SENTENÇA
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia em face de omissis imputando-lhe a prática da conduta tipificada no artigo 16 da Lei 10826/2003, narrando as alegações contidas na peça inicial de fls. 02/02A, que veio instruída pelos autos de Inquérito Policial instaurado por força de prisão em flagrante acostado às fls. 02B/40, onde consta de mais relevante o auto de apreensão de fl. 17, a Folha de Antecedentes Criminais de fls. 29/32 e a audiência de custódia de fls. 33/34 na qual foi concedida liberdade provisória à custodiada.
Sentença às fls. 42/47 absolvendo sumariamente a acusada.
Inconformado, o Ministério Público interpôs apelação à fl. 48, apresentando suas razões conforme fls. 49/62.
Laudo de exame de arma de fogo e munições às fls. 65/66.
Defesa Prévia às fls. 66/67.
Contrarrazões da defesa às fls. 71/81.
Acórdão proferido pela 3a Câmara Criminal às fls. 126/129 dando provimento ao recurso ministerial a fim de imprimir prosseguimento ao feito com o recebimento da denúncia.
Decisão de fl. 149 determinando a citação da denunciada considerando o recebimento da denúncia pelo segundo grau.
Citação regular à fl. 159.
Petição da defesa à fls. 162 justificando o descumprimento das cautelares fixadas, acompanhada da documentação de fls. 163/167.
Nova Folha de Antecedentes Criminais às fls. 170/175 com esclarecimentos de anotações às fls. 179/184.
Resposta à acusação à fl. 197.
Decisão de recebimento da denúncia na fase do artigo 399 do Código de Processo Penal à fl. 199.
Audiência de instrução e julgamento à fl. 266 quando não compareceu a acusada, sendo decretada sua revelia.
Nova Audiência de Instrução e Julgamento à fl. 277 quando foram ouvidas duas testemunhas arroladas pela acusação (fls. 278/279), conforme termos em apartado, em depoimentos gravados mediante registro audiovisual digital cuja mídia segue acostada aos autos, insistindo o Ministério Público na oitiva de Rafael, requerendo sua condução.
Em uma última audiência de instrução e julgamento às fls. 283/284 foi ouvida uma testemunha arrolada pela acusação, conforme termos em apartado, em depoimento gravado mediante registro audiovisual digital, informando a defesa não dispor de prova oral a produzir, ficando prejudicado o interrogatório por conta da revelia. Pelo Ministério Público foi requerida a atualização da FAC, enquanto nada foi requerido pela defesa nesta fase.
Folhas de Antecedentes Criminais atualizadas às fls. 288/293 e 313/318, com esclarecimentos de anotações às fls. 297/307, 319 e 322/324.
Alegações finais pelo Ministério Público às fls. 330/337 requerendo seja julgada procedente a pretensão punitiva estatal nos termos da denúncia, com a consequente condenação da acusada.
Alegações finais pela defesa da acusada às fls. 342/349 requerendo a absolvição na forma do artigo 386, III do Código de Processo Penal. Subsidiariamente, requer a estipulação da pena básica no mínimo legal com fixação de regime inicial aberto, substituindo-se a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Feito breve relatório, DECIDO:
A sustentação defensiva contida no item primeiro das alegações finais de fls. 342/349 não merece prosperar. Apesar de comungar este magistrado em gênero, número e grau de idêntico posicionamento e, assim, resguardada esta posição pessoal, fato é que o tema foi objeto da sentença de fls. 42/47 que absolveu sumariamente a denunciada pelo mesmo motivo a qual, entretanto, foi reformada pelo aresto de fls. 126/129, logo, inviável o acolhimento da pretensão defensiva sob pena de incidir este Juízo em violação a entendimento sufragado por instância superior dentro deste mesmo processo.
Posto isso, temos que merece desacolhimento – desta feita – a pretensão acusatória estatal, a importar na absolvição da acusada.
Analisando mais detidamente o feito com o objetivo de prolatar sentença, verifico que o Laudo de Exame de Munições acostado às fls. 65/66 não é concludente acerca da potencialidade lesiva dos projéteis apreendidos.
De fato, quanto aos dois projéteis percutidos e não deflagrados afirmam os peritos que “não descartam a possibilidade dos mesmos sofrerem deflagração” (fl. 66 - grifei), enquanto com relação ao único projétil apreendido não percutido afirma o laudo: “possui virtual capacidade de sofrer deflagração” (fl. 65 verso).
Os termos inconclusivos da perícia decorrem do fato de que, como informado pelos experts à fl. 65 verso, “não foi enviado a exame arma de fogo por meio da presente requisição”, o que impediu o teste de deflagração dos projéteis – que, vale lembrar, agora são de uso permitido e não mais proibido, graças ao atual Governo Federal...
Pois bem: algo que possui “virtual” capacidade de deflagração também possui “virtual” incapacidade de deflagração. Da mesma forma, algo de que “não se descarta” a possibilidade de deflagração também não pode ensejar que se “descarte” a impossibilidade de deflagração – e aqui perdoem-nos o truísmo, indispensável no contexto, todavia.
Pelo que se percebe, portanto, há dúvida mais que razoável gerada pela perícia trazida ao feito no que toca à potencialidade lesiva dos projéteis e, assim, acerca da tipicidade da conduta imputada pela inicial e ratificada em alegações finais pelo Ministério Público.
Cabe lembrar que o ônus da prova no que tange às imputações contidas na denúncia compete à acusação. Neste sentido o posicionamento adotado por Aury Lopes Júnior:
A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu (e muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução (direito de silêncio - nemo tenetur se detegere). FERRAJOLI esclarece que a acusação tem a carga de descobrir hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer com contra- hipóteses e contraprovas. O juiz, que deve ter por hábito profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver provada e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não restar suficientemente provada. É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. 1
Por outro lado, se a parte autora se dá por satisfeita com a comprovação feita nos autos acerca de determinada matéria, proferindo sem qualquer ressalva suas alegações finais, não compete ao Poder Judiciário, mormente após a edição da Carta de 1988 (a tornar já desde então de duvidosa constitucionalidade a atual redação do artigo 156 e incisos, do Código de Processo Penal2), arrogar-se à função de parte para suprir a atividade probatória, desequilibrando o atuar das partes, fazendo tábula rasa da divisão do ônus probatório e, pior, contribuindo ativamente para o afastamento da presunção constitucional de inocência.
Neste sentido a preci(o)sa lição de Geraldo Prado:
(...) quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador. Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão da acusação, ao qual, nestas circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo aqui igualmente se verificará, na medida em que o juiz se fundamentará normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao feito, por considerar importantes para o deslinde da questão, o que o afastará da desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus
1 Lopes Jr., Aury; Direito Processual Penal, Ed. Saraiva, 11a edição, 2014, pág. 562. 2 “Um juiz que detenha a gestão da prova não presume que o réu seja inocente, como determina a Constituição e, assim, não há como restar afastada a conclusão a respeito da inconstitucionalidade das posturas probatórias de ofício na forma como resultou a nova redação do artigo 156 do CPP, mais consentânea com uma formatação inquisitória e antidemocrática de processo”. Castanho de Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti, e Depaoli, Solon Bittencourt, Por que o juiz não deve produzir provas – a nova redação do artigo 156 do CPP, in Boletim IBCCRIM, ano 16, no 190, Setembro/2008, pág. 06
interesses contrapostos, posição esta apta a permitir a melhor ponderação e conclusão”3
Complementa esta lição o ensinamento de Natalie Ribeiro Pletsch:
Menos que um juiz ator que colabore com a produção de provas, as partes precisam de um juiz imparcial capaz de lhes conferir tratamento paritário, o que só é possível quando permanece inerte. Quando o juiz é atuante, o resultado do jogo é definido antes que as jogadas sejam feitas. É o que alerta Jacinto Coutinho quando refere que "mais importante, contudo, ao sistema acusatório - é bom que se diga desde logo - é que da maneira como foi estruturado não deixa muito espaço para que o juiz desenvolva aquilo que Cordero, com razão, chamou de 'quadro mental paranóico', em face de não ser, por excelência, o gestor da prova, pois, quando o é, tem, quase que por definição, a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a 'sua versão', isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.4
Saliento que toda a reforma do processo penal mais recente, decorrente do chamado Pacote Anticrime, caminhou no sentido do quanto aqui firmado, ou seja, ratificando que a inércia do juiz é fator capital dentro de um processo penal que se pretenda acusatório e democrático, valendo salientar o que dita o novel artigo 3o-A do Código de Processo Penal: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” – o que, inclusive, revogou tacitamente o acima mencionado artigo 156 deste mesmo ordenamento, na parte em que estatui: “(...) sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
Neste sentido vale mencionar, por derradeiro, a lição de Marcos Paulo Dutra Santos, Defensor Público titular perante este Juízo,
3 Prado, Geraldo L.M.; Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis penais, Ed. Lumen Juris, 3a edição, 2005, pág. 136. 4 Pletsch, Natalie Ribeiro; Formação da Prova no Jogo Processual Penal, IBCCRIM, 1a edição, 2007, pág. 70.
para quem tive a honra de prefaciar sua mais recente obra, Comentários ao Pacote “Anticrime”, no prelo (grifos no original):
A inovação legislativa compele o STJ e o STF a darem uma guinada de 180o na jurisprudência, até então simpática à atuação probatória oficiosa do juiz em busca da (utópica) verdade material72. Inegavelmente haverá resistência à tamanha depuração, pautada na interpretação isolada dos dispositivos que autorizam a atuação oficiosa do juiz conjugada ao princípio da especialidade, ponderando que o art. 3o-A do CPP estabeleceu uma diretriz geral, sem prejuízo das exceções previstas em lei, desprezando a intepretação sistemática e a mens legis da reforma - o citado art. 3o-A não se referiu ao CPP, mas ao processo penal brasileiro como um todo. Não atuar de ofício importa decréscimo de poder, quadra que, naturalmente, incomoda, e muito, vários segmentos da magistratura nacional, especialmente entre os que se veem como justiceiros ou guardiões da sociedade, tudo que não se espera de um magistrado, em resguardo da imparcialidade. 5
Por todo o exposto e devidamente fundamentado, julgo totalmente improcedente o pedido deduzido na inicial para absolver, como de fato absolvo omissis quanto à acusação de prática da conduta tipificada no artigo 16 da Lei 10826/2003, na forma do inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem custas.
Vista ao Ministério Público.
Intime-se a acusada por edital com prazo de trinta dias sobre os termos desta sentença e, transcorrido o prazo, abra-se nova vista à Defensoria Pública.
Transitada em julgado, comunique-se, anote-se, dê-se baixa, oficie-se determinando a inutilização das munições apreendidas e, tudo feito, arquive-se.
Rio de Janeiro, 9 de julho de 2020.
MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO
JUIZ DE DIREITO
5 Santos, Marcos Paulo Dutra; Comentários ao Pacote “Anticrime”, no prelo.