério da necessidade, vale dizer, se a finalidade de proteção do bem jurídico poderia ser alcançada com a imposição de uma restrição de caráter extrapenal.
Quanto ao ponto a resposta é positiva e remete ao exame do caráter subsidiário e fragmentário do próprio direito penal.
O critério da necessidade: a ofensa aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal
Ao se considerar que o direito penal é o meio estatal de intervenção mais gravoso na esfera de liberdade da pessoas, é preciso considerar seu caráter necessariamente subsidiário na tutela dos bens jurídicos tidos por relevantes em dado contexto social. Disso resulta igualmente, seu caráter fragmentário.
Nas palavras de Cezar Bittencourt, "a fragmentariedade do Direito Penal é corolário do princípio da intervenção mínima e da reserva legal. [...] Ora, este ramo da ciência jurídica protege tão somente valores imprescindíveis para a sociedade. Não se pode utilizar o Direito Penal como instrumento de tutela de todos os bens jurídicos. E neste âmbito, surge a necessidade de se encontrar limites ao legislador penal" (BITTENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal, vol. 1, 22ª ed. São Paulo: 2016, p. 55).
Tal diretriz, aplicada ao exame da necessidade da tutela penal, em sede de controle de proporcionalidade, induz à conclusão de que "o Direito Penal não será um meio necessário a fazer-lhe frente se a lesão, real ou potencial, a determinado bem jurídico, pode ser evitada, com
Poder Judiciário JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária de Santa Catarina 7ª Vara Federal de Florianópolis
semelhante eficácia, mediante a utilização de outras medidas menos invasivas, predispostas pelo ordenamento para alcançar o mesmo fim" (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal - a Constituição Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 153).
No caso em exame, ao se admitir o uso do direito penal para sancionar o discurso crítico à atuação de agentes públicos no exercício de suas funções, quando existentes mecanismos extrapenais de maior eficácia e menor custo social para a democracia, também se estará vulnerando o princípio da proporcionalidade, em sua vertente da necessidade, que pode ser desdobrada nos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal.
O direito brasileiro fornece mecanismos extrapenais de tutela da honra, seja através das ações civis de reparação, seja através de mecanismos jurisdicionais inibitórios, tais como aqueles contidos no artigo 20 do Código Civil e no artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
Além da existência de mecanismos extrapenais aptos à tutela da honra, impõe-se aqui, novamente, a consideração dos demais aspectos que tal restrição da liberdade de informar da imprensa envolvem, necessariamente.
Nessa perspectiva, a se considerar que o discurso crítico a agentes públicos envolve temas essenciais para a robustez do debate público, formador da opinião pública qualificada e que a tutela da honra dos servidores públicos pode ser garantida de forma menos gravosa, resulta inafastável a vulneração do princípio da proporcionalidade nas normas que criminalizam a calúnia, a difamação e a injúria, quando os fatos dizem respeito à atuação de agente público exercício da função pública.
Nos dizeres da CIDH:
A Comissão considera que a obrigação do Estado de proteger os Direitos dos demais se cumpre estabelecendo uma proteção estatutária contra os ataques intencionais à honra e à reputação, mediante ações civis e promulgando leis que garantam o direito de retificação ou resposta. Neste sentido, o Estado garante a proteção da vida privada de todos os indivíduos sem fazer um uso abusivo de seus poderes de coação para reprimir a liberdade individual de se formar opinião e expressá-la. (CIDH, Relatório Anual 2002. Capítulo V: Leis de desacato e difamação criminal, item 17).
A honra dos agentes públicos é, sem dúvida, um bem jurídico relevante. Todavia, se sua tutela penal deve se dar à custa do sacrifício da amplitude do debate público, da transparência e da participação cidadã, inerentes ao controle popular que define os regimes democráticos, é trivial que tal tutela deve ceder lugar a outras formas, mais aderentes ao interesse de toda a sociedade e não de apenas uma parcela de cidadãos.
Proporcionalidade em sentido estrito
De acordo com este critério, examina-se se a medida não se revela desproporcional, em concreto, em relação ao fim perseguido. "A proporcionalidade em sentido estrito, pois, estaria a exigir um juízo concreto de ponderação, havendo de verificar-se a partir da constatação de que a gravidade da intervenção e suas razoes justificadoras devem estar em adequada proporção" (FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal - a Constituição Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2008, p. 158).
No caso concreto, sem exaurir o exame trifásico de fixação da pena de forma prematura, é preciso considerar, para fins de análise da proporcionalidade da sanção, a hipótese de integral procedência da ação penal. Dessa forma, em que pese a inexistência de indicação precisa de quais condutas seriam caluniosas e quais seriam difamatórias, a eventual condenação poderia resultar na fixação de penas relativas a seis crimes de difamação (artigo 139 do Código Penal), em concurso material, somada a mais um crime de calúnia (artigo 138, § 1º do Código Penal), todas sujeitas a causa de aumento de pena do artigo 141, II do Código Penal, o que, em tese, poderia resultar numa pena que gravitaria no patamar de 02 anos e 08 meses a 3 anos de detenção, além da reparação civil postulada em R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Tal sanção criminal, para uma conduta praticada sem violência contra a pessoa, nem uso de meios artificiosos ou fraudulentos e sem exposição de pessoas a perigo em sua vida, saúde, liberdade ou dignidade, revela-se desproporcional em sentido estrito.
Sem entrar no mérito do grau de sofrimento psíquico e dos demais danos sofridos pelo Querelante, em razão da aludida publicação e que, por certo terão na esfera cível um debate mais amplo e adequado, o fato é que a sanção penal de encarceramento de até 3 anos, ao mesmo tempo em que não tem como fim precípuo reparações de ordem privada, sequer repararia adequadamente tais danos, revelando-se, além de inadequada e desnecessária, inequivocamente desproporcional aos fins que persegue.
Precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Diversas decisões da CIDH e da Corte Interamericana exemplificam o tipo de discurso crítico aos agentes públicos que devem receber proteção reforçada.
No caso Palamara Iribarne vc. Chile a Corte criticou decisão da justiça militar chilena que houvera condenado Palamara por desacato, em razão de declarações críticas que fez contra funcionários da justiça penal militar que moviam um processo contra ele. A Corte asseverou que era "lógico e apropriado que as expressões concernentes a funcionários públicos ou outras pessoas que exercem funções de natureza pública gozem, nos termos do artigo 13.2 da Convenção [Americana], de uma maior proteção que permita uma margem de abertura para um debate amplo, essencial para o funcionamento de um sistema verdadeiramente democrático" (Corte I.D.H., Caso Palamara Iribarne vs. Chile, sentença de 22 de novembro de 2005, série C, nº 135, § 83).
Em sentido análogo, o caso Herrera Ulloa vc. Costa Rica, no qual estava em debate a reprodução em um diário local de certas afirmações publicada na imprensa europeia, que comprometiam um alto funcionário público costa-riquenho destacado na Bélgica. No precedente, a Corte explicitou que "é lógico e apropriado que as expressões que dizem respeito a funcionários públicos ou a outras pessoas que exercem funções de natureza pública devem gozer, nos termos do artigo 13.2 da Convenção [Americana] de uma margem de abertura a um debate amplo a respeito de assuntos de interesse público, que é essencial para o funcionamento de um sistema verdadeiramente democrático. Isso não significa, de modo algum, que a honra dos funcionários públicos ou das pessoas públicas não deva ser juridicamente protegida, e sim que ela deve sê-lo em conformidade com os princípios do pluralismo democrático" (Corte I.D.H., Caso Herrera Ulloa vc. Costa Rica, sentença de 2 de julho de 2004, série C, nº 107, 128).
No caso Ricardo Canese vs. Paraguai, a Corte se pronunciou sobre a condenação de Ricardo Canese, um candidato presidencial na disputa eleitora paraguaia de 1992, por delito de difamação como consequência de afirmações de que seu concorrente teria sido testa de ferro da família ao antigo ditador Stroessner e representado de forma oculta seus interesses econômicos em um consórcio que participou da construção e desenvolvimento do Complexo Hidrelétrico de Itaipu. A Corte, após ressaltar a crucial importância da liberdade de expressão, concluiu que havia ocorrido uma violação da liberdade de expressão de Canese, notadamente no período eleitoral, "circunstância na qual as opiniões e críticas são externadas de uma maneira mais aberta, intensa e dinâmica, de acordo com os princípios do pluralismo democrático", razão pela qual "aquele que julga devia ponderar o respeito aos direitos ou à reputação dos demais com o valor que o debate aberto sobre temas de interesse ou preocupação pública tem em uma sociedade democrática (Corte I.D.H, Caso Ricardo Canese vs. Paraguai, sentença de 31 de agosto de 2004. Série C, nº 111. § 105).
Vale citar, ainda os casos Kimmel vs. Argentina (Corte I.D.H., sentença de 2 de maio de 2008, série C, nº 177), em que estavam em debate críticas endereçadas a um magistrado e Tristán Donoso vs. Panamá (Corte I.D.H., exceção preliminar, mérito, reparações e custas. sentença de 27 de janeiro de 2009, série C, nº 193, § 115), que envolvia críticas à atuação de um advogado público.
Precedentes das Cortes brasileiras
Além do já citado julgamento da ADPF 130, no qual o Supremo Tribunal Federal declarou a não recepção dos dispositivos da antiga "Lei de Imprensa", a liberdade de imprensa tem sido prestigiada em uma série de pronunciamentos das Cortes Superiores brasileiras.
Nesse sentido, o recente julgado do Supremo Tribunal Federal, citado a título
ilustrativo:
E M E N T A: RECLAMAÇÃO – ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO À AUTORIDADE DO JULGAMENTO PLENÁRIO DA ADPF 130/DF – EFICÁCIA VINCULANTE DESSA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – POSSIBILIDADE DE CONTROLE, MEDIANTE RECLAMAÇÃO, DE ATOS QUE TENHAM TRANSGREDIDO TAL JULGAMENTO – LEGITIMIDADE ATIVA DE TERCEIROS QUE NÃO INTERVIERAM NO PROCESSO DE FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA – LIBERDADE DE EXPRESSÃO – JORNALISMO DIGITAL (“BLOG”) – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL – DIREITO DE INFORMAR: PRERROGATIVA FUNDAMENTAL QUE SE COMPREENDE NA LIBERDADE CONSTITUCIONAL DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E DE COMUNICAÇÃO – A DECLARAÇÃO DE CHAPULTEPEC (1994) – JORNALISTAS – DIREITO DE CRÍTICA – PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL CUJO SUPORTE LEGITIMADOR REPOUSA NO PLURALISMO POLÍTICO (CF, ART. 1º, V), QUE REPRESENTA UM DOS FUNDAMENTOS INERENTES AO REGIME DEMOCRÁTICO – O EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÍTICA INSPIRADO POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO: UMA PRÁTICA INESTIMÁVEL DE LIBERDADE A SER PRESERVADA CONTRA ENSAIOS AUTORITÁRIOS DE REPRESSÃO PENAL E/OU CIVIL – A CRÍTICA JORNALÍSTICA E AS FIGURAS PÚBLICAS – A ARENA POLÍTICA: UM ESPAÇO DE DISSENSO POR EXCELÊNCIA (RTJ 200/277, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – INADMISSIBILIDADE DE CENSURA ESTATAL, INCLUSIVE DAQUELA IMPOSTA, PELO PODER JUDICIÁRIO, À LIBERDADE DE EXPRESSÃO, NESTA COMPREENDIDA A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA E DE CRÍTICA – TEMA EFETIVAMENTE VERSADO NA ADPF 130/DF, CUJO JULGAMENTO FOI INVOCADO, DE MODO INTEIRAMENTE PERTINENTE, COMO PARÂMETRO DE
CONFRONTO – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. – A liberdade de imprensa, qualificada por sua natureza essencialmente constitucional, assegura aos profissionais de comunicação social, inclusive àqueles que praticam o jornalismo digital, o direito de opinar, de criticar (ainda que de modo veemente), de buscar, de receber e de transmitir informações e ideias por quaisquer meios, ressalvada, no entanto, a possibilidade de intervenção judicial – necessariamente “a posteriori” – nos casos em que se registrar prática abusiva dessa prerrogativa de ordem jurídica, inocorrente na espécie, resguardado, sempre, o sigilo da fonte quando, a critério do próprio jornalista, este assim o julgar necessário ao seu exercício profissional. Precedentes. – Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de manifestação do pensamento e de imprensa cujo exercício – por não constituir concessão do Estado – configura direito inalienável e privilégio inestimável de todos os cidadãos. “Uma imprensa livre é condição fundamental para que as sociedades resolvam seus conflitos, promovam o bem-estar e protejam sua liberdade” (Declaração de Chapultepec). – A prerrogativa do jornalista de preservar o sigilo da fonte (e de não sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, em razão da prática legítima dessa franquia outorgada pela própria Constituição da República), oponível, por isso mesmo, a qualquer pessoa, inclusive aos agentes, autoridades e órgãos do Estado, qualifica-se como verdadeira garantia institucional destinada a assegurar o exercício do direito fundamental de livremente buscar e transmitir informações. Doutrina. Precedentes (Inq 870/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – Rcl 21.504-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO). – A crítica que os meios de comunicação social e as redes digitais dirigem às pessoas públicas, por mais dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade. – Não induz responsabilidade civil, nem autoriza a imposição de multa cominatória ou “astreinte” (Rcl 11.292-MC/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – Rcl 16.434/ES, Rel. Min. ROSA WEBER – Rcl 18.638/CE, Rel. Min.
ROBERTO BARROSO – Rcl 20.985/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública – investida, ou não, de autoridade governamental –, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender. Jurisprudência. Doutrina. – O Supremo Tribunal Federal tem destacado, de modo singular, em seu magistério jurisprudencial, a necessidade de preservar-se a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, por tratar-se de prerrogativa essencial que se qualifica como um dos suportes axiológicos que conferem legitimação material à própria concepção do regime democrático. – Mostra-se incompatível com o pluralismo de ideias, que legitima a divergência de opiniões, a visão daqueles que pretendem negar aos meios de comunicação social (e aos seus profissionais) o direito de buscar e de interpretar as informações, bem assim a prerrogativa de expender as críticas pertinentes. Arbitrária, desse modo, e inconciliável com a proteção constitucional da informação a repressão, ainda que civil, à crítica jornalística, pois o Estado – inclusive seus Juízes e Tribunais – não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais da Imprensa. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (AI 705.630-AgR/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Jurisprudência comparada (Corte Europeia de Direitos Humanos e Tribunal Constitucional Espanhol).
(Rcl 15243 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-221 DIVULG 10-10-2019 PUBLIC 11-10-2019)
Digno de nota, ainda, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça, no qual se resguardou o discurso crítico, divulgado por meio jornalístico, a autoridade pública:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. LEI DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO PELA CF/88. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. VEICULAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. CONTEÚDO OFENSIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. LIBERDADE DE IMPRENSA EXERCIDA DE MODO REGULAR, SEM ABUSOS OU EXCESSOS. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 186 e 927 DO CÓDIGO CIVIL.
Ação de compensação por danos morais ajuizada em 01.10.2004. Recurso especial concluso ao Gabinete em 22.09.2011.
Discussão relativa à potencialidade ofensiva de matéria publicada em jornal de grande circulação, que aponta possível envolvimento ilícito de magistrado com traficantes de drogas e consequente afastamento do cargo.
A contradição a que se refere o inc. I do art. 535 do CPC é a que se verifica dentro dos limites do julgado embargado (contradição interna), aquela que prejudica a racionalidade do acórdão, afetando-lhe a coerência, não se confundindo com a contrariedade da parte vencida com as respectivas conclusões.
Somente a partir do julgamento da ADPF 130/DF é que a invalidade da Lei de Imprensa foi declarada, ainda que com efeitos pretéritos.
Antes desse julgamento a Lei vinha sendo normalmente aplicada por todos, salvo quanto aos dispositivos cuja eficácia fora expressamente suspensa após a apreciação da medida liminar deferida na ADPF 130/DF.
Na hipótese, o recurso deve ser admitido, para que haja aplicação do direito à espécie, sendo possível a análise da controvérsia com fulcro no art. 159 do CC/16, vigente à época, sem que se configure qualquer desrespeito ao efeito vinculante do julgamento da ADPF 130/DF.
A liberdade de informação deve estar atenta ao dever de veracidade, pois a falsidade dos dados divulgados manipula em vez de formar a opinião pública, bem como ao interesse público, pois nem toda informação verdadeira é relevante para o convívio em
A honra e imagem dos cidadãos não são violados quando se divulgam informações verdadeiras e fidedignas a seu respeito e que, além disso, são do interesse público.
O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce
atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará.
Quando a reportagem foi veiculada, as investigações mencionadas estavam em andamento e a pena administrativa havia sido aplicada pelo TJ/SP.
A diligência que se deve exigir da imprensa, de verificar a informação antes de divulgá-la, não pode chegar ao ponto de que notícias não possam ser veiculadas se não forem utilizados os termos estritamente técnicos ou até que haja certeza plena e absoluta da sua veracidade. O processo de divulgação de informações satisfaz verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um procedimento judicial, no qual se exige cognição plena e exauriente acerca dos fatos analisados, bem como a sua exata qualificação jurídica.
Não houve, por conseguinte, ilicitude na conduta do recorrido, devendo ser mantida a improcedência do pedido de compensação por danos
Recurso especial desprovido.
(REsp 1269841/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 25/10/2013)
Dispositivo
Dessa forma, por entender que os crimes previstos no artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, quando invocados para sancionar penalmente o discurso crítico a agentes públicos em razão do exercício de sua função, além de ofender os postulados da proporcionalidade, em seus critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, bem como o princípio da fragmentaridade do direito penal, não foram recepcionados pelos artigos 5º, IV da Constituição Federal, pelo artigo 220 da Constituição Federal, com a interpretação que lhe deu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 130 e pelo artigo 13.2 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, por força do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal, tenho que a rejeição de presente queixa-crime é medida que impõe.
Por tais fundamentos, REJEITO a presente queixa-crime.
Cancelo a audiência designada, devendo-se comunicar às partes com urgência. Após as cautelas legais, dê-se baixa e arquivem-se.
Documento eletrônico assinado por CLAUDIA MARIA DADICO, Juíza Federal na Titularidade Plena, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 720005768814v63 e do código CRC 18109d04.
Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): CLAUDIA MARIA DADICO Data e Hora: 4/3/2020, às 10:39:46
Segue documento na íntegra: DECISÃO_Rejeição_de_queixa_crime_jornalistas_livres_SC.pdf