Processo no omissis
SENTENÇA
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofereceu denúncia em face de omissis imputando-lhe as práticas das condutas tipificadas nos artigos 157, § 2o incisos I, II e V do Código Penal (três vezes), no artigo 329 do Código Penal e no artigo 16 da Lei 10.826/2003, todos em concurso material, narrando os fatos contidos na peça inicial de fls. 02A/02F, que veio instruída pelos autos de Inquérito Policial instaurado por força de prisão em flagrante acostado às fls. 02/94, onde consta de mais...
Omissis
Feito breve relatório, DECIDO:
O mundo jurídico em sua ancestral aversão à interdisciplinaridade desde sempre pretendeu se atribuir um caráter autopoiético – no sentido de acreditar-se uma rede fechada capaz de analisar e regulamentar a absolutamente tudo a partir exclusivamente dos próprios conceitos e teses, sempre que possível desprezando contribuições externas.
Tal aversão alcança seu paroxismo nas chamadas “ficções jurídicas”: incapaz de adequar determinada situação à antíteses oriundas de outros saberes que demonstram ser impossível, inviável, improvável aquilo que o mundo jurídico sustenta, o jurista então diz se tratar de uma ficção, e ponto final: resolvido.
O grave problema em matéria de direito penal é que, por óbvio, ficções não podem gerar punições legítimas – isto se abandonarmos este mundo autopoiético que por vezes beira o bizarro.
Todos sabemos, por exemplo, através de (lamentável) experiência própria ou muito próxima, que uma pessoa absolutamente embriagada não tem qualquer controle sobre si própria – aliás, não por outro motivo o próprio direito penal criou um tipo específico e mais gravoso para o “estupro de vulnerável”, dispondo em norma de extensão (parágrafo 1o do artigo 217-A) que “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (grifei), aí incluída de forma pacífica pela jurisprudência justamente situações nas quais uma vítima esteja de tal forma embriagada que não possua mínima condição de “oferecer resistência” à conjunção carnal ou outro ato libidinoso que lhe é imposto naquele contexto.
Não obstante isto – e pior: em absoluta contraposição ao que dispõe a norma incriminadora (o que inclusive denota os dois pesos e duas medidas do legislador, que adota um entendimento para ampliar a punição e o desconsidera, em outro momento, quando se trata de despenalizar) – o artigo 28 do Código Penal estatui que não exclui a imputabilidade “a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Voilá! Está criada a ficção: um cidadão em total e completo estado de ebriez, para o direito penal brasileiro, não só comete crime como não está isento de pena, reprimenda que sequer será, por tal razão, reduzida!
Ou seja, para o direito penal posto, uma pessoa trôpega, que sequer consegue falar o próprio nome, fora de si e absolutamente embriagada não só pode cometer um crime doloso (que, portanto, pressupõe a vontade consciente direcionada a determinado fim) sob tal situação, como será punida como se absolutamente nada de estranho houvesse nisso, ainda que em absoluta ofensa ao mais elementar bom senso.
Como afirmou Norberto Bobbio em frase que se tornou famosa de seu livro Teoria do Ordenamento Jurídico, “a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento” (grifei).1
Tal estranhamento pode ser transplantado para a situação em que o direito penal reconhece a plena inimputabilidade de uma pessoa por qualquer motivo que seja. Aqui, a depender do grau de inimputabilidade a afetar a culpabilidade, o acusado de determinado crime poderá ser isento de pena sofrendo, contudo, neste caso, a imposição de medida de segurança, ou ter diminuída a reprimenda criminal, continuando, desta feita, sob controle e observação da justiça criminal.
Ocorre que para o direito penal o crime foi cometido pois, como estatui o artigo 26 do Código Penal, “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (grifei) – e a isenção de pena não isenta do crime.
1 BOBBIO, Noberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, Pg. 113.
Portanto, em suma e para exemplificar, um cidadão em meio a surto psicótico grave e, portanto, absolutamente incapaz de entender, naquele momento, o que faz ou de se autodeterminar, para o direito penal, comete crime, mas será isento de pena.
Atento ao rematado absurdo da situação, Juarez Tavares, reconhecidamente um dos maiores penalistas contemporâneos, em sua recente obra Fundamentos de Teoria do Delito sabiamente desvia o foco da discussão em torno da existência (ou não) de dolo em tais situações – o que implicaria mais do que isentar da pena, mas sim isentar do crime, o que como visto não é aceito pelo Código Penal pátrio que remete a discussão para o âmbito da imputabilidade e, portanto, da culpabilidade – realocando-o, de forma absolutamente precisa, no âmbito da conduta ou, mais especificamente no caso, nas palavras do mestre, da carência de performatividade.
“A doutrina sempre teve dificuldades de trabalhar os critérios para excluir do direito penal determinados sujeitos ou determinadas condutas”, afirma Tavares. E prossegue:
Por herança do positivismo, sedimenta a assertiva de que a eliminação da conduta do direito penal não se confunde com incapacidade do sujeito. Daí tratar a ausência de ação apenas sob o aspecto naturalístico, de ato desprovido de consciência ou de domínio causal. Quando se dedica às condições do sujeito, a doutrina caracteriza esse fato no âmbito da culpabilidade, ora como seu pressuposto, ora como seu elemento, na forma de inimputabilidade ou incapacidade de culpa.2
Ocorre que tal entendimento, como vimos, não resolve de forma minimamente adequada situações como a que se constata nestes autos, ou seja, em que o réu, declarado plenamente inimputável por laudo técnico que o declara incapaz, no momento dos fatos, para entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, ainda assim teria cometido um crime a impor sentença absolutória imprópria, o submetendo a controle do sistema criminal sob a forma de medida de segurança.
Sigamos com Tavares:
Não haverá ação relevante no âmbito penal quando o sujeito não puder se exprimir normalmente dentro
2 TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 152.
do contexto em que se encontre, no caso de falta de performatividade. Se o contexto determina a orientação de conduta, a falta de relação com o contexto quebra a performatividade. Esta constitui um pressuposto indeclinável da conduta penalmente relevante porque o sujeito, por deficiência em relação ao contexto, não pode orientar sua conduta em face da norma. Como a performatividade pressupõe a existência de uma norma que regule a conduta, deverá ela induzir também consequências compatíveis com a relação entre essa norma e o sujeito. Caso a norma seja permissiva da conduta, estarão eliminadas, desde logo, quanto ao agente todas as consequências penais. O mesmo vale quando esteja extinta a punibilidade da conduta.3
Especificamente quanto aos inimputáveis, seguindo a linha de raciocínio, prossegue o citado autor (grifei):
O sujeito que, em virtude de grave anomalia mental, não possa participar do discurso e, assim, orientar- se pelos objetos de referência da norma, não pratica ação, estará fora do injusto penal. Não há necessidade de se esperar até o exame da culpabilidade para excluir do injusto quem não tenha a possibilidade de se orientar pelos parâmetros de referência da norma e atribuir-lhe uma pretensão de validade, por estar desvinculado das condições de contexto sobre as quais se deve basear a incriminação.4
E mais à frente (grifei):
A inclusão da inimputabilidade entre os casos de ausência de ação está de acordo com o sentido da Lei de Saúde Mental, que objetiva excluir os enfermos mentais e também os portadores de retardamento e deficiência de desenvolvimento do âmbito de medidas penais de segurança, a fim de possibilitar seu tratamento em condições assemelhadas ao de pessoas mentalmente sadias ou que apresentem leves distúrbios psíquicos.
3 TAVARES, Juarez. Op.Cit., p. 152. 4 TAVARES, Juarez. Op.Cit., p. 160.
ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO A falta de performatividade pressupõe, em sua análise, que, conduta do agente seja apreciada em face das normas proibitivas ou mandamentais ou seja, das normas criminalizadoras. Essa relação entre a conduta e as normas criminalizadoras é avaliada no âmbito do injusto, em uma fase prévia ao exame dos elementos do tipo O que se objetiva, com essa inserção no âmbito do injusto de uma fase prévia destinada a avaliar a ação, é excluir do direito penal, por força da relação de contexto, aqueles comportamentos que não podem ser atribuídos a um sujeito que se encontre impossibilitado de atuar, porque não pode conferir à sua atuação uma pretensão de validade, ou seja, não pode refletir acerca da validade de sua conduta diante da norma. Como consequência normal dessa condição, o inimputável não deveria sofrer qualquer medida penal. As medidas de segurança só teriam sentido dentro do sistema tradicional de delito, mas não em um sistema crítico e democrático. Embora o Código Penal imponha aos inimputáveis uma medida de segurança de internação (art. 97), esta está em desacordo com a Lei de Saúde Mental.5
Retornando ao caso concreto, como acima dito, o denunciado foi declarado absolutamente inimputável, logo, incapaz de ação performática, ou seja, incapaz de pautar sua atuação em conformidade (ou não) com a lei, pelo que não há como se reconhecer aqui, no específico contexto destes autos, a existência de ação válida para o direito penal, o que equivale à inexistência de ação, impondo-se portanto a plena absolvição já que, atuando sob o domínio de sua enfermidade, o acusado precisa de tratamento e não, sob qualquer ótica, da aplicação de medida de natureza penal, sendo direito da pessoa portadora de transtorno mental “ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (grifei – inciso II do parágrafo único do artigo 2o da Lei 10216/2001).
Por tudo o que foi exposto, julgo totalmente improcedente o pedido inicial para absolver, como de fato absolvo omissis quanto à acusação de prática das condutas tipificadas nos artigos 157, § 2o incisos I, II e V do Código Penal (três vezes), no artigo 329 do Código Penal e no artigo 16 da Lei 10.826/2003, na forma do inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem custas.
5 TAVARES, Juarez. Op.Cit., p. 166.
P. Vista ao Ministério Público.
Intime-se pessoalmente o acusado na pessoa de sua curadora, que deverá informar ao próprio OJA se pretenderá recorrer e, em seguida, intime-se a defesa constituída.
Transitada em julgado, comunique-se, anote-se, dê-se baixa e aguarde-se pelo prazo de noventa dias eventual manifestação de algum interessado quanto aos bens apreendidos.
Rio de Janeiro, 12 de julho de 2019.
MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO
JUIZ DE DIREITO