PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 6ª REGIÃO 21ª VARA DO TRABALHO DO RECIFE
AVENIDA MARECHAL MASCARENHAS DE MORAIS, 4631, IMBIRIBEIRA, RECIFE/PE - CEP: 51150-004
ACPCiv 0000597-15.2020.5.06.0021
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
RÉU: SARI MARIANA COSTA GASPAR, SERGIO HACKER CORTE REAL
Vistos etc.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, por meio da Procuradoria
Regional, propôs AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido de concessão de tutela provisória de urgência em face de SERGIO HACKER CORTE REAL e de SARI MARIANA COSTA GASPAR CORTE REAL, conforme fundamentos de fato e de direito indicados em sua petição de fls. 02/83 do PDF.
Aduz o
parquet que foi autuado procedimento investigatório a partir de notícia jornalística que relata acidente fatal ocorrido com o filho de uma empregada doméstica no local de trabalho de sua genitora, que desempenhava suas atividades, mesmo durante o período de quarentena, aliás, em ambiente com pessoas contaminadas pelo COVID. Adiciona que também havia notícia de a “empregadora exigir, aceitar ou tolerar os serviços da trabalhadora, mesmo com a necessidade daquela de levar seu filho ao trabalho, e, ainda assim, não adotar os deveres de cuidado e diligência em relação à proteção do menino de 5 anos sob sua guarda”.
Continuando sua peça, afirma que sobre os contratos de trabalho das trabalhadoras domésticas incidiu uma série de ilícitos que enumera, entre eles redução de seus salários, sem a formalização de qualquer acordo. Acrescenta que pelo extrato do cadastro previdenciário da Sra. Marta Maria Santana Alves foi verificado que manteve vínculo doméstico com o Sr. SERGIO HACKER CORTE REAL de junho de 2014 a fevereiro de 2017, sendo que a partir de fevereiro de 2017 passou a ter vínculo com o Município de Tamandaré. Entretanto, afirma, mesmo quando o vínculo empregatício estava formalizado com o Sr. SERGIO HACKER CORTE REAL, não houve recolhimento previdenciário referente às competências de 10-2015 a 02-2017, fato semelhante que ocorreu com Mirtes Renata Santana de Souza e Luciene Raimundo Neves.
Também argumenta que há uma discriminação estrutural que envolve as relações de trabalho doméstico, com “práticas, hábitos, situações e falas embutidos em nossos costumes e que promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito. É a naturalização da violência social, marcada pela estigmatização da pessoa e pela imposição de características negativas e de subalternidade”. Pretende, por fim, a decretação da indisponibilidade de bens dos Réus a fim de garantir quitação da indenização por dano moral coletivo, até o valor de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), a concessão de tutela de urgência nos termos do item ‘3’ do rol de pedidos e demais pleitos indicados no rol de fls. 74-78 do PDF.
Com a petição inicial, foram juntados documentos, inclusive cópia do inquérito civil.
Determinada a citação dos réus para se manifestarem sobre o pedido de tutela de urgência (despacho de fls. 482 do PDF), apresentaram impugnação às fls. 509/628 do PDF, juntando documentos.
Em sua resposta, os réus suscitaram as preliminares de inexistência de interesse ou direito difuso ou coletivo a ser tutelado; incompetência funcional do MPT; inadequação da via eleita; ilegitimidade do órgão ministerial; ausência de interesse de agir; incompetência da justiça do trabalho; cerceamento do direito de defesa, além de atacar do mérito da demanda.
Na decisão de fls. 612 do PDF, considerando a preliminar de cerceamento de direito de defesa do réu e da ré e, verificando que a petição inicial juntou documentos em sigilo, foi limitada a visibilidade às partes e seus patronos e devolvido o prazo ao réu e à ré.
Nova manifestação dos réus rés (fls. 616/617 do PDF).
Sobre as preliminares suscitadas, o órgão ministerial se pronunciou às fls. 618
/264.
É o que se tem a relatar. DECIDO
Registro, de logo, a perda do objeto em relação ao cerceamento do direito de defesa, questão suscitada na manifestação de fls. 509/543. Houve conhecimento da matéria e, em consequência, liberada a visibilidade dos documentos juntados em sigilo com a devolução do prazo para resposta.
No tocante às questões preliminares, por uma questão de lógica jurídico- processual, analisarei, inicialmente, aquelas relacionada à incompetência absoluta e, em seguida, as referentes aos pressupostos processuais e condições da ação.
As questões relativas à competência e condições da ação deverão ser analisadas a partir da narrativa desenvolvida na petição inicial, ou seja, de acordo com a causa de pedir e o pedido. Aplicação da teoria da asserção.
Nesse sentido, a jurisprudência uníssona das Cortes nacionais: “a legitimidade para a causa, segundo a teoria da asserção adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro para a verificação das condições da ação, é aferida conforme as afirmações feitas pelo autor na inicial” (STF, ARE 713211AgR, 1ª Turma, Relator, Min. Luiz Fux. J. 11/06/2013. P 25/06/2013.
O réu e a ré suscitam a incompetência desta Justiça Especializada para tratar de contrato de trabalho de natureza administrativa ao argumento de que os contratos de emprego das senhoras Mirtes Renata Santana de Souza e Marta Maria Santana Alves foram encerrados em 31/12/2016 e, com a eleição de Sérgio Hacker Côrte Real para o cargo de Prefeito, passaram a integrar o quadro de funcionários do Município de Tamandaré a partir de fevereiro de 2017.
Entretanto, analisando a petição inicial, observa-se que inexiste qualquer pedido relacionado ao contrato de natureza administrativa, o qual surge na narrativa, apenas de forma subjacente. Como se pode facilmente observar, o pedido e causa de pedir estão relacionados com proteção de interesses difusos em face de pretensos ilícitos trabalhistas.
Continuando sua peça, o réu e a ré suscitam a incompetência funcional do Ministério Público do Trabalho: “Considerando que não existe qualquer direito difuso ou coletivo em discussão no presente feito, é evidente que a Ação Civil Pública ajuizada pelo Parquet viola
expressamente a competência funcional do MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO,
estabelecida no artigo 83 da Lei Complementar nº 75/1993”
acordo com o original, inclusive destaques).
(fls. 517 do PDF, transcrito de Não há como confundir competência com ilegitimidade de parte. Argumentando, em abstrato, que a “conduta dos demandados envolve ilícitos civis, penais, administrativos e trabalhistas” e que “as terríveis consequências das ilicitudes praticadas pelos demandados abalaram a sociedade local, regional, nacional e mesmo internacional, levando, inclusive a manifestações populares” (fls. 59 do PDF), o órgão ministerial do trabalho demonstra competência ratione materiae.
Nesse sentido, os seguintes arestos colhidos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SENAC. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. EXTINÇÃO DA AÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNIDADE DO PARQUET. REMESSA DOS AUTOS À JUSTIÇA ESTADUAL. INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL.
(...)
O art. 127 da Constituição Federal dispõe o Ministério Publico como "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis", descrevendo como "princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional".
O princípio da unidade do Parquet exige a compreensão da instituição "Ministério Público" como um corpo uniforme, havendo apenas divisão em órgãos independentes (Ministério Público da União, que compreende o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Militar, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; e os Ministérios Públicos dos Estados) para a execução das competências institucionais previstas na legislação.
(...)
9. Não se confunde competência com legitimidade da parte. A definição do órgão judicante competente para processar e julgar a causa precede a análise de qual órgão ministerial deve atuar na Ação de Improbidade Administrativa. (...) (REsp 1412480/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/10/2018, DJe 23/11/2018).
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LICITAÇÃO. NULIDADE. PRETENSÃO DE REEXAME FÁTICO- PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA DO STJ. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DAS REGRAS DO DECRETO-LEI N. 2.300/1986.
(...)
- A partir dessa premissa inaugural, afasta-se, desde já, a alegação preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público.
- Primeiro, porque a Constituição Federal de 1988 é expressa ao dispor que o "Parquet é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". Fica clara, portanto, a missão constitucional do Ministério Público de proteção dos interesses sociais, dentre eles, da preservação do patrimônio público, ferramenta viabilizadora de um Estado Social e Democrático de Direito.
- Segundo, porque a Lei n. 7.347/1985, aplicável segundo a lógica de microssistema coletivo, previa igualmente, antes do fato objeto do presente processo, a legitimidade do Ministério Público para as demandas relacionadas à proteção do patrimônio público. Vejam-se os 1º, IV e 5º, caput, ambos da Lei de Ação Civil Pública, que contavam com a seguinte redação à época do fato.
(...)
Agravo interno improvido. (AgInt nos EDcl no REsp 1461454/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 31/08/2020, DJe 03/09/2020)
COMPETÊNCIA - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - CONDIÇÕES DE
TRABALHO. Tendo a ação civil pública como causas de pedir disposições trabalhistas e pedidos voltados à preservação do meio ambiente do trabalho e, portanto, aos interesses dos empregados, a competência para julgá-la é da Justiça do Trabalho. (RE 206220, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 16/03/1999, DJ 17-09- 1999 PP-00058 EMENT VOL-01963-03 PP-00439)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA À SEGURANÇA E À SAÚDE DO TRABALHADOR. INTERESSES COLETIVOS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. 1. O
Ministério Público tem legitimidade para a defesa, por meio de ação civil pública, de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos de natureza trabalhista. Precedentes. 2. Agravo regimental desprovido. (RE 214001 AgR, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 27/08
/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-178 DIVULG 10-09- 2013 PUBLIC 11-09-2013)
AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONDIÇÕES DE TRABALHO. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ARTS. 114 E 129, DA CONSTITUIÇÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. INEXISTÊNCIA. AGRAVO DESPROVIDO. O acórdão
recorrido prestou, inequivocamente, jurisdição, sem violar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, tendo enfrentado as questões que lhe foram postas. Legit imidade do Ministério Público do Trabalho para ajuizar ação civil pública em defesa de interesses difusos e coletivos no âmbito trabalhista. Questões referentes ao ambiente, às condições e à organização do trabalho. Competência da Justiça do Trabalho. Súmula 736/STF. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 416463 AgR, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 05/06/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 21-06-2012 PUBLIC 22-06-2012
RSTP v. 24, n. 278, 2012, p. 136-140)
O réu e a ré também suscitam questões relacionadas às condições de ação. Como a matéria referente a legitimidade é conexa a interesse de agir, inclusive no que concerne à natureza dos direitos/interesses tutelados, analisarei conjuntamente.
A legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento das ações coletivas está consagrada nos arts. 5.º, I da Lei 7.347/1985 (LACP) e 82, I, da Lei 8.078/1990 (CDC). Por outro lado, o art. 127 da Constituição Federal define o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, cabendo-lhe promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.
O réu e a ré asseveram que
“toda a narrativa fática constante da petição inicial trata de supostas violações legais nos supostos vínculos empregatícios da Sra. MIRTES RENATA SANTANA DE SOUZA e da Sra. MARTA MARIA SANTANA ALVES, vínculos empregatícios que como se observará sequer existem. Além delas, apenas foi citada de forma genérica a Sra. LUCIENE RAIMUNDO NEVES, que também não possui vínculo empregatício com os demandados”. E questionam: “como a narrativa fática diz respeito a dois ou três supostos vínculos empregatícios e o grupo titular dos direitos em discussão é composto de “todos os potenciais trabalhadores e a sociedade trabalhadora como um todo”?” e “como há lesão a direito difuso ou coletivo em virtude de suposto desrespeito de normas trabalhistas se a narrativa fática apenas supõe a existência de dois ou três vínculos empregatícios firmados pelos demandados?”.
Dizem também que
“os direitos supostamente tutelados pelo Parquet carecem de titularidade. Se fala em direito difuso ou coletivo nos autos, mas não há qualquer demonstração de qual seria o grupo titular. O que se apresenta é tão somente uma narrativa fática direcionada a supostos direitos individuais de pessoas determinadas que supostamente foram violados.
Nesse sentido, no entender dos ora manifestantes, é evidente que o ordenamento jurídico brasileiro não respalda, e nem poderia respaldar, o cabimento da Ação Civil Pública e a legitimidade do Parquet para propor nesses termos, pois permitir tal tipo de ação seria o mesmo que dizer que todos os requisitos legais para aferição de legitimidade e cabimento da Ação Civil Pública são desnecessários, bem como permitir que situações coletivas hipotéticas fossem levadas ao Poder Judiciário sem qualquer necessidade ou interesse processual.
Dessa forma, ante a evidente ausência de direito difuso ou coletivo em discussão, os ora manifestantes passarão a demonstrar a ausência de competência funcional e legitimidade do MINISTÉRIO PÚBLICO DOT RABALHO DA 6ª REGIÃO e também a ausência de cabimento da Ação Civil Pública proposta ”. (fls. 517, transcrito de acordo com o original, inclusive destaques).
Pois bem.
Enquanto que a Lei 7.342 apresenta um rol taxativo dos legitimados ativos, em relação à legitimidade passiva, qualquer pessoa, seja ela física ou jurídica, pode figurar no polo passivo da ação civil pública. Obviamente que os empregadores domésticos possuem legitimidade para figurar no polo passivo dessa classe de ação: basta que causem algum dano aos interesses tutelados.
Então, não se está a discutir a existência de “dois ou três supostos vínculos empregatícios”. A análise não é quantitativa.
O parquet, em sede de inquérito civil, apurou as seguintes irregularidades pretensamente praticadas pelos empregadores: ausência de formalização de vínculo empregatício, diante da falta de registro do contrato de trabalho doméstico; falta de recolhimentos previdenciários devidos; falta dos devidos recolhimentos ao FGTS; redução de salário sem atender às hipóteses e às formalidades legais; jornada extraordinária sem a remuneração respectiva; excesso de jornada nos dias em que as trabalhadoras dormiam no local de trabalho; não fornecimento de vale transporte; falta de pagamento do terço de férias; falta do correto pagamento da gratificação natalina; não pagamento de verbas rescisórias; não concessão do intervalo intrajornada nos termos legais; não observância de intervalo mínimo interjornada nos dias trabalhados em que havia excesso de jornada; não concessão de descanso semanal remunerado nas oportunidades em que as trabalhadoras prestavam serviços nos finais de semana; extravio da CTPS da empregada Marta Maria Santana Alves; prestação de serviço mesmo durante a pandemia causada pelo COVID-19 e sem os equipamentos de proteção individual adequados; prestação de serviços durante a pandemia causada pelo coronavírus mesmo quando não se enquadrava nas exceções permitidas para o trabalho doméstico; prestação de serviços domésticos durante a pandemia causada pelo novo coronavírus mesmo por empregada que se enquadra no grupo de risco.
Ora, não se está a falar de qualquer categoria profissional, mas de trabalhadores domésticos. A viabilidade de ação civil pública em face de empregador doméstico tem guarida na jurisprudência da Corte Superior Trabalhista:
RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. PRECEDÊNCIA DAS NORMAS DO CPC DE 1973 FRENTE AO CPC DE 2015. INCIDÊNCIA DA REGRA DE DIREITO INTERTEMPORAL SEGUNDO A QUAL TEMPUS REGIT ACTUM. I – (...)
ACÃO CIVIL PÚBLICA. TRABALHADOR DOMÉSTICO. EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL. TRABALHO DEGRADANTE. CONDIÇÃO ANÁLOGA AO TRABALHO ESCRAVO. DANO INDIVIDUAL QUE SE IRRADIA PARA TODA A CATEGORIA DOMÉSTICA. POSSIBILIDADE. TRANSINDIVIDUALIDADE. INDENIZAÇÃO POR DANO
MORAL COLETIVO. I - No campo das relações de trabalho, ao Parquet compete promover a ação civil pública no âmbito desta Justiça para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos, bem assim outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos (arts. 6º, VII, "d", e 83, III, da LC 75/93). II - A conceituação desses institutos se encontra no art. 81 da Lei nº 8.078/90, em que por interesses difusos entende-se os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. III - Já os interesses coletivos podem ser tanto os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por relação jurídica base, como os interesses individuais homogêneos, subespécie daquele, decorrentes de origem comum. IV - Assim, a indeterminação é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinação o é daqueles qualificados como coletivos ou como interesses individuais homogêneos, desde que o sejam indisponíveis. V - A par disso, tem-se que, em última análise, todos são direitos coletivos em sentido amplo, pois envolvem interesses de grupos, tuteláveis por meio de ação civil pública. VI
É certo, ainda, que o inciso X do artigo 5º da Constituição elege como bens invioláveis, sujeitos à indenização reparatória, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Encontra-se aí claramente subentendida a preservação da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, por eles terem sido erigidos como fundamentos da República Federativa do Brasil, a teor do artigo 1º, inciso III e IV, da Constituição. VII - Nessa perspectiva, a conjugação entre o dano moral e a salvaguarda dos direitos da personalidade, abre espaço para inúmeras reflexões quanto à possibilidade de extensão da
lesão de forma difusa, ou seja, de tutela geral da personalidade humana reconhecida dentro de uma dimensão supraindividual. VII I - Para tanto, a referida norma do inciso X do artigo 5º da Constituição deve merecer interpretação mais elástica a fim de se incluir entre os bens ali protegidos não só a honra e a imagem no seu sentido mais estrito, mas também sequelas psicológicas oriundas de ato ilícito, em razão de elas, ao fim e ao cabo, terem repercussões negativas tanto na vida pessoal, social e profissional do ofendido como, inclusive, na possibilidade da lesão refletir em toda a coletividade. IX - Nesse sentido, traga-se à baila lição da Exma. Ministra do STJ, Eliana Calmon, expendida no julgamento do REsp 1.057.274: "As relações jurídicas caminham para uma massificação, e a lesão aos interesses de massa não pode ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais". X - Ou seja, sob essa ótica, a responsabilidade civil, na sua função precípua de proteger o equilíbrio social, tem seu campo de abrangência alargado, com vistas a garantir os interesses extrapatrimoniais de toda a sociedade. XI - Vem a calhar, a propósito, o que escreve Felipe Teixeira Neto "a promoção da dignidade da pessoa humana, pressupõe não raro, a salvaguarda de situações subjetivas que estão acima do sujeito individual quando observadas a partir do plano da titularidade, mas umbilicalmente ligadas ao seu pleno desenvolvimento, o qual se perfectibiliza por meio do reconhecimento jurídico da relevância do que se convencionou chamar de interesses difusos". ( In , TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo: a configuração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 135). XII - E acrescenta o autor que "o alargamento das possibilidades de imposição do dever de indenizar para além da violação de um direito subjetivo individual de pessoa determinada permitirá à responsabilidade civil dar proteção efetiva aos interesses difusos, senso chamada a tutelá- los em caso de lesão danosa". XIII - Feitas essas digressões iniciais, verifica-se que, no caso dos autos, o ato ilícito decorreu da incontroversa prática do trabalho doméstico infantil e da submissão da jovem Gabriela à condição análoga à de escravo, por mais de dez anos. XIV - Não obstante o quadro factual demonstre a ilicitude da conduta praticada pelos recorridos, em função do qual, inclusive se reconheceu a ocorrência de dano moral individual, constata-se que o Tribunal Regional reputou indevida a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho. XV - Na ocasião, a Corte de origem registrou não se tratar de dano moral coletivo, ao fundamento de que os danos foram sofridos por uma única vítima, não havendo "vilipêndio á esfera extrapatrimonial de um grupo, classe ou comunidade de pessoas, não emergindo, pois, daquela prática a existência de um sentimento coletivo de indignação, desagrado e de vergonha capaz de ferir a "moral" da coletividade inserida nesse contexto". XVI - Cabe, portanto, perquirir se a conduta de contratar trabalhador doméstico, com evidente exploração do trabalho infantil, em condições degradantes e submissão de pessoa certa e determinada à condição similar ao regime de escravidão, implica lesão de ordem coletiva a ser reparada. XVII - Em linhas gerais, assevera Sérgio Cavalieri Filho: "O importante, destarte, para a configuração do dano moral não é o ilícito em si mesmo, mas sim a repercussão que ele possa ter." (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 113). XVIII - Sobre o tema em debate, preleciona Xisto Tiago de Medeiros Neto que apenas uma agressão injusta e intolerável aos valores éticos da sociedade autoriza a condenação em danos morais coletivos. XIX - De igual modo, aponta Vicente de Paula Maciel Júnior que "as tentativas de explicação do fenômeno coletivo (direitos difusos) e do processo coletivo não devem ter como ponto referencial os sujeitos, mas o fato, o acontecimento, o bem da vida que se pretende tutelar e que revelará que aquela demanda possui natureza coletiva lato sensu . ( In , Teoria das ações coletivas - as ações coletivas como ações temáticas, LTr: São Paulo, 2006. p. 174). XX - Nessa diretriz, malgrado se cogite de interpretação restritiva quanto à caracterização do dano moral coletivo, o certo é que não se pode analisar o indivíduo em sua concepção singular, mas
sim, enquanto integrante de uma coletividade. Isso quer dizer que o reconhecimento do direito coletivo também se relaciona a vítimas singulares e identificáveis, desde que a lesão sofrida tenha repercussão difusa e não meramente individual, a justificar a tutela pelo ordenamento jurídico. XXI
Efetivamente, o direito à dignidade está consagrado nos direitos e garantias fundamentais, de modo que a proteção do Estado à integridade física e moral de seus cidadãos, ainda que concretizada em um caso individual e específico, se apresentar reflexo em toda a coletividade, subsistirá inegável o dano moral XXII - Em outras palavras, para efeito de caracterização do dano moral coletivo e sua adequada reparação uma conduta ilícita, independentemente do número de pessoas atingidas pela lesão, pode inserir-se em um plano mais abrangente de alcance jurídico, a exigir necessária consideração para efeito de proteção e sancionamento, quando comprovada lesão coletiva. XXIII - Impende considerar, por oportuno, que o trabalho infantil, exercido por menores abaixo da idade mínima legal, deve ser combatido com prioridade. Por isso mesmo, a Convenção nº 182 da OIT, ratificada pelo Brasil, assinala a idade mínima de admissão ao emprego e proíbe as piores formas de trabalho infantil. XXIV - É sabido, ademais, que o trabalhador doméstico durante muitos anos esteve à margem das proteções conferidas aos trabalhadores em geral, tanto é que a Lei Complementar nº 150 de 2015 surgiu para reconhecer direitos e garantias da categoria, visando à valorização do trabalho doméstico. XXV - Dessa forma, a prática de trabalho infantil doméstico aliada à condição degradante e análoga ao trabalho escravo , ainda que direcionada a uma vítima em particular, representa nítido dano moral coletivo, na medida em que a lesão sofrida se irradia de forma difusa e generalizada para toda a categoria dos trabalhadores domésticos. XXVI - Trata-se, pois, de interesse metaindivindual, de indiscutível relevância social, na medida em que a prática do empregador, consistente em contratar menor para a prestação de trabalhos domésticos, sem contraprestação salarial e submissão aos maus tratos e regime de escravidão gera graves prejuízos à sociedade de uma forma generalizada. XXVII - Com isso, uma vez configurado o potencial dano à coletividade, a decisão regional que propendeu pela sua não ocorrência viola o disposto no artigo 5º, inciso X, da Constituição. (...) Recurso de revista conhecido e provido" (RR-64100- 69.2009.5.05.0038, 5ª Turma, Relator Ministro Antonio Jose de Barros Levenhagen, DEJT 17/03/2017).
É importante pontuar que no Brasil, antes da abolição formal da escravatura, escravos domésticos eram encarregados das tarefas da casa. Cita o Professor Celso Furtado[1], que no Brasil Colônia, “a mão-de-obra era basicamente constituída por um estoque de pouco mais de dois milhões de escravos, parte substancial dos quais permaneciam imobilizados na indústria açucareira ou prestando serviços domésticos”.
Além das escravas domésticas, também havia, ao longo do século XIX, uma espécie de ajuda contratada, na qual a ajudante era enviada pela sua família a outra residência, como um passo intermediário do matrimônio. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com a industrialização e urbanização, transformou essa ajuda em serviço doméstico. Por se realizarem no interior de residências particulares essas atividades não são organizadas de forma capitalista (os tomadores do serviço doméstico não são empresários)[2]. As empregadas realizam tarefas consumidas diretamente pela família, de forma que o produto dos bens e serviços não circulam pelo mercado nem se mobiliza capital para a realização dessas tarefas. Inclui-se no que se convencionou chamar de trabalho imaterial.
Isso é tão verdadeiro que a sociedade diferencia esse tipo de prestação de serviços. Até há pouco tempo, a atividade era regulada por Lei especial nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, tendo o Decreto nº 71.885, de 9 de março de 1973, esclarecido que com exceção do capítulo referente a férias, “não se aplicam aos empregados domésticos as demais disposições da Consolidação das Leis do Trabalho” (art. 2º). Os avanços normativos dessa categoria só foram conseguidos com a Constituição Federal de 1988 que ampliou o leque de direitos[3] e, por meio do Decreto nº 3.361, de 10 de fevereiro de 2000, foi facultado ao doméstico o acesso ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e ao programa do seguro- desemprego. Só em 2015, com a edição da Lei Complementar nº 150, é que houve a equiparação do trabalhador doméstico aos demais empregados urbanos.
A norma jurídica ainda o empregado doméstico é caracterizado como “aquele que presta serviços de natureza contínua e finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas”.
Sob o aspecto eminentemente sociológico do trabalho doméstico, Hildete Pereira de Melo assim leciona[4]:
O trabalho executado pelos empregados domésticos não constitui apenas relação externa de compra e venda de força de trabalho, mas também modo de vida. O trabalho doméstico é uma responsabilidade da mulher, culturalmente definida do ponto de vista social como dona de casa, mãe ou esposa. Esse trabalho dirigido para as atividades de consumo familiar, é um serviço pessoal para o qual cada mulher internaliza a ideologia de servir aos outros, maridos e filhos. O trabalho realizado para sua própria família é visto pela sociedade como uma situação natural, pois não tem remuneração e é condicionado por relações afetivas entre a mulher e os demais membros familiares, gratuito e fora do mercado. Quando uma mulher contrata uma terceira para executar essas tarefas, isto é, prestar tais serviços para uma família diferente da sua, esse trabalho doméstico converte-se em “serviço doméstico remunerado”. Esse trabalho da empregada doméstica herda socialmente o estigma de desvalorização que acompanha essas atividades. Patroas e empregadas domésticas participam de uma relação de identidade mediada pela lógica de servir aos outros como algo natural [Léon (1989)], embora essa relação trabalhista tenha dois efeitos contraditórios: de um lado, a questão de classe e, de outro, a identidade de gênero que é estabelecida entre as mulheres. Essa questão também envolve um problema de status na sociedade, pois a utilização de empregadas domésticas confere uma certa posição à mulher dona-de-casa, independente da renda familiar.
Mas a questão não só de mero descumprimento de normas trabalhistas. A forma de prestação de serviços exigida pelo empregador e empregadora trouxe consigo a tragédia da morte do filho menor de uma das domésticas que lhes prestava serviços.
A tragédia traz consigo vários questionamentos: da superexploração do trabalho ao preconceito do labor doméstico e ao preconceito racial, passando por improbidade administrativa, que aqui aparece de forma subjacente. Não se trata, pois, apenas de interesse individual de dois ou três empregados.
A superexploração está presente para além dos ilícitos acima elencados pelo Par quet. De acordo com os documentos trazidos aos autos, vivendo em situação de pandemia pelo COVID-19, autoridades de saúde impuseram o isolamento social – fato público e notório -. Por não poder dispensar seu emprego haja vista necessidade de sobrevivência, uma das empregadas do Réu e da Ré teve que levar o menor ao local de trabalho, pois não havia escola ou creche para deixa-lo.
Impossível separar a violação de direitos praticado pelo empregador e pela empregadora ao interesse de toda a sociedade. Apenas a título de exemplo, trago à colação matéria jornalista publicada no sítio da BBC/Brasil[5] “o caso do menino Miguel Otávio da Silva, que morreu no Recife após cair do 9º andar de um prédio de luxo, fez com que muitos filhos de empregadas domésticas usassem as redes sociais para protestar e relembrar momentos de discriminação que viveram nos trabalhos de suas mães” (transcrito de acordo com o original, exceto os grifos).
A narrativa desenvolvida na petição inicial, também traz à tona outra questão, não de forma direta: o racismo estrutural vivenciado pela sociedade brasileira. Essa questão ainda ultrapassa as fronteiras nacionais e chega à Organização das Nações Unidas. Refiro-me ao momento presente, conforme notícia postada no site UOL do último dia 29 de setembro[6]:
“(...) O caso brasileiro é mencionado como uma demonstração de que certas populações são vulneráveis durante a pandemia e que a situação das empregadas domésticas no país é exemplo disso. O governo poderá dar uma resposta nesta quarta-feira, durante o debate no Conselho de Direitos Humanos da ONU que irá tratar do tema.
De acordo com o texto, em todo o mundo, "falhas em avaliar e mitigar riscos associados à pandemia e ao racismo sistêmico levaram a fatalidades". "No Brasil, a trágica morte de Miguel Otávio Santana da Silva, uma criança afro-brasileira de 5 anos de idade, foi um desses casos", diz o documento do grupo da ONU.
"No Brasil, as trabalhadoras domésticas são considerados essenciais. Escolas e creches foram fechadas, por isso Miguel acompanhou sua mãe, Mirtes Santana, ao trabalho", conta.
O documento relata que, enquanto a mãe de Miguel passeava um cão de sua patroa, a empregadora deixou Miguel em um elevador. "Sem supervisão, a criança de cinco anos de idade caiu para a morte quando o elevador parou no nono andar", apontou...
Para a mãe de Miguel, a conduta "não reconheceu a idade jovem, a inocência e a vulnerabilidade de seu filho". "Muitas trabalhadoras domésticas no Brasil trabalham seis dias por semana, o que sugeriria que situações precárias são mais a norma do que a reconhecida, e exigem a mitigação de riscos no contexto da pandemia", aponta o documento.
O incidente aconteceu no prédio do condomínio Pier Maurício de Nassau, localizado no bairro São José, área central de Recife, em meados do ano. A patroa da mãe foi detida pela Polícia Civil de Pernambuco suspeita de homicídio culposo. Após pagar uma fiança de R$ 20 mil, a investigada obteve a liberdade provisória.
(...).”
De outra banda, argumentam o demandado e a demandada que em 01 de fevereiro de 2017, as senhoras MIRTES e MARTA, passaram a integrar os quadros funcionais da Prefeitura Municipal de Tamandaré – PE (rectius: do Município), quando foram nomeadas para o exercício as funções de Diretoras de Departamento (símbolo CC-3).
Foi também dito que, “em virtude do cargo que ocupa (Prefeito), o demandado SÉ RGIO HACKER CÔRTE REAL, faz jus ao auxílio de servidores da Prefeitura Municipal de Tamandaré, de forma que essas senhoras foram destacadas para prestarem os seus serviços em sua residência” (fls. 529 do PDF, conforme o original).
A matéria relaciona-se a improbidade administrativa e deverá ser analisada em foro próprio. Entretanto, não se pode passar desapercebida a informação do réu no sentido de que funcionários públicos são destacados para prestar serviços em sua residência [do Prefeito]. Para além do disposto no art. 9º, IV da Lei 8.429[7], de 02 de junho de 1992 e, prestando homenagem ao eminente ministro Victor Nunes Leal, orgulho da magistratura nacional e em quem deve se espelhar, transcrevo trecho de seu estudo Coronelismo, enxada e voto[8]:
“... concebemos o “coronelismo” como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com o um regime político de extensa base representativa.
Por isso mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil(...)
Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema “coronelista”, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais”.
A construção do nosso país revela ainda os déficits civilizatórios que ainda hoje teimam em permanecer. Sobrevive o patriarcalismo, assim entendido como “princípio de que cada grupo, familiar ou de outro tipo, constituirá uma hierarquia desde a figura mais inferior ou jovem até uma única figura mais velha sob cuja proteção e domínio está o grupo e por meio de quem se consegue o progresso”, na definição de Lockhart e Schwarts, citada por Susan Besse[9].
Desde o pensamento que os modernizadores urbanos das décadas de 1920 a 1930, com a influência da eugenia para o aperfeiçoamento da “raça”, concentrando na reprodução como forma de superar os supostos ‘atrasos’ e ‘degeneração’ do país[10], ainda sobrevivem relações políticas típicas da Velha República, onde ainda teimam em permanecer os favores pessoais e o ‘mandonismo’, que se apresenta na mesma face do ‘filhotismo’, para utilizar a expressão do Ministro Victor Nunes Leal.
Essas mazelas devem ser combatidas com o avanço democrático, construindo um País à luz dos fundamentos indicados nos incisos II, III e IV[11] do art. 1º da Constituição da República e os objetivos fundamentais indicados nos incisos do art. 3º da mesma Carta Política [12]. As ações coletivas, entre elas a ação civil pública, são instrumentos que o ordenamento jurídico nacional põe em favor da sociedade para a consecução desses objetivos.
Como visto acima, a conduta do réu e da ré atentou contra a vida, a saúde e a segurança das trabalhadoras domésticas, levando-as, conforme documentos adunados aos autos, a contrair a COVID-19. Desnecessário mencionar o falecimento do filho menor que esteve sob a guarda da ré.
Os empregadores, inclusive os domésticos, devem garantir o mínimo existencial a seus empregados. Esse mínimo existencial é consagrado pela Carta Política, em particular pelo rol elencado no artigo 6º da Carta Política, no qual se encontra o direito à saúde.
Convém observar que a proteção à saúde do trabalhador está indicada em vários dispositivos da norma constitucional. No artigo 7º, XXII, há a previsão de “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. O caráter inovador dessa norma é destacado por Sebastião Geraldo de Oliveira[13], que conclui afirmando “que se impõe é que o trabalhador tem direito à redução de todos os riscos (físicos, químicos, biológicos, fisiológicos e psíquicos) que afetam a sua saúde no ambiente de trabalho” .
Ao lado do direito à redução dos riscos à saúde, há o dever de colaborar na proteção do meio ambiente, nele incluído o do trabalho (artigo 200, VIII, da Constituição da República). Como observa o Ministro Cláudio Brandão[14],
essa forma de proteção possui como destinatária a comunidade, em face da natureza de ser o meio ambiente bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, como define o art. 225 da CF:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defende-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações”
Nos moldes em que está disciplinado na Constituição Federal, o meio ambiente, inclusive o do trabalho, é um direito de todos, direito difuso, bem comum do povo, isto é, direito indivisível, e essencial à qualidade de vida. Nisto consiste a vinculação do direito ao meio ambiente saudável com o direito à vida, sendo aquele complementar deste direito, sem o qual este estaria inviabilizado em seu exercício e gozo pleno.
O meio ambiente do trabalho pode ser definido como a localidade onde é desenvolvida a prestação de serviço. O direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado significa um direito ao exercício de atividades laborais em condições dignas. Não se trata, como foi sugerido pelo empregador e pela empregadora, de ilícito praticado contra dois ou três contratos individuais de trabalho. Na realidade, assim o foi, mas os reflexos do ato atingiram toda a sociedade.
Os empregadores, incluindo os domésticos, à evidência, devem cumprimento das normas sociais, principalmente as trabalhistas, e em especial as atinentes à segurança e saúde do trabalho.
Por fim ressalto, como dito alhures, que tanto a dignidade da pessoa humana, quanto o valor social do trabalho foram instituídos como fundamentos do Estado Brasileiro pelo constituinte originário (artigo 1º, III e IV). E, com base também nessas regras, não se poderia deixar de assistir ao trabalhador, cuja força de trabalho foi posta à disposição do empregador e da empregadora doméstica. Destaque-se que as ilicitudes praticadas pelos patrões tiveram o poder de abalar a sociedade brasileira, conforme acima observado.
Quanto à relação entre “os dois ou três contratos de emprego” e o dano coletivo, convém transcrever a lição doutrinária de Xisto Tiago de Medeiros Neto, em obra de referência:
(...) É importante esclarecer-se que a observação do dano moral coletivo pode decorrer da identificação ou visualização de um padrão de conduta da parte, com evidente alcance potencial lesivo à coletividade, em um universo de afetação difusa. Explica-se: ainda que, em determinado caso concreto, apenas imediatamente se observe que a conduta ilícita afete, de forma direta, somente uma ou mesmo poucas pessoas, nestas situações faz-se imprescindível volver-se o olhar para a conduta do ofensor, como um standard comportamental, verificando-se que a violação perpetrada enseja repercussão coletiva, exatamente por atingir também, indistintamente, bens e valores de toda uma coletividade de pessoas, num dado momento, indivíduos identificados.
De acordo com o aqui desenvolvido, a atitude do patronato não se confunde com o ilícito praticado em face de dois ou três contratos de emprego. Atentou-se contra o meio ambiente do trabalho, direito de todos, direito difuso, bem comum do povo, isto é, direito indivisível, e essencial à qualidade de vida; transpareceu-se o racismo estrutural e exploração exagerada da mão-de-obra.
Ademais, o fato ultrapassou as fronteiras da cidade e do país, causando repulsa à Organização das Nações Unidas, na forma acima verificada. Assim, diante do dano em potencial causado à sociedade e, presentes os pressupostos necessários, defiro a cautelar requerida a fim de garantir futura execução, para declarar a indisponibilidade de bens do réu e da ré, que mantenham em conjunto ou separadamente, representados por móveis, imóveis, ativos financeiros, participações em sociedades, títulos da dívida pública e demais títulos negociáveis em bolsas de valores, até o valor de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).
Proceda a Secretaria da Vara com as providências necessárias ao imediato cumprimento dessa determinação, inclusive com comunicação ao BacenJud, RenaJud, Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIBA.
A Secretaria deverá incluir o presente feito na tabela de ações envolvendo a pandemia por COVID-19 e observar o quanto determinado no Pedido de Providências nº 0003214- 45.2020.2.00.000 em curso no CNJ, conforme a Portaria nº 57, de 20 de março de 2020, da Presidência do Conselho.
Quanto aos demais pedidos, inclusive os formulados em sede antecipatória, serão apreciados por ocasião da sentença de mérito.
E mais:
Tendo em vista a calamidade pública que resultou na impossibilidade de realização das audiências presenciais, e o disposto no art. do ATO CONJUNTO TRT6-GP-GVP-CRT nº 06
/2020, e considerando que se trata de processo sob o rito ordinário, determino:
A notificação do Réu e da Ré para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, proceder a apresentação de defesa e toda a documentação no PJe, incluindo procuração e atos constitutivos, sob pena de revelia e confissão, observando as determinações constantes dos itens 3.2 e 3.3, bem como subitens deste despacho.
A notificação da parte autora para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, juntar toda prova documental que pretende produzir, sob pena de preclusão, observando as determinações constantes dos itens 3.1 e 3.3, bem como subitens deste despacho.
Em seguida ao prazo anteriormente concedido, e independente de nova notificação, terão as partes o prazo preclusivo de 10 (dez) dias úteis para manifestação acerca dos documentos acostados pela parte adversa, sob pena de preclusão, devendo ainda indicar as provas que pretende produzir e a respectiva finalidade. Nesse praz, querendo, a Autora deverá se pronunciar a respeito das preliminares e prejudiciais de mérito
eventualmente suscitadas na (s) defesa (s) (artigos 10, 351 do NCPC e Instrução
Normativa 39/2016 aprovada pela Resolução 203/2016 do TST).
Observe-se também que cabe às partes comprovar nos autos a existência de direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, inclusive no que se refere a feriados estaduais e municipais, em face do que dispõe o art. 376 do NCPC, sob pena de extinção do referido pedido sem resolução do mérito.
Também deverá ser observado o disposto no art. 12, § 4º e 5º da Resolução Nº 185/17 CSJT, observando-se a ordem cronológica e indicando-se a classificação do mesmo (por TRCT, CTPS, contracheques, controles de jornada etc), devendo se evitar a classificação genérica “documentos diversos”, existindo especificação própria.
6. Para audiência de instrução e razões finais, designo o próximo dia 18 de novembro, às 9h.
Cumpra-se.
Intimem-se as partes desta decisão.
Formação Econômica do Brasil, 32ª São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.
Pág. 115.
MELO, Hildete Pereira de. O Serviço Doméstico Remunerado No Brasil: De Criadas a Trabalhadoras. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Texto Para Discussão Nº
565. ). Rio de Janeiro, junho de 1998. Disponível em undefined pdf. Acesso em 28/09/2020.
Parágrafo único do Art. 7º da Carta Política: são assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como sua integração à previdência social [salário mínimo, irredutibilidade do salário, décimo terceiro salário, repouso semanal remunerado, férias, licença à gestante, licença-paternidade, aviso prévio, aposentadoria].
Melo, Hildete Pereira de. Cit. p. 2.
TAVARES, Vitor. Caso Miguel: morte de menino ‘joga álcool nas feridas’ de filhos de empregadas domésticas. BBC News Brasil. 5. Jun. 2020. Disponível em undefined
/portuguese/salasocial-52938903. Acesso em 29 set. 2020
CHADE, Jamil. ONU cita caso de Miguel como exemplo de “racismo sistêmico” na pandemia. UOL. 29.09.2020. Disponível em undefined
/09/29/onu-cita-caso-de-miguel-como-exemplo-de-racismo-sistemico-na-pandemia.htm? utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_content=geral&utm_campaign=noticias acesso em 29/09/2020.
9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:
(...)
IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;
NUNES, Victor Leal. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, 7ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. p. 43-44.
BESSE Susan K. Modernizando a desigualdade: Restruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914-1940. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 229-230
BESSE Susan K. Ob. Cit. P. 03-04.
[11]II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador, 4ª ed. São Paulo: LTr, 2002. Pág. 131.
Acidente do Trabalho e Responsabilidade Civil do Empregador. São Paulo:LTr, 2006. Pág. 114.
RECIFE/PE, 01 de outubro de 2020.
JOSE AUGUSTO SEGUNDO NETO
Juiz(a) do Trabalho Substituto(a)
Segue decisão na íntegra: DECISÃO_Morte_de_Miguel_filho_da_Mirtes_doméstica_PE.pdf