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DECISÃO - Absolvição sumária pelo uso de drogas - RJ

Processo nº omissis SENTENÇA Omissis   É, em síntese, o relatório. DECIDO.   “Nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo”.1 O princípio da lesividade ou ofensividade em matéria penal decorre, em nossa estrutura normativa, segundo grande parte da doutrina, do que estatui o inciso I do artigo 98 da Constituição Federal ao fazer menção a “crimes de menor potencial ofensivo” (exigindo, desta feita, que mesmo os delitos de menor potencial disponham de mínima ofensividade ao bem jurídico tutelado pena norma incriminadora) e, de outro lado, do que estatui o artigo 13 do Código Penal ao mencionar “resultado, de que depende a existência do crime” (indiciando a exigibilidade de uma consequência ou, no mínimo, de sua potencialidade concreta para a configuração do delito). Mas, mesmo que estivéssemos diante da ausência de normatividade a tal respeito,  como  sustenta  Luigi  Ferrajoli  “trata-se  de um princípio que surge já em Aristóteles e Epicuro, e que é denominador comum de toda a cultura penal iluminista: de Hobbes, Pufendorf e Locke a Beccaria, Hommel, Bentham, Pagano e Romagnosi, que vêem no dano causado a terceiros as razões, critérios e a medida das proibições e das penas”2, daí sendo cunhada a expressão nulla poena, nullum crimen, nulla lex poenalis sine iniuria (nula a pena, nulo o crime, nula a lei penal sem lesão). 2 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição,1 BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, Vol. I., 2.ª edição, 2003, pág. 226. 2002, pág. 373.   Assim, segundo Affonso Celso Favoretto, o princípio da lesividade ou ofensividade seria “o postulado que sustenta que a criminalização de uma conduta só se justifica caso esta venha a gerar a lesão ou, no mínimo, um perigo concreto e real a um determinado bem jurídico tutelado pelo Direito Penal”, sendo que (citando Francesco Palazzo) “a nível  jurisdicional-aplicativo,  a integral atuação do princípio da lesividade deve comportar, para o juiz, o dever de excluir a subsistência do crime quando o fato, no mais, em tudo se apresenta na conformidade do tipo, mas, ainda assim, concretamente é inofensivo ao bem jurídico específico tutelado pela norma”.3 Daí advém a problemática pertinente aos crimes de perigo abstrato nos quais, segundo conceituação de Juarez Cirino dos Santos, “a presunção de perigo da ação para o objeto de proteção é suficiente para sua penalização, independente da produção real de perigo para o bem jurídico protegido”,4 sendo que tal presunção se daria juris et de jure, ou seja, sem a necessidade de qualquer comprovação no plano empírico da existência de lesão ou ameaça de lesão concreta ao objeto jurídico da tutela penal. A contradição face ao princípio constitucional da ofensividade ou lesividade, portanto, se mostra flagrante, já que nas palavras de Luis Roberto Barroso “ao mesmo tempo que o funda e autoriza, a Constituição reduz e limita o Direito Penal, na medida em que só autoriza a criminalização de condutas que atinjam de modo sensível um bem jurídico essencial para a vida em comunidade”. 5 Geraldo Prado, quando da concessão unânime da ordem no Habeas Corpus nº 0034780-15.2010.8.19.0000, julgado pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sustentou: “a proteção do bem jurídico não justifica a criminalização de determinadas condutas a qualquer custo; ao contrário, orienta a sua limitação, exigindo a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico para a configuração de crimes, sem que, com isso, se abra mão da punição de condutas tidas por socialmente reprovadas em maior nível de gravidade. Por isso, Cezar Roberto Bittencourt, ao definir o princípio da ofensividade, destaca que ‘somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto 3 FAVORETTO, Affonso Celso. Princípios Constitucionais Penais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, 2012, pág. 169.  4 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral, Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 3ª edição, 2008, pág. 112. 5 apud LOPES, Carlos André e CURI, Vinícius Fernandes Cherem. Da legitimidade Constitucional dos crimes de perigo abstrato. Disponível em: undefined, consultado em 26/09/2012. ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado’ e defende que ‘são inconstitucionais todos os chamados crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do Direito Penal de um estado Democrático de Direito, somente se admite a um bem jurídico determinado’”.6 Contudo, daí não decorre a inafastável necessidade de supressão de todo e qualquer crime de perigo abstrato do ordenamento penal pátrio, até porque tal implicaria em profundo contrassenso já que a própria Constituição Federal faz expressa menção a um delito de perigo abstrato, qual seja, o tráfico ilícito de entorpecentes (inciso XLIII do artigo 5º da Carta) Por outro lado, ainda que duvidemos da capacidade de concretização deste tipo de incriminação já que, como bem sabemos, “la ley es como la serpiente: solo pica a los descalzos”,7 tais delitos se mostram lamentavelmente indispensáveis dentro de uma sociedade globalizada e de risco em que não se pode aguardar que ações ou omissões empresariais profundamente danosas (e possivelmente irreversíveis), v.g., ao meio ambiente, à ordem econômica ou aos consumidores se concretizem para, só então, serem objeto da tutela legal. Como afirmam Rafael Magalhães Abrantes Pinheiro e Fábio Guedes de Paula Machado, “estamos diante de outra sociedade, em que os critérios clássicos de imputação não mais fazem frente aos riscos de ‘megadimensões’, aos riscos difusos e à criminalidade organizada. O caso da Talidomida, do azeite de ‘colza’, o caso Erdal ou Lederspray, o caso Holzschtzittel, são demonstrações de que o Direito Penal deva intervir justamente na tensão entre ‘segurança e risco’ (Coria, 1999, p.177-180) para a proteção de bens jurídicos. Nesse sentido, a defesa de uma função minimalista do Direito Penal, tal qual propugna Hassemer (1989b, p. 279), acabaria por abalar a estrutura do próprio Direito Penal. Todavia, esse ramo do direito só pode se expandir dentro das balizas impostas pelo legislador constitucional. Não pode o Direito Penal ser entendido como uma técnica autoreferente que não retire seu fundamento da Constituição, e, conseqüentemente,   6 Acórdão contido no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em undefined 69B3F8FEBD78F0C1AEE3C4024E5163, consultado em 30/09/2012. 7 Em tradução livre: “a lei é como a serpente: somente pica aos descalços” – ditado salvadorenho.   do Estado Democrático de Direito e do princípio da dignidade da pessoa humana”.8 Outra advertência se impõe, nas palavras de  Pierpaolo Cruz Bottini: “A constatação de que a vida em sociedade exige a preservação não apenas de bens individuais, mas também de outros bens coletivos ou difusos - concepção que acompanha um modelo desenvolvimentista de Estado - traz para o direito penal a tarefa de se ocupar da proteção desses novos institutos. No entanto, a tendência à "espiritualização" dos bens jurídicos, ou seja, a progressiva proteção de bens não individuais deve ser acompanhada com cautela para que o conceito de bem jurídico não perca sua utilidade de limitação do direito penal, como ocorreu na Alemanha nazista sob o sistema dogmático da Escola de Kiel. Admitir a proteção de bens coletivos não significa aceitar qualquer valor como bem jurídico. É preciso lembrar que o direito penal protege bens e valores importantes para o desenvolvimento do ser humano, portanto, mesmo os bens jurídicos coletivos - meio ambiente, ordem econômica - devem ser protegidos quando ameaçada sua funcionalidade para o desenvolvimento humano. Em suma, é preciso compreender que os bens jurídicos coletivos tem um forte lastro antropológico e sob esse prisma devem ser reconhecidos”.9 Justamente por tais razões é que se impõe uma interpretação conforme a constituição face aos delitos de perigo abstrato, eis que, na lição de Geraldo Prado no acórdão acima referido, “se há o reconhecimento da incompatibilidade da norma com a Magna Carta, ela é relativa e, portanto, sanável – não por meio da negação de sua aplicação, mas pela sua incidência sobre a hipótese submetida ao Judiciário, desde que num determinado significado ou sentido abrangido pela Carta Política. Busca-se, portanto, por meio da interpretação conforme a Constituição, uma harmonia entre a norma interpretada e a constitucional. Encontrar essa compatibilidade pressupõe, evidentemente – e ao contrário das hipóteses em que se declara a inconstitucionalidade – a existência de caminhos diversos à disposição do intérprete, de sorte que, segundo o método que ele julgar mais adequado – no caso o sistemático –, um deles será o eleito para dar solução ao conflito entre os diferentes sentidos que a norma pode oferecer”. 8 PINHEIRO, Rafael Magalhães Abrantes, e MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Sociedade de Risco e Crimes de Perigo Abstrato, disponível em undefined horizontecientifico/article/ view/4387/6672, consultado em 28/09/2012. 9 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato, disponível em undefined content/crime-de- perigo- abstrato, consultado em 28/09/2012.   “A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico”, diz Alexandre de Moraes, “e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico”. 10 É justamente em situações tais que há de ser concretizada a interpretação conforme a constituição, de modo a extrair do texto normativo leitura que o compatibilize com a Constituição Federal, bem como afastar leituras que com esta conflitem. Nos ensina Luis Roberto Barroso  que  “à  vista  das  dimensões diversas que sua formulação comporta, é possível e conveniente decompor didaticamente o processo de interpretação conforme a Constituição nos elementos seguintes: l) Trata-se de escolha de uma interpretação da norma legal que a mantenha com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que o preceito admita. 2) Tal interpretação busca encontrar um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta da leitura de seu texto. 3) Além da eleição de uma linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras interpretações possíveis, que conduziriam a resultado contrastante com a Constituição. 4) Por via de consequência, a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal”. 11 Pois bem: Luiz Flávio Gomes, socorrendo-se da lição de Palazzo, sustenta que “...o princípio da ofensividade no Direito penal tem a pretensão de irradiar suas concretas conseqüências (seus efeitos) em dois diferentes planos: serve “não só de guia  na  atividade legiferante, orientando, portanto, o legislador, no exato momento da formulação do tipo legal, com o escopo de vinculá-lo à construção de tipos legais dotados de um real conteúdo ofensivo aos bens jurídicos socialmente relevantes, senão também como 10 MORAES, Alexandre de, Direito Constitucional, São Paulo: Atlas, 23ª edição 2008, pág. 16. 11 BARROSO, Luis Roberto, Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 7ª edição, 2009, pág. 140.   critério de interpretação, dirigido ao juiz e ao intérprete, para exortá-lo a verificar em cada caso concreto a existência (no fato histórico) da ‘necessária lesividade’ ao bem jurídico protegido”.12 Justamente por isto, resume o referido autor  (grifei):  “todo tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito Penal)”. 13 Na hipótese dos autos, que abrange conduta que, em tese, se adequa ao tipo contido no artigo 28 da Lei 11.343/2006, diz-se comumente que o bem jurídico tutelado é a saúde pública14, o que, entretanto, não passa de uma insustentável abstração, já que concretamente, no âmbito do tipo penal em comento, deve esta ser entendida como o somatório das saúdes pessoais de cada cidadão e, sob tal prisma, afastada aquela abstração, vemos que a tutela se faz, em realidade, à saúde dos usuários de drogas, ou seja, especificamente à saúde de cada um deles, sendo este o perigo concreto a ser analisado.15 Neste sentido a  lição  de  Maria  Lúcia  Karam:  “(...)  é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo (...). Nesta linha de raciocínio, não há como negar a incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal — não importa em que quantidade — e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de 1ógica sustentar que a proteção 12 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no Direito Penal. In As ciências criminais no século XXI. V. 6. RT. São Paulo, 2002, pág. 27/8. 13 GOMES, Luiz Flávio et all. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1ª edição, 2008, pág. 376. 14 Neste sentido, com relação ao artigo 16 da Lei 6.368/76: GRECO FILHO, Vicente; Tóxicos, São Paulo: Saraiva, 11a Edição, 1996, pág. 115; JESUS, Damásio de; Lei Antitóxicos Comentada, São Paulo: Saraiva, 1a Edição, 1995, pág. 68. 15 Não adentraremos aqui na questão pertinente ao crime de bagatela. Muito embora seja outro forte argumento no sentido da ausência de tipicidade material na conduta, inclusive adotada por arestos do Superior Tribunal de Justiça (v. REsp 154.840 e REsp 164.861), a fundamentação aqui seguirá sentido diverso. à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal”. 16 Pois bem: um cidadão pode tentar se suicidar, e não será incriminado por isto. Pode se auto lesionar, e não será criminalizado por isto (exceção feita a tipo inserido no Código Penal Militar, quando existente o especial fim de agir de criar incapacidade física que inabilite para o serviço militar). Pode fazer uso abusivo de álcool ou de cigarros (o que potencialmente os levará à morte por cirrose, câncer, ou outras doenças igualmente graves e penosas, como expressamente o admite e adverte o Ministério da Saúde), e não será acusado criminalmente por isto (aqui a questão é ainda mais complexa, pois nos remete ao tema das “drogas  lícitas  x  drogas  ilícitas”, que será mais à frente analisado). Isto é assim porque o Direito Penal optou por não incriminar/apenar pessoas que já se encontram em situação de vida particularmente delicada, na qual a atuação do Estado enquanto agente repressor somente contribuiria para piorar as coisas. Afinal, uma pessoa que tentou se suicidar, que se auto lesionou, que faz uso abusivo de drogas ainda que lícitas sem que em nenhuma destas situações afete direitos de terceiros, não necessita de reprimenda, mas no máximo de ajuda, tratamento e proteção, ou seja, tudo o que o Direito Penal não pode dar. O mesmo raciocínio se aplica ao uso de drogas.   Se determinadas substâncias de fato causam profundo prejuízo à saúde (sendo novamente aqui estranho que algumas drogas mais nocivas não sejam tornadas ilícitas, enquanto outras menos nocivas o são), ainda que opte o Estado por criminalizar o tráfico (alternativa também discutível, porém estranha aos limites desta causa), não pode punir a autolesão, ou seja, o uso das drogas, porque tal vai de encontro com toda a sistemática que aponta no sentido da ausência de tipicidade conglobante (ou tipicidade material) na conduta dos que praticam lesões contra si mesmos, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana acionar o Direito Penal em detrimento de cidadãos que necessitam, na pior das hipóteses (porque inclusive contra isto possuem, a princípio, plena liberdade para se opor) de auxílio e tratamento, nunca de punição – mesmo que aquelas mal disfarçadas, contidas nos incisos do artigo 28 da Lei 11.343/2006. 16 KARAM, Maria Lúcia, De Crimes, Penas e Fantasias, Niterói: Luam, 1ª edição, 1991, pág. 126.   Aqui nos deparamos com alguns argumentos que, com a devida vênia, não possuem outra qualificação senão o título de hipócritas: “o uso de drogas lícitas não pode se confundir com o uso de drogas ilícitas, porque o uso destas é muito mais gravoso que o daquelas”, dizem alguns. Ora, ora... O uso abusivo de álcool causa a morte de milhões de pessoas anualmente em todo o mundo em razão de intercorrências médicas daí derivadas (e nem entraremos aqui na questão das mortes causadas pela embriaguez ao volante) – mas as bebidas alcóolicas são vendidas a maiores de idade livremente a cada esquina, independentemente do teor alcoólico. Por sua vez o tabagismo leva, igualmente, milhões de pessoas ao óbito anualmente por decorrência do vício até bem pouco tempo incentivado em anúncios e expressões artísticas, a ponto do Ministério da Saúde, na atualidade, fazer campanhas e advertências no verso de cada maço informando que o cigarro pode causar pneumonia, bronquite, câncer, aborto, enfisema, infarto, gangrena, impotência sexual, envelhecimento precoce, além de prejuízos os mais variados ao feto – porém os maços estão ao alcance de todos, em qualquer bar, jornaleiro, posto de gasolina... Enquanto isto, acaso tomemos o exemplo da maconha, atualmente inúmeras pesquisas científicas sérias indicam que seu potencial de dano é infinitamente menor que o do álcool ou do cigarro comum – e jamais se soube que alguém tenha morrido em razão tão-só de seu uso. Qual a lógica, então, das opções legislativas no sentido da incriminação de algumas drogas, e não de outras, senão a lógica das finanças, do lobby, dos financiamentos de campanhas políticas, de políticos comprometidos com conglomerados empresariais transnacionais – e fatores ainda piores? Tal situação viola frontalmente diversos princípios constitucionais, como sustenta Salo de Carvalho: “Aliados aos argumentos decorrentes do princípio da lesividade e da autonomia individual, os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade   e   da   vida   privada   (art.   5°,   X,    CR)    permitem a densificação da tese da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. A ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não-penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física ou psíquica. A variabilidade da natureza do ilícito   tornaria, portanto, a opção criminalizadora essencialmente moral. Todavia é nos princípios de tutela da intimidade e da vida  privada que os argumentos ganham maior relevância. Os direitos à intimidade e à vida privada instrumentalizam em nossa Constituição o postulado da secularização que garante a radical separação entre direito e moral. Neste aspecto, nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções pessoais ou se impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera da interioridade. Assim, está garantido ao sujeito a possibilidade de plena resolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nestes casos (dano ou perigo concreto) haveria intervenção penal legítima”. 17 Mais hipocrisia: “o consumo de drogas financia o tráfico e crimes correlatos”, dizem outros. Ora, enquanto determinadas substâncias forem mantidas na ilicitude, i.e., enquanto a opção legislativa em vigor caminhar no sentido da criminalização da venda de substâncias apontadas como ilícitas, é verdade: o consumo financiará o tráfico, isto enquanto poderia estar a, licitamente, financiar o Estado através do pagamento de impostos, a financiar pesquisas, o tratamento de dependentes químicos, financiar campanhas sobretudo educativas em detrimento de concepções, ideias, ideais e programas preventivistas18 ou (pior) punitivistas19, o controle da qualidade dos entorpecentes, programas de redução de danos, etc.20 17 CARVALHO, Salo de; A Política Criminal de Drogas no Brasil, São Paulo: Saraiva, 6ª edição, 2013, págs. 409/410. 18 “A alardeada necessidade de prevenção às drogas, no sentido de evitar que o próprio uso aconteça, é um obstáculo epistemológico por excelência, porque ela produz continuamente concepções ou sistematizações fictícias como abstinência, dependência inexorável, internação como ideal de tratamento, assim como as condições de sua credibilidade. Parte-se de um critério de verdade que abre caminho para soluções violentas e imediatistas e que não incluem a construção de um projeto de futuro” (ACSELRAD, Gilberta, Drogas: a Educação para a Autonomia como Garantia de Direitos, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 96). 19 “A proibição causa mais mortes do que a cocaína. Quantos anos teriam sidos necessários para que o México tivesse quarenta mil mortos por overdose de cocaína? Acho que quase um século. No entanto, em quase cinco anos, o México teve quarenta mil ou sessenta mil mortos, decapitados, castrados. Horrível” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Guerra às Drogas e Letalidade do Sistema Penal, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 115). 20 “Os custos da proibição para reduzir a produção e o consumo, as baixas da guerra, bem como a perda de potenciais receitas tributárias, sem deixar de considerar o sucesso de políticas mais tolerantes alcançadas no controle do número de usuários, que em sua   Logo, mais uma vez aqui se trata de uma opção política, que não é feita principalmente em virtude de pressões externas decorrentes de uma “guerra às drogas” incrementadora de danos e sofrimentos (sobretudo por intermédio da criminalização dos mais pobres)21 que vem sendo paulatinamente abandonada, ao menos no âmbito de sua política interna22, por seu maior fomentador (e, não por coincidência, um dos maiores vendedores de armamentos do mundo): os Estados Unidos da América. Cabe lembrar que, se afastando do posicionamento até hoje equivocadamente adotado pela Organização das Nações Unidas - ONU, oriundo de “filosofia” imposta pelos EUA, em recente documento internacional fruto de sua Assembleia Geral realizada na Guatemala no ano de 2013, a Organização dos Estados Americanos - OEA, na  Declaração  de  Antígua,  estabeleceu  que  “1.  é  fundamental que no Hemisfério se continue avançando, de maneira coordenada, na busca de soluções efetivas para o problema mundial das drogas, de acordo com um enfoque integral, fortalecido, equilibrado e multidisciplinar, com pleno respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais (...)” (grifei), o que somente vem em respaldo a tudo o que acima consta, eis que o combate ao tráfico ilícito de drogas (enquanto esta for a opção legislativa vigorante) envolve, necessariamente, a observância dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, não podendo o usuário de drogas ser utilizado como mero instrumento no combate ao tráfico, posto que incompatível tal opção com o princípio da dignidade da pessoa humana. maioria não são dependentes, conduzem a uma conclusão lógica e humana. É preciso dizer não à guerra contra as drogas e aderir às políticas de relativo sucesso para os usuários dessas drogas proibidas, como as aplicadas para os usuários das drogas permitidas, como, por exemplo, o álcool e o cigarro” (LOBATO, Ronald, A Economia das Drogas Tornadas Ilícitas, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 86). 21 “Passados 100 anos de proibição, com seus mais de 40 anos de guerra, os resultados são mortes, prisões superlotadas, doenças contagiosas se espalhando, milhares de vidas destruídas e nenhuma redução na circulação das substâncias proibidas. Ao contrário, nesses anos todos, as drogas ilícitas foram se tornando mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas e de seus produtores, comerciantes  e  consumidores  serem  combatidos  como  “inimigos”  nessa nociva e sanguinária guerra” (KARAM, Maria Lúcia, Drogas: Dos Perigos da Proibição à Necessidade da Legalização, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 11). 22 “É importante percebermos que os Estados Unidos estão legalizando inclusive o uso recreativo da maconha, o que sempre foi um tabu. Então, Rosa Del Olmo, que sempre olhou para a questão das drogas em uma perspectiva geopolítica latino-americana, nos faz refletir se vamos esperar primeiro o Império legalizar, dominar a hegemonia dos meios de produção, antes de nós (BATISTA, Vera Malaguti, O Exercício da Brutalidade, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 113). Lembremos aqui as palavras de Kant: “Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim”. 23 Mas a hipocrisia parece não ter fim: “as drogas leves são porta de entrada para drogas mais pesadas e para a prática de crimes mais graves” – dizem, ainda hoje em dia, uns poucos. Afirmação digna da “melhor” filosofia  de  botequim,  oriunda  de  senso comum rasteiro e preconceituoso, não dispõe de mínima comprovação científica24. Contudo, uma coisa é absolutamente certa: a repressão, a criminalização, dificulta ainda mais o tratamento dos dependentes químicos, pois não se pode minimamente acreditar como válida ou frutífera qualquer terapêutica que se inicie com a intervenção da Polícia Militar, passe pela Delegacia de Polícia Civil e perpasse pela Vara ou Juizado Criminal, com toda a carga estigmatizante e traumatizante aí embutida (isto quando o “tratamento” não se inicia através de recolhimentos e internações compulsórias, frutos de políticas fascistas e higienistas adotadas, em pleno século XXI, por certos prefeitos e governadores).25  23 KANT, Immanuel; Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, São Paulo: Martin Claret, 1ª edição, 2004, pág. 58. 24 “Aposta-se, por exemplo, que a maconha é a porta de entrada para as demais drogas, inclusive para o crack. Todavia, não existe qualquer estudo sério que aposte na teoria da “porta de entrada”. Ao contrário, existe uma pesquisa  do  Instituto  de  Medicina  da Academia Nacional das Ciências dos Estados Unidos que concluiu que os padrões na progressão do uso de drogas desde a adolescência até a idade adulta são regulares. Ainda segundo esse estudo, pelo fato da maconha ser a droga ilícita mais fácil de ser encontrada, é natural (e previsível) que a maioria dos usuários de drogas ilícitas comece por ela. Essa mesma pesquisa apontou que a maioria dos usuários de drogas começa pelo álcool e pela nicotina antes da maconha. E nós poderíamos apontar que provavelmente antes do álcool e da nicotina muitos já tinha experimentado café e açúcar, que também são drogas. De igual sorte, uma outra pesquisa, essa da Organização Mundial da Saúde (OMS), apontou que a ideia da maconha ser a “porta de entrada” para drogas mais pesadas (no caso da pesquisa, a relação era com a heroína) é a menos provável das hipóteses. Segundo essa pesquisa, é muito mais provável que o mercado ilegal de droga, que a ilegalidade, seja a verdadeira “porta de entrada para drogas mais pesadas”, na medida em que a proibição    força o encontro do usuário de drogas leves com comerciantes de todos os tipos de drogas” (CASARA, Rubens R.R.; Convenções da ONU e leis internas sobre Drogas ilícitas: violações à razão e às normas fundamentais, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, págs. 31/32). 25 “Vemos essas ações absurdas dos governos de promover internação compulsória dessas populações excluídas, criando vários campos de concentração, porque eles são mandados não para um hospital, mas para verdadeiros depósitos do modelo manicomial mais abjeto que existe. Muita gente sabe que é muito mais uma medida de exclusão social, de higienização, do que de atenção, de algum cuidado que eles precisem. A partir daí, se autoriza essa intervenção do Estado tão negativa; a partir de uma inversão do discurso, atribuindo a situação de miséria social à droga, como se a droga estivesse colocando aquele indivíduo naquela situação de miséria social. Contudo, sabemos que não é isso,   Em suma, deixando a hipocrisia de lado, não afetando a conduta incriminada pelo artigo 28 da Lei 11.343/2006 bens jurídicos de terceiros, e sendo lícita a prática da autolesão, não guardando tal ação pertinência com a saúde ou incolumidade pública, estamos no âmbito do direito constitucionalmente assegurado à dignidade humana, à liberdade, à privacidade e à intimidade de cada cidadão, inexistindo bem jurídico concreta e legitimamente tutelável; logo, carecendo a conduta tipificada de ofensividade, e violando a incriminação os supra citados princípios constitucionais, carece aquele tipo penal de respaldo na Carta Maior, impondo-se o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, o que ora declaro. Neste sentido caminha a melhor jurisprudência pátria, cabendo citar a título meramente exemplificativo os seguintes julgados: PENAL. ART. 16 DA LEI 6368/76. AUSENCIA DE LESÃO A BEM JURÍDICO PENALMENTE RELEVANTE. INCONSTITUCIONALIDADE. (UNÂNIME) A Lei anti-tóxicos brasileira é caracterizada por dispositivos viciados nos quais prepondera o “emprego constante de normas penais em branco (...) e de tipos penais abertos, isentos de precisão semântica e dotados de elaborações genéricas” (ver: Salo de Carvalho, A Política Criminal de Drogas no Brasil: do discurso oficial às razões da descriminalização, Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 33- 34). Diante destes dados, tenho como limites ao labor na matéria, a principiologia constitucional impositora de freios à insurgências punitiva estatal. Aqui interessam primordialmente os princípios da dignidade, humanidade (racionalidade e proporcionalidade) e da ofensividade. No Direito Penal de viés libertário, orientado pela ideologia iluminista, ficam vedadas as punições dirigidas à autolesão (caso em tela), crimes impossíveis, atos preparatórios: o direito penal se  aquelas pessoas estão naquela situação porque não têm acesso à moradia, à educação, à saúde – elas estão privadas da própria cidadania. É claro, pessoas com tal nível de vulnerabilidade social são um prato cheio para na hora em que entrarem em contato com a droga se tornarem dependentes. Mas, a dependência é uma consequência, não a causa dessa situação” (XAVIER, Dartiú, Drogas e Proteção à Saúde, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 79).   presta, exclusivamente, à tutela de lesão a bens jurídicos de terceiros. Prever como delitos fatos dirigidos contra a própria pessoa é resquício de sistemas punitivos pré- modernos. O sistema penal moderno, garantista e democrático não admite crime sem vítima. Repito, a lei não pode punir aquele que contra a própria saúde ou contra a própria vida - bem jurídico maior - atenta: fatos sem lesividade a outrem, punição desproporcional e irracional! Lições de Eugênio Raul Zaffaroni, Nilo Batista, Vera Malaguti Batista, Rosa del Olmo, Maria Lúcia Karam e Salo de Omissis. (Apelação Crime nº 70004802740, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 07/05/2003). 1.- A traficância exige prova concreta, não sendo suficientes, para a comprovação da mercancia, denúncias anônimas de que o acusado seria um traficante. 2.- O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil para produzir lesão que invada os limites da alteridade e afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil. (Apelação Criminal nº 01113563.3/0-0000-000, 6ª Câmara Criminal do 3º Grupo da Seção Criminal, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: José Henrique Rodrigues Torres, julgado em 31/03/2008) Vale lembrar, a título de direito comparado, a situação atual da jurisprudência na Argentina, nas palavras de Zaffaroni: “Tivemos várias leis, que foram mudando as leis segundo a pressão que faziam os Estados Unidos. Finalmente, hoje temos uma lei, bastante irracional como todas, mas, felizmente, a punição do consumidor na lei atual é baixa, e a Corte Suprema declarou que a   punição do consumidor, que a punição da posse para o próprio consumo é inconstitucional”.26 Pelo que foi exposto e devidamente fundamentado, declarada a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006  e sendo portanto atípica a conduta aqui imputada, absolvo sumariamente Omissis com fundamento no inciso III do artigo 397 do Código de Processo Penal. Sem custas. P. Vista ao Ministério Público. Intime-se o acusado acerca da sentença, devendo esclarecer ao próprio OJA se dela pretende recorrer e, após, abra-se nova vista à Defensoria Pública. Transitada em julgado, comunique-se, anote-se, dê-se baixa, oficie-se visando a destruição do entorpecente apreendido e arquive-se. Rio de Janeiro, 18 de abril de 2019. MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO JUIZ DE DIREITO 26 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; Guerra às Drogas e Letalidade do Sistema Penal, Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, volume 16, n. 63 - edição especial, 2013, pág. 117.

DECISÃO - Duração razoável do processo - RJ

Processo nº omissis   SENTENÇA     Omissis   Feito breve relatório, DECIDO.   De início é mister lamentar profundamente a total falta de razoabilidade na duração do presente processo, que vem tramitando há quase seis anos – isto só no primeiro grau de jurisdição – sem que até aqui tenha se encerrado com a entrega da prestação jurisdicional, em absoluta e clara vulneração ao princípio constitucional contido no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.04, que estatui: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramita- ção”. Justamente por conta disso foi relaxada a custódia cautelar do denunciado por excesso de prazo (fls. 121/122), quando este já se encontrava há quase três meses preso em regime integralmente fe- chado, cabendo, entretanto, perguntar: isso basta? A tanto se encon- tra adstrita a garantia fundamental da duração razoável do processo? À soltura do réu, quando excedido o prazo de prisão cautelar? 1 En- tendemos que não, afinal, no dizer do ilustre magistrado Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho “a celeridade... não pode ser uni- camente deferida a réus presos. Os réus soltos também têm o direito de não ficar vinculados indefinidamente a um processo criminal”. 2 1 PENAL. PROCESSUAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. PRONÚNCIA. SUMULA 21 - STJ. EXCESSO DE PRAZO NO JULGAMENTO. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. CONCESSÃO "EX OFFICIO". "HABEAS CORPUS". RECURSO. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no Brasil através do Decreto 678/92, consig- na a idéia de que toda pessoa detida ou retida tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. A jurisprudência tem sido rigorosa no que diz respeito ao excesso de prazo na instrução criminal, fican- do, porém, inerte no que pertine ao próprio julgamento. Considerando que o Paciente aguarda seu julgamento, preso e sem data marcada, a pelo menos 1 (um) ano da data da Pronúncia, configurado está o constrangimento ilegal ao seu direito de ir e vir. Recurso improvido. Concessão da ordem “ex officio”. (RHC 5239/BA, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 07/05/1996, DJ 29/09/1997 p. 48228). 2 Castanho de Carvalho, L.G. Grandinetti. Processo Penal e Constituição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pág. 227;   Não é de agora (na verdade, vem desde Beccaria) que di- versos juristas se debruçam sobre o tema da lentidão da Justiça e, mais especificamente, sobre o grande drama que é a demora de um processo criminal para o acusado, verdadeira “espada de Dâmocles”, mantida sobre a cabeça do réu enquanto não decidida sua “sorte”. Já o grande Rui Barbosa, na magnífica Oração aos Moços, sustentava – em passagem imorredoura: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdo- bra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”. 3 O fundamento maior deste preci(o)so posicionamento está em que a demora do processo não pode servir, ela própria, como forma de punição ao acusado. E se tal ocorreu, não deve ser sim- plesmente olvidado, mormente quando, agora, erigido em garantia fundamental do cidadão o direito à razoável duração do processo. No dizer do eminente Luigi Ferrajoli, “é indubitável que a sanção mais temida na maior parte dos processos penais não é a pe- na – quase sempre leve ou não aplicada – mas a difamação pública do imputado, que tem não só a sua honra irreparavelmente ofendida mas, também, as condições e perspectivas de vida e de trabalho; e se hoje pode-se falar de um valor simbólico e exemplar do direito penal, ele deve ser associado não tanto à pena mas, verdadeiramente, ao processo e mais exatamente à acusação”. 4 Nas palavras do ilustre Aury Lopes Jr., “o processo penal en- cerra em si uma pena (la pena de banquillo), ou conjunto de penas se preferirem, que, mesmo possuindo natureza diversa da prisão caute- lar, inegavelmente cobra(m) seu preço e sofre(m) um sobre-custo in- flacionário proporcional à duração do processo”. 5 E continua o citado mestre do Rio Grande do Sul: “A perpetuação do processo penal, além do tempo ne- cessário para assegurar seus direitos fundamentais, se   3 Barbosa, Rui. Oração aos Moços. São Paulo, Russel, 2004, pág. 47;  4 Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, pág. 588; 5 Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro, Lumen Juris, vol. I, 2008, pág. 133;   converte na principal violação de todas e de cada uma das diversas garantias que o réu possui. A primeira garantia que cai por terra é a da jurisdiciona- lidade insculpida na máxima latina do nulla poena, nulla culpa sine iudicio. Isso porque o processo se transforma em pena prévia à sentença, através da estigmatização, da angústia prolongada, da restrição de bens e, em muitos casos, através de verdadeiras penas privativas de liberdade aplicadas antecipadamente (prisões caute- lares). É o que CARNELUTTI define como a misure di soffrenza spirituale ou di umiliazione. O mais grave é que o curso da pena-processo não é meramente eco- nômico, mas o social e psicológico. À continuação, é fulminada a Presunção de Inocência, pois a demora e o prolongamento excessivo do proces- so penal vão, paulatinamente, sepultando a credibilida- de em torno da versão do acusado. Existe uma relação inversa e proporcional entre a estigmatização e a pre- sunção de inocência, na medida em que o tempo im- plementa aquela e enfraquece esta. O direito de defesa e o próprio contraditório também são afetados, na medida em que a prolongação exces- siva do processo gera graves dificuldades para o exer- cício eficaz da resistência processual, bem como impli- ca um sobre-custo financeiro para o acusado, não ape- nas com os gastos em honorários advocatícios, mas também pelo empobrecimento gerado pela estigmati- zação social. Não há que olvidar a eventual indisponibi- lidade patrimonial do réu, que por si só é gravíssima, mas que, se for conjugada com uma prisão cautelar, conduz à inexorável bancarrota do imputado e de seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) não apenas gera pobreza, senão que a exporta, a ponto de a “intrascen- dência da pena” não passar de romantismo do Direito Penal. A lista de direitos fundamentais violados cresce na mesma proporção em que o processo penal se dilata indevidamente. Mas o que deve ficar claro é que existe uma pena pro- cessual mesmo quando não há prisão cautelar, e que ela aumenta progressivamente com a duração do pro- cesso. Seu imenso custo será ainda maior, a partir do momento em que se configure a duração excessiva do   processo, pois, então, essa violência passa a ser qualifi- cada pela ilegitimidade do Estado em exercê-la”. 6 Contudo, algumas questões preliminares se impõem à cons- tatação e decisão relativa à duração não razoável. A primeira delas concerne a o que se deve entender por  “duração do  processo”,  sendo que a resposta nos é fornecida pelo culto magistrado fluminense An- dré Nicolitt, nos seguintes termos: “...o marco para a análise da con- tagem do prazo é a determinação do sujeito que está sendo investi- gado, o que equivale ao nosso indiciamento. Assim, em nosso sistema processual penal, o prazo começa a correr quando surge a figura do indiciado na fase da investigação”, enquanto que “quanto ao termo final, cremos que coincide com o trânsito em julgado da sentença ab- solutória, condenatória, terminativa ou com a decisão de arquivamen- to do inquérito” 7, restando claro destas lições que, se o presente feito teve início há longo tempo, está ainda mais longe de terminar. Mas, a partir de qual momento a duração deixa de ser razo- ável? Cumpre estabelecer aqui, na esteira dos ensinamentos do refe- rido colega André Nicolitt, duas premissas: “Primeiro, afirmar que a análise da duração razoável do processo deve ser feita em cada caso concreto, não sendo possível uma formulação de regra abstrata e ge- nérica sobre o tema. Em segundo, a análise da razoabilidade tanto pode se dar quando o processo estiver findo ou quando este ainda es- tiver em curso, ainda que a situação de retardo venha ser recupera- da”.8 Em seguida, esclarece: “...verificando-se uma dilação, ou se- ja, um evidente e manifesto prolongamento, passa-se à análise da ra- zoabilidade do prazo de duração, o que deve observar os seguintes aspectos: 1) a complexidade da causa; 2) a conduta dos litigantes; 3) o contexto em que se desenvolveu o processo; 4) a atuação das auto- ridades judiciais e 5) a importância do litígio para os demandantes”. 9 No caso concreto, estamos diante de processo simples, cuja instrução oral se encerrou pouco depois de passado um mês desde o recebimento da denúncia, sendo determinada a manifestação das partes em alegações finais três meses após a instauração do proces- so, aí se iniciando o calvário do réu, fruto de sucessivos pedidos de diligência do Ministério Público, e dos atropelos e desorganização de órgãos do Poder Executivo paralelos à prestação jurisdicional, tais como Delegacias de  Polícia e Instituto de Criminalística.  De  atropelo 6 Lopes Jr., Aury. Op. cit., págs 133/5.; 7 Nicolitt, André Luiz. A duração razoável do Processo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pág. 71; 8 Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 72; 9 Idem. Op.cit., pág. 72;   em atropelo, de atraso em atraso, de protelação em protelação, se arrasta o feito há quase seis anos, i.e., há cerca de dois mil e cem di- as, ou, em suma: um processo que deveria obter sentença em três, ainda não a obteve em setenta meses. O tempo no evolver da marcha processual é apontado por Aury Lopes Jr., em belíssimas palavras, como um paradoxo ínsito ao ritual judiciário: “um juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos pa- ra o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois históri- co, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julga- mento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente, no futuro, será um constante reviver do passado”. 10 Neste ponto não se deve olvidar que se trata o acusado de um cidadão que não voltou a cometer outros crimes desde aquele que lhe é imputado na denúncia ora apreciada, cidadão que se encon- tra plenamente adaptado ao livre e lícito convívio social, que foi en- contrado no endereço declinado nos autos mesmo anos após o início do processo (fls. 220), enfim: continua a ser processado por crime que não passa de mera reminiscência cartorária, que se resume a es- te amontoado de folhas abrangendo, ainda em tese, um pequeno momento da vida pregressa do réu – em nada condizente a sua situa- ção atual – e nada mais. Lembremos  mais  uma  vez  Rui  Barbosa:  “justiça  atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”! A pertinência desta lição avulta no caso concreto, principal- mente quando levamos em conta  que  “como bem identificou o Tribu- nal Supremo da Espanha na STS 4519... quando se julga além do pra- zo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgan- do um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de preven- ção específica e retribuição (muito menos da falaciosa ‘reinserção so- cial’)”. 11 Ou seja, passados quase seis anos, a ninguém mais interes- sa (ou deveria interessar) a condenação do acusado, o que somente traria prejuízo pessoal a ele próprio, e mesmo à sociedade que teria de suportar mais um cidadão sobre quem recairia a pecha de conde- 10 Lopes Jr., Aury. Op. cit., págs 137/8.; 11 Idem. Op.cit., pág. 137;   nado, que passaria a enfrentar dificuldades para empregar-se eis que estigmatizado como, e que possivelmente teria de recorrer novamen- te ao crime como derradeira alternativa para poder sobreviver. Não estaríamos, pois, buscando com o processo penal meios de ressociali- zar o acusado (que já está plenamente ressocializado), mas sim de entregá-lo novamente nas mãos do crime, o que reflete um absurdo contrassenso.   “Por outro lado”, como bem colocam os cultos magistrados Rubens Casara e Mylène Vassal, “a demora irrazoável da relação pro- cessual e o, conseqüente, status de acusado ostentado pelo réu, atentam sobremaneira contra a dignidade da pessoas humana diante, dentre outros fatores, da inexorável estigmatização de quem respon- de a um processo criminal”. 12 Nos defrontamos aqui, em suma, indubitavelmente, com hi- pótese de injustificável duração não razoável do processo, com todas as premissas e consequências de sua caracterização. Que fazer diante disto? Socorramo-nos, mais uma vez, nas lições de Nicolitt: “Na doutrina alienígena, as soluções encontradas para a violação do direito ao tempo razoável do processo em matéria penal têm sido muito variadas. As vias mais discutidas são: a) o indul- to; b) a liberdade condicional; c) a não execução da pena; d) a redu- ção proporcional da pena; e) a atenuante; f) a eximente; g) a remis- são condicional h) a nulidade e i) a prescrição por analogia” 13, sendo que “à luz do ordenamento jurídico brasileiro não podemos falar em uma solução... O que não podemos é deixar de dar efetividade à Constituição e negarmos um direito fundamental”.14 Assim, o brilhan- te magistrado sugere algumas opções, adequadas ao direito pátrio, quais sejam: perempção, perdão judicial, julgamento no estado do processo e aplicação de atenuante genérica, salientando alfim que “não há razão para negar vigência ao mandamento constitucional que instituiu o direito a um processo em tempo razoável. Ao contrário, de- vemos buscar interpretações projetivas que permitam dar vida e con- cretude ao projeto constitucional”. 15 Ressalte-se que o colendo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao menos em duas oportunidades, considerou o princípio da duração razoável do processo aplicando-o para ensejar a diminuição da pena por conta de atenuante inominada (5ª Câmara Criminal, Ape- 12 Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P. O Ônus do Tempo no Processo,in Revista do MMFD. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, pág. 123; 13 Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 118; 14 Idem. Op.cit., pág. 123; 15 Ibidem, pág. 127;   lação nº 700071000902, j. em 17/12/2003, Rel. Des. Luis Conzaga da Silva Moura), e para absolver o denunciado (6ª Câmara Criminal, Ape- lação nº70019476498, j. em 14/06/2007, Rel. Des. Nereu Giacomolli). Sem embargo destas e de outras tantas opiniões da mais al- ta relevância em se tratando de tema vinculado a efetividade de ga- rantia fundamental do cidadão16, que não pode restar como letra mor- ta17 ou dispor de reflexos tão só em tema de prisão cautelar na falta de norma mais adequada a respeito18, e levando em conta que a “me-  ra” declaração de nulidade do feito por decorrência da vulneração ao princípio constitucional em tela (o que de fato se verifica, ressalte-se) não impediria a repetição da ação19, entendemos que a solução mais adequada, em termos processuais e materiais, face a não duração ra- zoável do processo será a extinção deste sem análise do mérito por decorrência da falta de condição da ação, qual seja, o interesse em agir. De fato, se é correto que “o objeto do processo penal”, ao menos naquelas ações de natureza condenatória, nas palavras de Aury Lopes Jr., “é uma pretensão acusatória, vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz atra- vés de uma pena ou medida de segurança”, a utilidade da ação (en- tendida esta como um dos elementos constitutivos do interesse em agir, junto com a necessidade e adequação) somente se fará presente se, ao final, se vislumbre a possibilidade de aplicação de uma pena revestida de todas as suas “funções”.20 Por outras palavras: carecen-16 Nicolitt preconiza a adoção da perempção por analogia; Lopes Jr. sustenta a necessidade de extinção do processo por ilegitimidade do poder punitivo pela desídia do Estado; 17 “...apesar da previsão normativa, os operadores jurídicos não têm impedido ‘o triste espetáculo de inquéritos intermináveis e processos em que os imputados se vêem submetidos durante vários anos a uma dolorosa rotina, que os aproxima, juridicamente, a verdadeiros ´ausentes´(bem vivos nem mortos: nem inocentes nem culpados), o que um Estado de Direito não pode tolerar`”. Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P., op.cit., pág. 125; 18 “Diante desse quadro, volta-se a frisar, o ideal seria uma produção normativa interna que concretizas- se esses conceitos e dissipasse qualquer margem de arbítrio. A ‘ausência de regulamentação legal de um prazo absoluto de duração do processo penal viola o direito fundamental de todo acusado de ser julgado rapidamente sem dilações indevidas. A estipulação por lei desse prazo razoável funcionaria, dentro do ordenamento jurídico de um Estado de Direito, como garantia primária desse direito funda- mental’. Na falta desse referencial normativo, exige-se uma atividade integradora da agência estatal, sob pena de negar-se a garantia em foco”. Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P., op.cit., pág. 129; 19 “Em que pese não haver dispositivo legal que indique a dilação indevida como causa de nulidade, tal óbice seria facilmente suplantado, vez que a nulidade teria fundamento na própria Constituição, dispen- sando assim qualquer outro dispositivo infraconstitucional. Alguns autores ainda resistem à idéia de que o reconhecimento da nulidade não poderia conduzir a um pronunciamento automático de absolvição, o que daria margem a um novo ajuizamento, sendo certo que tal solução em nada resolveria vez que mais uma vez estaríamos diante dos problemas tempo e processo” – Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 124; 20 Não olvidando aqui a precisa lição de Maria Lúcia Karam: “Trabalhando-se com o ordenamento jurídi-  co-penal, como posto, conseqüentemente há de se trabalhar com os fins declarados da pena, fundados nas idéias de retribuição e prevenção positiva ou negativa, muito embora sem deixar de ter claro que tais fins declarados apenas encobrem a realidade de ser a pena mera manifestação de poder, sua real finalidade, assim encoberta, sendo tão somente a de manter e reproduzir as estruturas dominantes em   do, no caso concreto, a pena a ser em tese fixada destas “funções”,  torna-se inútil a ação que visa alcançá-la em tais termos. Ou ainda, e em suma: se a pena é de todo inútil, também inútil será a ação que a persegue.   “Modernamente”, ensina Paulo José da Costa Jr., “a doutrina adotou um posicionamento eclético, quanto às funções e natureza da pena. É o que se convencionou chamar de pluridimensionalismo ou de mixtum compositum. Assim, nos ordenamentos jurídico-penais mo- dernos, ocidentais ou socialistas, as funções retributiva e intimidativa da pena procuraram conciliar-se com a função ressocializante da san- ção”. 21 Ocorre que seja sob o prisma retributivista, seja sob a ótica utilitarista, ou mesmo com base no argumento ressocializante, cons- tatamos que a duração irrazoável do presente feito dá ensejo a que a pena a ser porventura fixada encontre-se totalmente despida de qualquer função. Como não bastasse, portanto, ser oriunda de processo nulo por vulneração ao princípio constitucional da duração razoável do processo, a pena perseguida nesta ação mostra-se de todo inútil, pe- los mais variados aspectos, alguns deles já alhures referidos, cabendo citar: a.) o acusado, passados quase seis anos desde a pretensa prática do crime descrito na inicial acusatória, não é mais a mesma pessoa que, em tese, perpetrou o delito, pelo que estaria o Estado re- tribuindo com um mal a alguém que, passado tanto tempo, vem se limitando a praticar o bem, e cujo mal em tese feito não mais passa do que uma mera reminiscência cartorária; b.) o Estado já retribuiu ao acusado o mal que ele, em tese, perpetrou, submetendo-o a quase três meses de prisão cautelar cum- prida em regime integralmente fechado, bem como à angústia e ver- gonha de se ver processado perante a Justiça Criminal ao longo de quase seis anos; c.) não mais praticando qualquer ilícito penal desde quase seis anos até a presente data, não há que se cogitar da necessidade de aplicação de uma prevenção especial em face do réu, que se pra- ticou aqueles crimes contidos na exordial, com o passar dos anos já  se encontra “redimido moralmente”, como diria S. Tomás de Aquino, que este surge”. Direito Penal e Constituição,in Revista do MMFD. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, pág. 72; 21 Costa Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo, Saraiva, 2002, pág. 142.   e de todo afastado de práticas delitivas, ainda que tenha se mantido vinculado ao processo, residindo no mesmo endereço anos à fio mesmo depois de solto, demonstrando assim claro intuito de colabo- rar com a justiça; d.) a pouca (ou nenhuma...) divulgação que teria uma sen- tença condenatória lavrada neste caso concreto, somada ao tempo decorrido desde o pretenso fato criminoso, do qual poucos (ou nin- guém... Talvez somente nós mesmos, operadores de direito, que aqui estamos a trabalhar...) se lembram, desveste por completo a pena de seu caráter de prevenção geral ou intimidatório; e.) apenar o acusado em nada contribuiria para ressocializá- lo, pelo contrário: estaria a Justiça, em verdade, contribuindo para es- tigmatizá-lo, prejudicando suas “condições e perspectivas de vida e de trabalho” – no dizer de Ferrajoli – duramente conquistadas de ma- neira lícita ao longo de todo o tempo percorrido por este malfadado processo, levando-o a manter contato novamente com o mundo do crime, do qual se vê afastado (se é que nele se inseriu nalguma oca- sião), ensejando perda de emprego, de contato familiar – de autoes- tima, de esperança, da possibilidade de sobreviver condignamente sem ter de sequer pensar em cometer (de novo?) algum crime... Enfim, numa única palavra, mais abrangente, precisa e pro- funda do que todas aquelas que até aqui utilizamos: eventual senten- ça condenatória nestes autos seria, “simplesmente”, injusta. Repito: inútil a pena, inútil o processo que a persegue, e inú- til o processo, ausente o interesse em agir. Ressalto por derradeiro que a e. 5ª Câmara Criminal do Tri- bunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já se debruçou sobre o tema, em acórdão da lavra do eminente Des. Geraldo Prado, acolhen- do os argumentos acima aduzidos e trazendo ainda (vários) outros, como se vê no Recurso em Sentido Estrito 2003.051.00073, de cujo voto vencedor se extrai as seguintes lições: “A própria sociedade, com o tempo, passa a atribuir ao fato outro nível de importância, normalmente menor, reduzindo os apelos coletivos por punição”, ra- zão pela qual “...a demora injustificada em dar resposta aos casos penais impõe que o Estado, por  inoperância  própria,  “abra  mão”  de seu direito de punir porque, na verdade, já o exerceu por meio da submissão do réu a intenso e prolongado sentimento de incerteza e angústia”.   Por tudo o que foi exposto e devidamente fundamentado, declaro extinto o presente processo sem análise do mérito com fun- damento no artigo 3º do Código de Processo Penal, c/c. o inciso VI do artigo 267 do Código de Processo Civil. Sem custas. P.R.I. Vista ao Ministério Público e Defensoria Pública. Inti- me-se pessoalmente o acusado para ciência e, após, dê-se nova vista à Defensoria Pública. Transitada em julgado, oficie-se determinando a inutilização da arma apreendida, comunique-se, anote-se, dê-se baixa e arquive-se. Nova Iguaçu, 21 de maio de 2013. MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO JUIZ DE DIREITO

Voto Condutor: Recebimento de denúncia por crimes cometidos durante a ditadura militar - crimes contra a humanidade

Carta testemunhável - Turma Especialidade I - Penal, Previdenciário e Propriedade Industrial Nº CNJ : 0500068-73.2018.4.02.5106 (2018.51.06.500068-9) RELATOR : Desembargador Federal PAULO ESPIRITO SANTO REQUERENTE : MINISTERIO PUBLICO FEDERAL PROCURADOR : Procurador Regional da República RECORRIDO : PARA APURAR RESPONSABILIDADE ORIGEM : 01ª Vara Federal de Petrópolis (05000687320184025106) VOTO-VISTA   Trata-se, inicialmente, de Carta Testemunhável interposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL contra a decisão proferida pelo Juízo da 01ª Vara Federal de Petrópolis/RJ, que deixou de remeter a esta eg. Corte Regional o Recurso em Sentido Estrito interposto pelo parquet contra a decisão que rejeitou a denúncia oferecida em desfavor de ANTÔNIO WANEIR PINHEIRO LIMA pela prática dos crimes descritos no art. 148, §2º (sequestro qualificado), e art. 213 (estupro) c/c art. 226 do CP, cometidos durante a ditadura militar. De pronto, registro que estou de acordo com a solução processual adotada pelo Exmo. Relator no tocante ao provimento da Carta Testemunhável e, ainda, quanto ao julgamento imediato do Recurso em Sentido Estrito, eis que perfeitamente instruído, conforme exige o art. 644 do Código de Processo Penal Divirjo, contudo, do voto condutor no que se refere ao mérito propriamente do Recurso em Sentido Estrito, que tem como escopo a reforma da decisão que rejeitou a denúncia. Passo, então, a expor os fundamentos da divergência. Na peça inicial (fls. 09/34), o Ministério Público Federal imputou a ANTÔNIO WANEIR PINHEIRO LIMA, conhecido como “Camarão”, os crimes de sequestro e estupro. Aduziu o órgão acusatório que, em 05.05.1971, militares e civis do Estado Brasileiro, atuando como agentes do Centro de Informações do Exército (CIE), sequestraram Inês Etienne Romeu, na cidade de São Paulo, tendo mantido a vítima em cativeiro e a levado, em 08.05.1971, para a Casa da Morte, centro de prisão e tortura clandestino do Exército Brasileiro, em Petrópolis/RJ. Prossegue narrando que, entre 07.07.1971 e 11.08.1971, no interior da Casa da Morte, exercendo a função de vigia da Casa, ANTÔNIO manteve a vítima, contra sua vontade, em centro ilegal de detenção, ameaçando-a, e, inclusive, afirmando que a mataria. Além disso, aduz que, entre 01.06.1971 e 20.07.1971, o denunciado estuprou duas vezes a vítima, manipulando seus órgãos genitais e a obrigando, contra sua vontade, a manter relações sexuais (conjunção carnal) com ele. Para tanto, ANTONIO “ameaçou a vítima, afirmando que a mataria, e utilizou recurso que tornou impossível a defesa da vítima, qual seja, a circunstância de que a vítima foi sequestrada, subjugada, torturada e mantida sob forte vigilância armada”. Relata a denúncia que Inês Etienne foi perseguida e monitorada pelos órgãos de inteligência, em razão de sua militância estudantil e atuação como dirigente das organizações Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, VAR-Palmares e Polop, tornando-se alvo do governo ditatorial militar brasileiro, instaurado após o golpe de 1964.  O MM Juiz Federal rejeitou a denúncia com base na ausência de justa causa (art. 395, III do CPP), pautando-se em três pressupostos: (i) ausência de arcabouço probatório mínimo que fundamentasse a imputação; (ii) extinção da punibilidade pela Lei 6.683/79 (Lei de Anistia); (iii) extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. O Exmo. Des. Fed. Paulo Espírito Santo, em seu voto, não se debruçou sobre o fundamento da ausência de justa causa aventado pelo magistrado de primeiro grau, mas limitou-se a rejeitar a denúncia com amparo na extinção da punibilidade dos delitos, seja pela anistia, seja pela prescrição da pretensão punitiva. Sustentou o Relator que a constitucionalidade da Lei 6.683/79 fora confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº 153, sem, contudo, tratar propriamente da tese de inconvencionalidade da referida lei frente à Convenção Americana de Direitos humanos, como advoga o MPF. Afirmou que não havia qualquer ato normativo interno que conferisse aos crimes de sequestro e estupro a característica de crimes contra humanidade. Frisou que o Brasil não subscreveu a Convenção sobre imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, incidindo os prazos prescricionais do art. 109 do Código Penal. Em seguida, argumentou que o Brasil só reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 03 de dezembro de 1998, e, por conseguinte, aquele Tribunal não teria competência para os fatos anteriores. Além disso, sustentou que as decisões oriundas de Tribunal Internacional possuem “caráter meramente declaratório”. Concluiu declarando que não seria possível “deixar de aplicar o direito como em vigor está” e que a reabertura do caso quase 47 anos depois soa como “uma tentativa de vingança institucional”.    É uma breve síntese.                                                       De plano, afasto a alegação preliminar do Ministério Público Federal. Entendo que houve fundamentação mínima a fim de satisfazer a exigência do art. 93, IX da Constituição Federal. Embora o tenha feito de forma sucinta, fato é que o magistrado a quo expôs suas razões para amparar a rejeição de denúncia. Sendo assim, não há que se falar em anulação do provimento judicial ora sob análise.  Passo a analisar os fundamentos apresentados pelo juízo a quo para rejeitar a denúncia. Inicialmente, cabe registrar que está equivocado o MM Juiz quando associa o termo justiça de transição à tribunal de exceção. Vejamos o que disse o MM Juiz:       “À fls. 1482 consta cópia da capa de peças de informação autuadas no âmbito MPF sob o nº 1.30.001.006267/2012-58, que contém o seguinte título de capa: “Representação do coordenador do Grupo Justiça de Transição do RJ visando à apuração de mortes e desaparecimentos de militantes políticos, ocorridos no Estado do Rio de Janeiro durante o regime de exceção”. Esse documento indica a criação de um “grupo” no âmbito do MPF com o nome de “Justiça de Transição”. Isto parece indicar a criação pelo MPF de um simulacro de tribunal de exceção. O inciso XXXVII do art. 5º da Constituição estabelece o seguinte: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. A proibição de existência de juízo ou tribunal de exceção também é um direito humano. A violação dessa norma também ofende a dignidade humana”. A expressão Justiça de Transição (e suas variações) é reconhecida no mundo inteiro como uma série  de esforços e práticas adotadas pela sociedade civil e por instituições governamentais a  fim de garantir, a partir da revelação de fatos que envolveram graves violações aos direitos humanos em determinado período histórico, a reparação das vítimas, a responsabilização dos agressores, e a promoção de políticas de reconciliação. Tudo isso com a finalidade de evitar, não só uma reprodução idêntica de períodos passados, mas a permanência e repetição das políticas de Estado violadoras de Direitos Humanos, com novas roupagens e contornos. Afinal, “dizem que a história não se repete, mas rima”[1]. Esta noção do que venha a ser Justiça de Transição é tratada, por diversas vezes, na Coletânea de artigos lançada pelo próprio Ministério Público Federal (Justiça de Transição – Direito à Memória e à Verdade: boas práticas)[2], da qual extraem-se as seguintes definições, apoiadas na Organização das Nações Unidas e na entidade não governamental Centro Internacional para a Justiça Transicional: Assim, a Organização das Nações Unidas definiu justiça transicional como o conjunto completo de processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma sociedade para superar o legado de uma larga escala de abusos contra os direitos humanos no passado, a fim de assegurar responsabilização, a administração da justiça e reconciliação. Essas medidas podem ser judiciais ou não judiciais, incluindo persecução criminal, reparações, busca da verdade, reformas institucionais, expurgos de funcionários ou a combinação delas. Em sentido parecido, a respeitada entidade não governamental Centro Internacional para a Justiça Transicional (International Center for Transitional Justice – ICTJ) publica em seu sítio de internet que justiça transicional é o conjunto de medidas judiciais e não judiciais que têm sido implementadas por diferentes países para reparar um legado de massivos abusos aos direitos humanos. Essas medidas incluem responsabilização criminal, comissões da verdade, programas de reparação e vários tipos de reformas institucionais. Deste breve panorama, revela-se que Justiça de Transição não diz respeito somente à atuação do Poder Judiciário, e, por certo, não guarda qualquer relação com implantação de um juízo ou tribunal de exceção. Pelo contrário, busca-se, neste feito, a apuração de crimes previamente tipificados no Código Penal à época dos fatos por juízo definido pelas normas de competência judiciária, amparada no respeito ao devido processo legal, além de, claro, em todas as garantias constitucionais, supralegais, e legais a que faz jus qualquer acusado processado criminalmente em um Estado Democrático de Direito. Ultrapassada essa questão, passo a refutar, ponto a ponto, as razões externadas pelo magistrado a quo para rejeitar a denúncia, bem como os argumentos expendidos pelo Exmo.  Relator em seu voto. (i) Do farto acervo probatório apto a embasar o recebimento da denúncia O MM Juiz ao se debruçar sobre o acervo probatório acostado aos autos no momento do oferecimento da denúncia, afirmou que não havia “qualquer indício de existência real da  narrativa ali descrita”. Sustentou que os “únicos documentos apresentados pelo MPF para fundamentar toda a acusação são as cópias de certidões emitidas pelo escrivão da 3ª auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, emitidas em outubro de 1979 (fls. 69/70) e janeiro de 1979 (fls. 71/72)”. Prosseguiu apontando: “Todas as demais peças que instruíram a denúncia, não se caracterizam como documentos que possam servir como prova de fatos no juízo penal. Reportagens – não importa a quantidade -  não constituem documentos. Entrevistas não constituem documentos. Deduções não constituem documentos. Sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros não constituem documento. Petições e decisões judiciais proferidas em âmbito de medidas cautelares não constituem documentos.   Note-se que as declarações de Inês Etiene constantes de termo lavrado na sede da OAB/RJ (cópia de fls. 384/387), foram prestadas em 05/09/1979. Ou seja, OITO ANOS após o tempo do  crime segundo a denúncia. Além disso, nesse termo consta a expressa ressalva no sentido de que o “relatório” (cópia de fls. 390/402), datado de 18/09/1971 e assinado por Inês, constitui uma “reprodução feita nesta data, daquele inicialmente escrito em 18 de setembro de 1971, com algumas correções e adições, tornadas necessárias, em face do decurso do tempo e de fatos supervenientes”. Assim, evidentemente, o denominado “relatório” de fls. 390/402 também não constitui documento”. Logo em seguida, o magistrado passou a traçar um histórico da condenação de Inês Etienne Romeu pela Justiça Militar, parecendo sugerir que as punições penais a ela infligidas, de alguma forma, desacreditam seu relato como vítima de crime sexual e de sequestro. Ou, ainda, que os atos supostamente praticados contra ela durante o período de cárcere se justificam diante dos crimes pelos quais fora condenada. Observe-se: “De acordo com a certidão de fls. 69/70, Inês Etienne Romeu foi condenada pelo Superior Tribunal Militar à pena de prisão perpétua pelo crime do art. 28, § único do Decreto Lei nº 898/69, reduzindo a pena para 30 anos, na forma do artigo 51, do Decreto Lei nº 898/69. Ainda de acordo com tais documentos, “o Juízo, por despacho de 21/8/79, ajustou a pena da sentenciada para 8 anos de reclusão, correspondente a pena mínima prevista no parágrafo único do artigo 26, da vigente Lei de Segurança Nacional (Lei nº 6.620/78)”. De acordo com a certidão de fls 71/72, Inês Etienne Romeu “também respondeu a processo pela 1ª Auditoria de Aeronáutica da 1ª. CJM, sendo condenada em sessão de 1/9/1972, à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão, como incursa no art. 14 do Dec. Lei nº 989/69, cuja decisão foi confirmada pelo Superior Tribunal Militar. Dessa forma, por essas certidões, resta provado que Inês Etienne Romeu foi condenada pela Justiça Militar, por sentenças transitadas em julgado, pela prática dos crimes de sequestro seguido de morte (art. 28 § único do Decreto Lei nº 898/69) e de associação a agrupamento que, sob orientação de governo estrangeiro ou organização internacional, exerce atividades prejudiciais ou perigosas à Segurança Nacional. (art. 14 do Decreto Lei nº 898/69).” Assim, com base não só em prejulgamentos e desqualificações da vítima, mas em todo o contexto  histórico em que se deram os fatos (vigência de ditadura militar), o magistrado ignorou o farto arcabouço probatório reunido pela acusação que, permite, sem dúvidas, o recebimento da denúncia, uma vez que se exige nesse estágio processual apenas a prova da materialidade e a presença de indícios mínimos de autoria[3]. Inicialmente, cumpre observar, como bem ressaltado pelo MPF, em seu parecer, que a prisão de Inês Etienne Romeu fora amplamente reconhecida pelo Estado brasileiro, em mais de uma ocasião, desde a data de 05.05.1971. Além disso, é incontroverso que Inês permaneceu encarcerada até 29.08.1979. Trago aqui trecho do parecer em que o ponto fica bem explicado: “De plano, conforme reconhecido pelo próprio magistrado de primeiro grau, a prisão de Inês Etienne Romeu em 05/05/1971 foi reconhecida pelo Estado brasileiro, conforme certidões expedidas pela 3ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar (Rio de Janeiro). Com efeito, tal certidão consta às fls. 69/70 dos autos de origem, e atestam que Inês foi condenada pelo Superior Tribunal Militar à pena de 30 anos, tendo ocorrido o trânsito em julgado em 23/08/1979. Aduz, ainda, que a pena foi ajustada pela 3ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar para 8 anos de reclusão, a qual foi considerada cumprida em 5/5/79, sendo expedido o competente alvará de soltura” e sendo a sentenciada posta em liberdade em 29/08/1979. Declara, por fim, que “INÊS ETIENNE ROMEU, cumpriu a pena imposta por este Juízo, no período compreendido de 5/5/71 até 5/5/79.  Outrossim, a 3ª Auditoria do Exército da 1ª Circunscrição Judiciária Militar reiterou a informação de que Inês estava presa desde 05/05/71 na certidão acostada às fls. 71/72 dos autos de origem. Como atesta o próprio órgão militar, a vítima foi libertada apenas em 29/08/1979, e, neste ano, prestou diversos depoimentos acerca do período de seu cativeiro, das barbaridades que sofreu e do local em que mantida encarcerada, sendo que o primeiro deles foi à Ordem dos Advogados do Brasil em 05/09/1979 (fls. 384/387 dos autos de origem). Na ocasião, foi ainda juntado relatório e anexo, redigido pela vítima e datado de 18/09/1971, acerca dos acontecimentos ocorridos durante o cárcere (fls. 390/402 e 403/405 dos autos de origem).” É possível perceber que Inês prestou seu depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil apenas uma semana depois de ser posta em liberdade, ou seja, no primeiro momento em que foi  possível revelar as ofensas sofridas. Assim, não se pode negar a autenticidade do relato exclusivamente com base no transcurso de 8 anos desde a data dos fatos, como fez o magistrado a quo. Consigno que a ressalva contida no depoimento à OAB de que o Relatório produzido em 18.09.1971 e assinado por Inês teria sido corrigido e aditado em algumas partes, a fim de  contemplar fatos supervenientes, em nada modifica a sua natureza. As afirmações ali contidas constituem-se em declarações da ofendida. O Superior Tribunal de Justiça sedimentou, em sua jurisprudência, que “a palavra da vítima, como espécie probatória positivada no art. 201 do CPP, nos crimes praticados - à clandestinidade - no âmbito das relações domésticas ou nos crimes contra a dignidade sexual, goza de destacado valor probatório, sobretudo quando evidencia, com riqueza de detalhes, de forma coerente e em confronto com os demais elementos probatórios colhidos na instrução processual, as circunstâncias em que realizada a empreitada criminosa”[4] Nota-se, portanto, que mesmo em um cenário de normalidade democrática, o Judiciário reconhece a desvantagem processual dos ofendidos nos crimes praticados à clandestinidade. Maior razão, portanto, em se atribuir maior relevância às narrativas por eles apresentadas quando os crimes denunciados forem inseridos em uma conjuntura de violações sistemáticas e generalizadas de direitos, já que o aparato estatal atuava para esconder os atos de seus agentes e obstar a apuração dos delitos. Cumpre transcrever alguns trechos do que fora relatado por Inês em 1979, a fim de que se mostre a  clareza das declarações. Primeiramente, descreveu Camarão nos seguintes termos:  “12. Camarão – baixo, claro, natural do Ceará. Sua família reside em Fortaleza. Seu nome real é Wantuir ou Wantuil. É do Exército e fez parte da segurança pessoal do Presidente João Goulart. Disse me que “Breno” (Carlos Alberto Soares de Freitas) foi o primeiro “terrorista” que esteve preso naquela casa. É uma espécie de caseiro do local, lá permanecendo durante todo o tempo acompanhado por outro elemento (inicialmente foi o Raul, depois Pardal). É de baixa instrução.” Em seguida, após uma série de torturas e tratamentos degradantes, Inês relata episódio em que  os militares lhe ofereceram “uma saída humana”: o suicídio. Este suicídio, de acordo com ela, deveria ocorrer em local público. A vítima deveria se atirar sob a roda de um ônibus. Porém, no momento em que deveria fazê-lo, começou a chorar e gritar. A partir daí, conta os castigos sofridos, mencionando expressamente os estupros realizados pelo acusado como punição:         “Minha atitude começou a despertar a atenção de populares e imediatamente fui reconduzida para a casa. Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, “telefones”, palmatórias. Espancaram-me no rosto, até ficar desfigurada. A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais. “Márcio” invadia minha cela para “examinar” meu ânus e verificar se “Camarão” havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo “Márcio” obrigou-me a segurar em seu pênis enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período fui estuprada duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades”. Todavia, para além da palavra da vítima, nestes autos, existem inúmeras outras provas colhidas durante a fase investigatória que respaldam as declarações de Inês, como é o caso da busca e apreensão na casa do investigado deferida pelo juízo da 4ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (processo nº2014.51.01.020100-0); a quebra de sigilo de dados telefônicos de terminal ligado a “Camarão” (processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101); admissão pelo acusado perante o MPF, de que era, à época dos fatos, caseiro da Casa da Morte; e, ainda, o reconhecimento do mesmo, por fotografia, pela vítima Inês Etienne Romeu, antes de falecer. Mais uma vez, transcrevo trecho do recurso ministerial destacado pelo parquet, em parecer, na qual o MPF refaz os passos investigativos e demonstra como as provas que instruem a presente ação penal foram reunidas: “Para a identificação do caseiro “Camarão” como sendo o denunciado ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA foi empreendida, pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, longa coleta de informações e reconstrução histórica dos eventos, detalhadamente descrita na denúncia – à qual, por brevidade, ora se reporta. Com efeito em decorrência da cautelar deferida pelo Juízo da 4a Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (Processo no 2014.51.01.020100-0 – Busca e Apreensão), e cumprida a diligência na casa do falecido Ten. Cel. Paulo Malhães, foi localizada uma agenda que trazia uma anotação “Camarão”,  acompanhada de um telefone fixo (791-4730). Certamente se tratava do tal caseiro da Casa da Morte, até porque é sabido (e até confessado pelo próprio Malhães), que o falecido Ten-Cel era ligado ao CIE e atuou durante anos na “Casa da Morte”. É claro que Malhães conhecia Camarão, e alta a probabilidade (até pela peculiaridade do apelido) que o Camarão da agenda fosse aquele descrito como o caseiro da Casa da Morte. Requerido o afastamento do sigilo de dados telefônicos do terminal indicado na agenda e deferido o pedido, o telefone obtido foi consultado em bases de dados escaneadas de listas telefônicas antigas no Projeto Oi Futuro, obtendo-se a informação de tratar-se de telefone de Fernando Gonçalves de Almeida, natural da cidade de Nilópolis e empresário do ramo de transportes na Baixada Fluminense, sócio de diversas empresas de ônibus do Grupo FGA, integrado pelas empresas Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Glória e Viação Ponte Coberta.  Assim, o MPF obteve uma revista do grupo FGA que, ao relatar a origem do grupo e fazer um inventário dos funcionários, “amigos” e “colaboradores” das empresas de ônibus, trouxe fotos do Ten-Cel. Paulo Malhães e de “Camarão”! Também se vê Luiz Claudio Vianna, vulgo Dr. Luizinho, figura ligada à Casa da Morte de Petrópolis. A revista está nos autos da cautelar. Notem-se as fotos das páginas 48 (Malhães), 49 (Dr. Luizinho) e 82 (“Camarão”) da revista (fls.89, 90 e 123 do processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101). O investigado é retratado apenas pelo apelido. O que é interessante observar é que a foto constante da revista foi tirada no sítio do Coronel Paulo Malhães!!! Observe-se bem a pilastra com pastilhas coloridas, que pode ser vista nas fotos extraídas de seu computador, apreendido no local, acostadas pelo MPF no CD constante dos autos do processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101.  Em contato com a viúva do Tenente-Coronel Malhães, conseguiram-se dois telefones que supostamente seriam de “Camarão”: (21) 981484898, e (22) 30213082, que são indicativos de telefones na Região dos Lagos. Ainda segundo a viúva do Coronel, “Camarão” poderia chamar-se Vandir ou Valdeir, e teria sido “dono” de um posto de gasolina em Seropédica que teria as iniciais de seu nome na razão social da empresa: “VPL”. Realizado o cruzamento dos dados com as informações constantes das listas da Brigada Paraquedista e pesquisas realizadas na internet, foi verificado que ANTONIO WANEIR (ver documentos anexos nos autos do processo n.º 0023113-23.2014.4.02.5101):   a) realmente esteve envolvido com crime por meio de arma de fogo na região dos Lagos, mais precisamente em Araruama, sendo que a notícia indica tratar-se de indivíduo conhecido como “Camarão”; b) realmente foi ligado a um Posto de Gasolina, como mostram informes da Justiça do Trabalho. Ampliando a pesquisa pelo uso dos sistemas eletrônicos disponíveis ao órgão acusatório, o MPF pôde então confirmar que ANTONIO WANEIR: 1) é natural do Ceará, embora haja informações imprecisas de que nasceu em Fortaleza ou Quixeramobim;   2) é residente em Araruama, na Região dos Lagos;   3) tem telefone celular que coincide com aquele obtido anteriormente: (21) 81484898; 4) foi efetivamente sócio de um posto de gasolina chamado VPL até o ano de 2000; 5) tem larga folha de antecedentes, além da tentativa de homicídio recente (como eram as informações de agentes da ditadura que o conheciam), furto, lesão corporal, porte de arma; 6) sua foto é muito parecida com a foto da Revista da empresa de ônibus, cuja legenda aponta tratar-se de “Camarão”;  7) De seu CNIS consta anotação de vínculo empregatício com as empresas Viação Ponte Coberta e Expresso Nossa Senhora da Glória Ltda, ambas do grupo econômico da Revista onde sua foto foi impressa. O resultado das interceptações do processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101 confirmou que o denunciado ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA tratava-se de “Camarão”, referido pela vítima Ines Etienne Romeu como carcereiro da Casa da Morte e responsável pelos crimes contra ela praticados. De fato, em várias ligações, faz-se referência a “Camarão”, inclusive tendo os interlocutores dito expressamente que, para despistar o seu passado, o denunciado não gostava de usar o apelido “Camarão”, preferindo ser chamado de “Neir” (diminutivo de “Waneir”). (…) Deferida judicialmente a condução coercitiva de ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA, depois de fugir do MPF e da Comissão Estadual da Verdade e esconder-se no interior do Ceará, o então investigado foi ouvido na Procuradoria da República no Ceará, na cidade de Fortaleza em 2014, oportunidade em que confessou ser o caseiro da Casa da Morte! Negou, em seguida, a prática de qualquer delito, dizendo que era apenas vigia da casa (Termo de Depoimento e mídia constantes dos autos do Processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101 e do PIC nº 30/2013). Todavia, a farsa do depoimento no que tange à negativa da prática de crimes se revelou nos autos da interceptação telefônica, em especial a partir de diálogo obtido por meio da interceptação do terminal (21) 34978034, usado por Francisco Vandi de Lima, um dos irmãos do denunciado ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA (fls. 639-640 do Processo nº 0023113-23.2014.4.02.5101). (…) Os interlocutores comemoram o fato de o denunciado ANTONIO WANEIR ter sido evasivo no depoimento prestado ao Ministério Público Federal (quando disse que era “apenas vigia da casa”). O denunciado foi chamado no diálogo de “malandro” por ter mentido. Os interlocutores deixam claro ainda que o advogado “instruiu” o depoimento de ANTONIO WANEIR para que ele não dissesse a verdade a respeito dos crimes cometidos. Dizem ainda que, passado o depoimento, que Camarão poderia “voltar” do Ceará para sua casa, ou seja, que poderia parar de fugir para esconder-se da Comissão da Verdade e do MPF. (…) Relevante destacar, ainda, que posteriormente à confissão do denunciado no sentido de que era o caseiro da Casa da Morte, a vítima Inês Etienne Romeu foi ouvida pelo MPF, consoante mídia constante do volume II do PIC nº 30/2013, ocasião em reconheceu, por fotografia, ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA como sendo, efetivamente, o vigia “Camarão”, que atuava na Casa da Morte, tomando conta da vítima, durante o dia todo, todos os dias, sendo responsável, ainda, pelos abusos por ela sofridos, inclusive sexualmente . Portanto, as provas documental e oral colhidas, desde o depoimento da vítima até o  interrogatório do denunciado – que confessou ser o caseiro da Casa da Morte –, somados às provas decorrentes da interceptação telefônica, das medidas de busca e apreensão no sítio do Coronel Paulo Malhães e na casa do próprio denunciado, bem assim todos os demais elementos probatórios carreados aos autos, apontam o denunciado ANTONIO WANEIR PINHEIRO LIMA como o “Camarão”, agente e caseiro da “Casa da Morte”, em Petrópolis, tendo sido o denunciado autor do sequestro (tendo vigiado e cerceado a liberdade) e ainda dos dois estupros contra a vítima Inês Etienne Romeu.” (fls. 93/95 e 97/99 – grifos no original) Diante de todo o exposto, não há que se falar em ausência de justa causa para ação penal, eis que as provas até aqui coligidas são suficientes para, neste momento processual, autorizar o recebimento da denúncia em desfavor de ANTÔNIO WANEIR PINHEIRO LIMA pela prática dos crimes descritos no  art. 148, §2º (sequestro qualificado), e art. 213 (estupro) c/c art. 226, na forma do art. 51, §2º (redação antiga do Código Penal), todos em concurso material.  (ii) Da inconvencionalidade da Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) - inocorrência de extinção da punibilidade A Lei 6.683, promulgada em 28 de agosto de 1979, ainda durante a ditadura militar, concedeu “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”. Além disso, também foram englobados pela referida lei os crimes de qualquer natureza conexos com crimes políticos ou praticados por motivação política. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 153, decidiu, em 29.04.2010, sob a Relatoria do Exmo. Ministro Eros Grau, por 7 votos a 2, que a Lei 6.683/79 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Esta decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade pelo STF foi utilizada tanto pelo MM Juiz de primeiro grau quanto pelo Exmo. Relator para reconhecer a extinção da punibilidade dos crimes imputados ao denunciado pelo art. 107, II do CP. O magistrado de primeiro grau afirmou que: “uma vez feito o controle de constitucionalidade da norma, não há mais qualquer sentido em se fazer o alegado controle de convencionalidade”. Por sua vez, o Exmo. Des. Paulo Espírito Santo registrou, em seu voto, que, “muito embora esse sentimento de injustiça seja uma constante quando o assunto é a ditadura militar, minha convicção é no sentido de confirmar a decisão que rejeitou a denúncia, pois o caso está regulado, sem dúvida alguma, pela Lei da Anistia – 6.683/79, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF por ocasião do julgamento da ADPF nº 153 e, portanto, confirmada a anistia aos que cometeram crimes políticos ou conexo com estes no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979”. Todavia, tal entendimento não deve prosperar uma vez que os chamados “Controle de Constitucionalidade” e “Controle de Convencionalidade” são mecanismos diversos de aferição da compatibilidade de uma lei como norma de hierarquia superior, com parâmetros distintos. No caso do controle de constitucionalidade, o paradigma é a Constituição Federal, enquanto que no controle de convencionalidade busca se verificar se as normas de direito interno se adequam aos Tratados de Direitos Humanos  assinados  pelo  Brasil.  É  o  que  a  doutrina  especializada  chama  de  Teoria  da  Dupla Compatibilidade Material[5] . Assim, por si, as diferenças conceituais entre os institutos já nos permitem concluir que a constitucionalidade de uma norma não implica, necessariamente, na sua convencionalidade. Vale ressaltar que foi o próprio Supremo Tribunal Federal que fixou esse entendimento quando reconheceu aquilo que chamou de efeito paralisante da norma supralegal (tratados  internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil) e decidiu pela impossibilidade da prisão civil do depositário infiel (RE 349703, RE 466343 e Habeas Corpus HC 87585). Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal considerou que, muito embora a CRFB autorizasse expressamente a prisão do depositário infiel (artigo 5º, LXVII), a legislação ordinária era inaplicável (teve sua incidência afastada) por colidir com normas de status supralegal – o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7). Note-se que, até o ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal admitia a prisão do depositário infiel, reafirmando, por diversas vezes, a sua constitucionalidade, como se extrai da ementa abaixo transcrita: EMENTA  Habeas  corpus.  Processual  civil.  Depositário  judicial  infiel. Prisão civil. Constitucionalidade. Impossibilidade de exame aprofundado de fatos e de provas na via restrita do habeas corpus. Ordem denegada. Precedentes. 1. Hipótese que não se amolda à questão em julgamento no Plenário desta Corte sobre a possibilidade, ou não, de prisão civil do infiel depositário que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. No presente caso, a prisão decorre da não-entrega dos bens deixados com o paciente a título de depósito judicial. 2. A decisão do Superior Tribunal está em perfeita consonância com a jurisprudência desta Corte no sentido de ser constitucional a prisão civil decorrente de depósito judicial, pois a hipótese enquadra-se na ressalva prevista no inciso LXVII do art. 5º em razão da sua natureza não-contratual. 3. Impossibilidade de exame de fatos e de provas na via restrita do procedimento do habeas corpus a fim de verificar o estado clínico do paciente para decidir sobre o deferimento de prisão domiciliar. 4. Ordem denegada. (STF, HC 92541, Relator(a):  Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 19/02/2008, DJe-074 DIVULG 24-04-2008 PUBLIC 25-04-2008 EMENT VOL-02316-05 PP-01080 RTJ VOL-00206-01 PP-00371 LEXSTF v. 30, n. 357, 2008, p. 379-394) (Grifos adicionados). Poucos meses depois, como já adiantado, o Supremo Tribunal Federal passou a reconhecer o caráter supralegal dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporados ao direito pátrio antes da Emenda Constitucional nº45/2004. Confiram-se os julgados que deram origem ao precedente: PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE  DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDORFIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedorfiduciante  no  âmbito  do  contrato  de  alienação  fiduciária  em  garantia  viola  o  princípio  da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedorfiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (STF, RE 349703, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675) EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (STF, RE 466343, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ OL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165) DEPOSITÁRIO INFIEL - PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel. (STF, HC 87585, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-118 DIVULG 25- 06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00237) De todo esse quadro, extrai-se que é perfeitamente possível que uma lei ordinária seja, em um primeiro momento, reputada constitucional e, posteriormente, à luz dos tratados de direitos humanos com status supralegal, tenha sua inconvencionalidade reconhecida. Deste modo, o pedido formulado pelo Ministério Público Federal – realização do controle de convencionalidade da lei de anistia em face da Convenção Americana de Direitos Humanos – não é inédito ou descabido, tendo em vista que o mesmo raciocínio jurídico já fora adotado pela Suprema Corte do país.  As questões, portanto, que se propõem são relativamente simples: A Lei de Anistia é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos? É possível reconhecer, neste caso, o aludido efeito paralisante da Convenção para obstar a aplicação da Lei 6.683/79? Entendo que a resposta para ambas as perguntas é afirmativa. Explico. Em princípio, é preciso reconhecer que os crimes, tal como denunciados nestes autos, são considerados como crimes contra a humanidade. E, como se verá a seguir, decorre das normas consagradas de Direito Internacional, nelas incluídas a Convenção Americana de Direitos Humanos, o dever do Estado de identificar, julgar e, se for o caso, punir, segundo as regras de processo penal de seu ordenamento interno, os autores desses crimes. O conceito de crime contra a humanidade foi primeiramente formalizado no artigo 6 (c) do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, criado pelo acordo de Londres, em agosto de 1945, para o imediato julgamento e punição dos crimes cometidos pelos oficiais da Alemanha nazista. Foram descritos, inicialmente, como atos desumanos cometidos contra população civil ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, praticados em violação ou não das leis domésticas dos países onde perpetrados. A Organização das Nações Unidas, por meio de sua Resolução 95 (I), no ano de 1946, confirmou os princípios de Direito Internacional consagrados no Estatuto (Princípios de Nuremberg), dentre eles a definição de crime contra humanidade. Como leciona Luiz Flávio Gomes[6] , “já em 1950, como se vê, apareciam as primeiras notas da definição dos crimes contra a humanidade: (a) atos desumanos, (b) contra a população civil, (c) num ambiente hostil de conflito generalizado (durante uma guerra ou outro conflito armado)”. Alguns anos depois, a Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), em seu preâmbulo, aludiu a outras Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas para demonstrar que a ideia de “crimes contra humanidade” e “crimes de guerra” já fazia parte dos princípios internacionais consagrados no momento de sua edição. Cumpre aqui colacionar trecho desse preâmbulo[7] : Os Estados Membros na presente Convenção, Lembrando as Resoluções nº3 (I) e 170 ( II ) da Assembléia Geral das Nações Unidas, datadas de 13 de fevereiro de 1946 e 31 de outubro de 1947, sobre a extradição e o castigo dos criminosos de guerra, e a Resolução n.º 95 ( I ) de 11 de dezembro de 1946, que confirma os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e pelo julgamento deste tribunal, bem como as resoluções n.º 2184 (XXI ) de 12 de dezembro de 1966 e 2202 ( XXI) de 16 de dezembro de 1966, nas quais a Assembléia Geral condenou expressamente como crimes contra a humanidade, por um lado, a violação dos direitos econômicos e políticos das populações autóctones e por outro, a política de "Apartheid". Lembrando as Resoluções n.º 1074 D ( XXXIX) e 1158 (XLI ) do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, datadas de 28 de julho de 1965 e 5 de agosto de 1966, sobre o castigo dos criminosos de guerra e dos indivíduos culpados de crimes contra a humanidade. Constatando que em nenhuma das declarações solenes, atas e convenções que visam a perseguição e repressão dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade se previu a limitação no tempo. Considerando que os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade se incluem entre os crimes de direito internacional mais graves. Convencidos de que a repressão efetiva dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade é um elemento importante da prevenção desses crimes da proteção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, que encorajará a confiança, estimulará a cooperação entre os povos e irá favorecer a paz e a segurança internacionais. Constatando que a aplicação aos crimes de guerra e aos crimes contra a humanidade das regras de direito interno relativas à prescrição dos crimes comuns inquieta profundamente a opinião pública mundial porque impede que os responsáveis por esses crimes sejam perseguidos e castigados. Reconhecendo que é necessário e oportuno afirmar em direito internacional, por meio da presente Convenção o princípio da imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade e assegurar sua aplicação universal. Mais tarde, as notas definidoras de crimes contra humanidade vieram a compor também os Estatutos de Tribunais Penais, incluindo o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma[8]. Nestes estatutos, apenas incorporou-se mais um atributo: a sistematicidade das violações aos direitos humanos. Gomes, então, aponta que “a quarta nota, depois amplamente aceita pelos tribunais penais internacionais e pelos tratados internacionais, é (d) a da generalidade ou sistematicidade dos atos desumanos”. Deste modo, o que se conclui de todo o exposto é que, na década de 70 (período contemporâneo aos fatos tratados nesses autos), há muito já se conhecia a definição de crime de lesa-humanidade, cujas vítimas não são só aqueles indivíduos ou grupos sociais diretamente atingidos pelas condutas, mas toda a humanidade, aviltada em seu próprio sentimento de justiça. Cabe aqui um pequeno adendo: como se infere de sua conceituação, “crime contra humanidade” não descreve um fato típico, entendido como ação ou omissão previamente descrita em lei como crime. A categoria de “crime contra humanidade” refere-se à uma qualificação atribuída, pelas normas de direito internacional, a crimes já conhecidos e comumente previstos nas legislações internas e não um delito autônomo que carece de tipificação[9] . Os delitos imputados são estupro[10] e sequestro[11], figuras típicas previstas em nosso Código Penal em 1971.  É o contexto histórico em que tais crimes teriam sido praticados pelo acusado que determinam que os mesmos sejam considerados como crimes contra a humanidade. Pois bem. Hoje já não há mais dúvidas de que as graves violações de direitos humanos  perpetradas contra a população civil (torturas, espancamentos, ofensas sexuais, sequestros, desaparecimentos forçados, e outros) foram usadas no Brasil, a partir de 1964 e durante todo o regime ditatorial, como mecanismos institucionais de controle e repressão estatal de opositores políticos e perseguidos do regime. Integravam e determinavam, portanto, a política de Estado adotada pelos detentores do Poder à época. Faço referência a um parágrafo do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV)[12] , concluído em 10 de dezembro de 2014, que resume, de maneira precisa, as principais características do regime e não deixa dúvida de que os delitos praticados contra os opositores se amoldam à perfeição ao conceito de crime contra humanidade:            “Conforme se encontra amplamente demonstrado pela apuração dos fatos apresentados ao longo deste Relatório, as graves violações de direitos humanos perpetradas durante o período investigado pela CNV,  especialmente nos 21 anos do regime ditatorial instaurado em 1964, foram o resultado de um a ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro. Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores Relatório, as graves violações de direitos humanos perpetradas durante o período investigado pela CNV, especialmente nos 21 anos do regime ditatorial instaurado em 1964, foram o resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro. Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da  presidência da República e dos ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de com ando que, partindo dessas instâncias dirigentes, alcançaram os órgãos responsáveis pelas instalações e pelos procedimentos diretamente implicados na atividade repressiva, essa política de Estado mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e para o cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres. Ao examinar as graves violações de direitos humanos da ditadura militar, a CNV refuta integralmente, portanto, a explicação que até hoje tem sido adotada pelas Forças Armadas, de que as graves violações de direitos humanos se constituíram em alguns poucos atos isolados ou excessos, gerados pelo voluntarismo de alguns poucos militares”. Da mesma forma, a impossibilidade de um Estado criar, no plano interno, obstáculos legislativos (ou de outra natureza) à punição daqueles que cometeram esse tipo de crime já era vista como regra inescusável pela comunidade internacional no ano em que a Lei de Anistia brasileira foi promulgada. O tema foi tratado em diversas Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, chegando a afirmar-se diretamente, na Resolução nº 3074[13] (XXVIII), aprovada em sessão plenária em 03 de dezembro de 1973, que (i) os crimes de guerra e os crimes contra humanidade, onde quer que tenham sido cometidos, serão objeto de investigação e as pessoas contra as quais houver evidências de que cometeram tais crimes serão submetidas a investigação, prisão, julgamento, e, se culpadas, punidas; (ii) os Estados membros não poderiam adotar medidas legislativas ou de outra índole que pudessem dificultar a prisão, a extradição e a punição desses delitos. Assim, na medida em que o Estado brasileiro impede a persecução criminal de um suposto autor de crime de lesa-humanidade, com base na Lei de Anistia, contraria norma de observância imperativa no cenário internacional (com status de jus cogens)[14]: a obrigatoriedade de investigar e, se for o caso, punir civil e criminalmente a conduta. Diante de todo o exposto, conclui-se que: (a) os crimes contra a humanidade já se encontravam delineados, à época dos delitos denunciados, e eram plenamente reconhecidos pela comunidade internacional; (b) os crimes praticados durante a ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964 são crimes contra humanidade; (c) decorre das normas de jus cogens do direito internacional a proibição da edição de leis internas que inviabilizem a priori a investigação desses delitos. Finalmente, tomando especificamente como parâmetro o Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos, a Lei de Anistia infringe os artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos porque limita o escopo da proteção da vítima e de seus familiares, eis que obsta possível reconhecimento oficial de violações graves aos direitos humanos ocorridas durante a ditatura militar.  Esse tem sido o entendimento reiterado da Jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH).  A Corte, ao julgar o caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil[15] , em 24.11.2010 (data posterior ao julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal), indicou, de forma didática, os dispositivos da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos incompatíveis com a Lei da Anistia Brasileira. A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (pars. 87, 135 e 136 supra) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. Apesar de, nessa ocasião, a Corte tratar dos desaparecimentos ocorridos no contexto do que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia6, a sentença expressamente afirma que a Lei de  Anistia de 1979 não pode impossibilitar a investigação de outros casos de violações graves aos direitos humanos: Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. Quase oito anos depois, o Estado brasileiro foi novamente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Herzog e outros vs. Brasil[16], por não garantir a devida proteção judicial aos familiares da vítima. Com base nas considerações acima, a Corte Interamericana conclui que, em razão da falta de investigação, bem como de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos num contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em detrimento de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog. A Corte conclui também que o Brasil descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, constante do artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado, e aos artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em virtude da aplicação da Lei de Anistia No. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade proibidas pelo direito internacional em casos de crimes contra a humanidade, de acordo com os parágrafos 208 a 310 da presente Sentença. É evidente, portanto, à luz das normas de direito internacional e da interpretação dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que a aplicação da Lei de Anistia para impedir o prosseguimento de processos penais ajuizados em desfavor de supostos autores de crimes contra humanidade viola os artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, além dos artigos 1.1 e 2. No ponto, é imperioso destacar um aspecto relevantíssimo das condenações prolatadas pela Corte. Em ambos os casos, para além da inércia do Estado em adequar a sua legislação interna às disposições da Convenção, a omissão do Estado brasileiro deu-se, principalmente, pela omissão do Poder Judiciário em exercer o controle de convencionalidade de suas leis. Trago aqui fragmentos emblemáticos das já mencionadas sentenças da Corte que corroboram essa afirmação: Caso Gomes Lund vs. Brasil: Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana. No presente  caso,  o  Tribunal  observa  que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos sus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno. Caso Herzog e outros vs. Brasil:   A Comissão Interamericana reconheceu que, após a transição para a democracia, o Estado brasileiro adotou ações que contribuíram para o esclarecimento da verdade histórica da detenção ilegal, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog. Não obstante, a “verdade histórica” constante dos relatórios produzidos pelas comissões da verdade não preenche ou substitui a obrigação do Estado de assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais ou estatais, por meio dos processos pertinentes, motivo pelo qual é obrigação do Estado iniciar e impulsionar investigações penais para determinar as respectivas responsabilidades, em conformidade com os artigos 1.1, 8 e 25 da Convenção. A Comissão salientou que, no presente caso, o poder judiciário brasileiro validou a interpretação da Lei No. 6.683/79 (Lei de Anistia). Em virtude disso, a Comissão considerou que as autoridades jurisdicionais que participaram da investigação da detenção arbitrária, tortura e assassinato de Vladimir Herzog impediram a identificação, julgamento e eventual punição dos responsáveis, e não exerceram o devido controle de convencionalidade a que estavam obrigadas após a ratificação da Convenção Americana, em conformidade com as obrigações internacionais do Brasil decorrentes do Direito Internacional. 175. Além disso, a Comissão recordou que a aplicação de leis de anistia ou outras que eximem de responsabilidade e impedem o acesso à justiça em casos de graves violações de direitos humanos gera um duplo dano. Por um lado, torna ineficaz a obrigação dos Estados de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção Americana e de garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa sujeita à sua jurisdição, sem discriminação de nenhuma natureza. Por outro lado, impede o acesso a informação sobre os fatos e circunstâncias que cercaram a violação de um direito fundamental, e elimina a medida mais efetiva para a vigência dos direitos humanos, qual seja, o julgamento e a punição dos responsáveis, porquanto impede que se coloquem em prática os recursos judiciais da jurisdição interna. Analisando a sentença do Caso Gomes Lund vs. Brasil, Valerio Mazzuoli[17] assim tratou do tema: Em  suma,  o  que  fez  a  Corte  neste  caso  foi  controlar  a  convencionalidade  (de  modo complementar, secundário) da Lei de Anistia brasileira em substituição ao Judiciário nacional, que deveria ter controlado a convencionalidade dessa lei em primeira mão (em face da Convenção Americana) e não o fez. Como já vimos, cabe ao Estado controlar a convencionalidade (interna) das leis, devendo a Corte Interamericana tomar para si a competência de controle (internacional) em caso de inação do Estado ou de julgamento insuficiente, eis que a sua jurisdição é complementar e coadjuvante do Judiciário nacional em matéria de direitos humanos. Foi exatamente o que ocorreu no Caso Gomes Lund perante a Corte Interamericana, em que o tribunal internacional reconheceu não ter o Brasil controlado (como deveria) a convencionalidade da Lei de Anistia, tomando para si a competência (final) de controle.  A consequência prática dessa decisão internacional é que a Lei de Anistia brasileira deixou de ter valor jurídico (é inválida, no sentido já explicado no item 2.3 supra). Ou seja, doravante não poderá o Estado impedir a apuração dos referidos crimes cometidos pelos seus agentes (ditadores ou por quem agiu em nome da ditadura), devendo eliminar todos os obstáculos jurídicos que durante anos impediram as vítimas do acesso à informação, à verdade e à justiça. O que se nota, portanto, é que as condenações do país pelo organismo interamericano decorrem diretamente da resistência do Poder Judiciário em adotar a Convenção Americana como parâmetro de controle de convencionalidade de suas leis internas. Nesse ponto é importante registrar que as decisões proferidas pela Corte Interamerica a são dotadas de caráter vinculante, e nisso se distinguem das recomendações exaradas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ambos os órgãos integram o Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos. À grosso modo, pode-se dizer que à Comissão cabe o papel de recomendar a todos os Estadosparte da Convenção Americana de Direitos Humanos, a adoção de providências para constante evolução  na proteção dos direitos humanos. Já a Corte é órgão jurisdicional, cuja competência se divide em consultiva e contenciosa. A atribuição consultiva consiste na emissão de parecer acerca da interpretação da Convenção (ou outro tratado de direitos humanos) quando um Estado membro da Organização dos Estados Americanos assim o solicite. Por sua vez, a atribuição contenciosa, aspecto mais relevante para o objeto deste feito, consiste na competência para examinar violações do Estado-parte a direito protegido em sua Convenção e aplicar uma sanção, de caráter obrigatório, ao Estado descumpridor. A respeito cumpre citar a doutrina de Flávia Piovesan[18] : A Corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia de que um Estado-parte violou direito protegido pela Convenção. Se reconhecer que efetivamente ocorreu a violação, determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. A Corte pode ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima. A respeito da competência contenciosa da Corte, afirma Antônio Augusto Cançado Trindade: “Os Tribunais internacionais de direitos humanos existentes — as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos — não ‘substituem’ os Tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos Tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais, quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos”. Note-se que a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado. (Grifos adicionados) No âmbito da jurisprudência interna, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se debruçar sobre o tema. Ao julgar que a tipificação do desacato (art. 331 do CP) não violava a Convenção Americana de Direitos Humanos, o órgão pautou-se, em grande medida, justamente na diferença da natureza persuasiva das decisões prolatadas pela Comissão e pela Corte, consignando que haveria mero caráter recomendatório nos estudos e relatórios expedidos pela Comissão. Todavia, na ementa do julgado, constou expressamente que as condenações do Brasil pela Corte adquirem caráter vinculativo. Vejamos trecho da extensa ementa que trata especificamente do ponto: De acordo com o art. 41 do Pacto de São José da Costa Rica, as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não ostentam caráter decisório, mas tão somente instrutório ou cooperativo. Desta feita, depreende-se que a CIDH não possui função jurisdicional. A Corte Internacional de Direitos Humanos (IDH), por sua vez, é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Dire tos Humanos, possuindo atribuição jurisdicional e consultiva, de acordo com o art. 2º do seu respectivo Estatuto. As  deliberações  internacionais  de  direitos  humanos  decorrentes  dos  processos  de responsabilidade internacional do Estado podem resultar em: recomendação; decisões quase judiciais e decisão judicial. A primeira revela-se ausente de qualquer caráter vinculante, ostentando mero caráter "moral", podendo resultar dos mais diversos órgãos internacionais. Os demais institutos, porém, situam-se no âmbito do controle, propriamente dito, da observância dos direitos humanos. Com efeito, as recomendações expedidas pela CIDH não possuem força vinculante, mas tão somente "poder de embaraço" ou "mobilização da vergonha". Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já tenha se pronunciado sobre o tema "leis de desacato", não há precedente da Corte relacionada ao crime de desacato atrelado ao Brasil Conclui-se do voto do Exmo. Ministro que, naquelas hipóteses em que a Corte exerça sua função contenciosa e analise caso em que o Brasil seja parte, suas interpretações serão vinculantes, assim como as determinações a serem adotadas pelo Estado. Deste modo, ao menos desde a primeira condenação brasileira (Caso Gomes Lund), frise-se, ocorrida em data posterior ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 153, o Estado brasileiro (mais precisamente o Poder Judiciário) vem descumprindo as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as quais é obrigado a acatar, já que ratificou, em 1998, a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória prevista no artigo 62 da Convenção Americana. O Exmo. Relator Paulo Espírito Santo consignou em seu voto que a competência contenciosa da Corte só seria prevista para fatos ocorridos depois de 1998. De fato, o Decreto nº 4.463/02, em seu artigo 1º, reconheceu como obrigatória a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998. Todavia,  como  já  demonstrado, o Estado brasileiro não foi condenado pela Corte Interamericana, tanto no caso Gomes Lund como no Caso Herzog, pela promulgação da lei de anistia ocorrida no ano de 1979. Os fatos pelos quais o Brasil foi condenado dizem respeito à  atuação do Poder Judiciário que, em desconformidade com a Convenção Americana, invocou a Lei 6.683/79, após 10.12.98, para reconhecer a extinção de punibilidade dos supostos responsáveis pela prática dos crimes contra humanidade, impedindo sob esse fundamento a persecução penal. Assim sendo, os fatos que ensejaram a condenação brasileira no âmbito do Sistema Interamericano de direitos humanos foram posteriores ao ano de 1998. Ressalto que o tema foi objeto de deliberação e, em ambas as sentenças, a Corte rechaçou as preliminares de incompetência pelo tempo suscitadas pelo Estado Brasileiro, assinalando que “a Corte tem competência para examinar e se pronunciar sobre possíveis violações de direitos humanos a respeito de um processo de investigação ocorrido posteriormente à data de reconhecimento de competência do Tribunal, ainda que esse processo tenha tido início antes do reconhecimento da competência contenciosa.” (Caso Herzog e Outros). Nessa esteira, é evidente que, caso mantida a rejeição de denúncia a partir da aplicação da Lei de Anistia, será manifesta a recalcitrância do Poder Judiciário em exercer o controle de convencionalidade que se impõe a todo e qualquer magistrado, nos termos da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, intérprete máxima da Convenção, e dos próprios Tribunais Superiores. A questão, portanto, se resume a aplicar o direito vigente, desde que compreendido em sua amplitude, inclusive no que diz respeito às obrigações assumidas pelo Brasil no plano internacional. Com base no que fora delineado, entendo que, em razão do conflito entre as disposições da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) e a norma supralegal (Convenção Americana de Direitos Humanos), são inaplicáveis os dispositivos dessa legislação que impedem a persecução penal de acusados de praticar crimes contra humanidade, nos exatos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. (c) Da imprescritibilidade dos crimes contra humanidade Neste voto, já foram estabelecidas as seguintes premissas:  os crimes praticados durante a ditadura militar são crimes contra humanidade, cuja definição já havia sido incorporada às normas jus cogens de direito internacional em 1964; decorre também de normas de caráter obrigatório a proibição da adoção de leis ou mecanismos que impeçam a persecução penal de possíveis autores de crimes de lesa-humanidade; as decisões e interpretações tomadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos são vinculantes e submetem o Estado parte às suas deliberações. Cabe agora enfrentar a questão da imprescritibilidade dos crimes contra humanidade. Tal princípio foi consagrado na Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, aprovada no ano de 1968 e cujo preâmbulo já mencionei nesse voto. A não ratificação pelo Brasil do referido tratado não tem o condão de afastar a obrigatoriedade dessa norma de aplicação erga omnes. É preciso lembrar que, em 1968, o país já vivia há 4 anos em uma ditadura militar, não havendo, por óbvio, qualquer interesse ou incentivo dos governantes em aderir a uma convenção dessa espécie, cujas consequências desfavoráveis lhes seriam diretamente aplicáveis.  Porém, é significativo assinalar que, após o retorno à democracia, abriu-se espaço para que o país avançasse na proteção aos direitos humanos. Apesar de não ter ainda ratificado a referida convenção sobre imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra humanidade, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo no 112, de 6 de junho de 2002, aprovou o texto do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Nele é contemplada inequivocamente a imprescritibilidade dos crimes de competência daquele Tribunal, ou seja, os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra, e de agressão (artigo 5º). Por certo que o Tribunal Penal Internacional só será competente para julgar os autores de crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, mas aqui o relevante é constatar que o Congresso Nacional, ao adotar o texto do Estatuto, reconheceu o princípio de direito internacional de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e formalmente o integrou ao nosso ordenamento. Lembremos que o Estatuto de Roma é também tratado internacional em matéria de direitos humanos, que não fora aprovado pelo quórum especial previsto no art. 5§ 3º da CF, logo, assume o caráter de norma supralegal, cuja consequência é a paralisação da lei ordinária nacional, no caso a aplicação dos dispositivos referentes à prescrição para os crimes de lesa-humanidade. Desta forma, a imprescritibilidade dos crimes contra humanidade não é em nada incompatível com a Constituição Federal, que, inclusive, atesta que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II da CRFB). Ressalto que alguns doutrinadores, a exemplo de Luiz Flávio Gomes[19], consideram, inclusive, que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade esteja contida na própria Constituição, mais precisamente em seu art. 5º, LIV Quais são as três hipóteses de imprescritibilidade no Brasil? A CF, como é sabido, prevê (expressamente) duas hipóteses de imprescritibilidade: (a) o racismo (CF, art. 5º, inc. XLII) e (b) a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático (CF, art. 5º, inc. LIV). Há uma terceira situação de imprescritibilidade, presente no plano internacional, que versa sobre  os  crimes  contra  a  humanidade  (ou  crimes  de  lesa-humanidade).  Essa  espécie  de imprescritibilidade, que na verdade não passa de uma extensão ou complementação (ou seja: de um desdobramento) do que está previsto no citado art. 5º, LIV, da CF, vem dos chamados Princípios de Nuremberg, de 1950 (que foram aprovados e adotados pela ONU). No mais, basta dizer que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já consolidou em sua jurisprudência a incompatibilidade da aplicação de regras ordinárias internas de prescrição com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Vejamos fragmentos dessas decisões que tocam especialmente na impossibilidade de invocação da prescrição como obstáculo à apuração da  prática de crimes contra humanidade. Caso Herzog e Outros vs. Brasil: Em complemento à argumentação citada acima, observa-se que a proibição dos delitos de direito internacional ou contra a humanidade já era considerada parte do direito internacional geral pela própria Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Contra a Humanidade, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 26 de novembro de 1968 (doravante denominada “Convenção de 1968” ou “Convenção sobre Imprescritibilidade”). Levando em conta a resolução 2338 (XXII) da Assembleia Geral das Nações Unidas, a interpretação que se infere do Preâmbulo da Convenção de 1968 é que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade surge da falta de limitação temporal nos instrumentos que se referem a seu indiciamento, de tal forma que essa Convenção somente reafirmou princípios e normas de direito internacional preexistentes. Assim, a Convenção sobre Imprescritibilidade tem caráter declarativo, ou seja, acolhe um princípio de direito internacional vigente anteriormente à sua aprovação. Essa circunstância tem duas consequências principais: a) por um lado, os Estados devem aplicar seu conteúdo, embora não a tenham ratificado; e b) por outro lado, quanto a seu âmbito temporal, deveria aplicar-se, inclusive, aos crimes cometidos anteriormente à entrada em vigor daquela Convenção, já que o que se estaria aplicando não seria propriamente a norma convencional, mas uma norma consuetudinária preexistente. (...) Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, oportunamente, processar e punir assume particular importância diante da gravidade dos delitos cometidos e da natureza dos direitos lesados, especialmente em vista da proibição das execuções extrajudiciais e tortura como parte de um ataque sistemático contra uma população civil. A particular e determinante intensidade e importância dessa obrigação em casos de crimes contra a humanidade significa que os Estados não podem invocar: i) a prescrição; ii) o princípio ne bis in idem; iii) as leis de anistia; assim como iv) qualquer disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para se escusar de seu dever de investigar e punir os responsáveis. Além disso, como parte das obrigações de prevenir e punir crimes de direito internacional, a Corte considera que os Estados têm a obrigação de cooperar e podem v) aplicar o princípio de jurisdição universal a respeito dessas condutas. Caso Gomes Lund vs. Brasil: Este Tribunal já se pronunciou anteriormente sobre o tema e não encontra fundamentos jurídicos para afastar-se de sua jurisprudência constante, a qual, ademais, concorda com o estabelecido unanimemente pelo Direito Internacional e pelos precedentes dos órgãos dos sistemas universais e regionais de proteção dos direitos humanos. De tal maneira, para efeitos do presente caso, o Tribunal reitera que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Destarte, como sucessivas vezes afirmado, cabe ao Estado brasileiro adequar a sua atuação às deliberações da Corte a que voluntariamente se submeteu, o que nesse caso consiste em tornar ineficaz, a partir do controle de convencionalidade, os dispositivos prescricionais quando aplicados a crimes contra humanidade. (d) conclusão Diante de tudo que até aqui foi dito, torna-se inequívoco que o julgamento da ADPF nº 153 pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2010, não esgotou e não poderia esgotar a discussão acerca da eficácia da Lei de Anistia, em especial pela superveniência das condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos anos que se seguiram. Inclusive, foi somente em razão dessa primeira condenação brasileira que se deu a aprovação da Lei 12.528/11, através da qual criou-se a Comissão da Verdade, a fim de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas. Observe-se que o Brasil foi um dos últimos países da América Latina a estabelecer comissão desse tipo. Naquela altura, países vizinhos, como Argentina (2005) e Chile (2006),  por  exemplo,  já  contavam  com  pronunciamentos  judiciais  de  suas  respectivas  Cortes Constitucionais acerca da impossibilidade de aplicação de leis internas de anistia para autores de crimes contra humanidade.                        Mesmo diante de condenações vinculantes da Corte Americana de Direitos Humanos e da existência de um movimento regional de revisões das leis internas de anistia frente ao Pacto de São José da Costa Rica, o país e, mais especificamente o Poder Judiciário, reluta em lidar com o seu passado e adotar um modelo transicional adequado às obrigações jurídicas assumidas no plano internacional. Essa dificuldade de enfrentar as graves violações cometidas em nome do Estado estão amparadas em uma cultura do esquecimento, da qual algumas das consequências, reconhecidas pela comunidade internacional, são a perpetuação de estruturas de poder autoritárias e legitimação de violências policiais e torturas cometidas nos dias de hoje contra a população civil. Assim, diante da existência de conjunto probatório mínimo a embasar o recebimento da  denúncia e do reconhecimento, em face das normas de direito internacional e interno, de que os crimes contra humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis, há que ser recebida a denúncia em face de ANTÔNIO WANEIR PINHEIRO LIMA pela prática dos crimes de sequestro e estupro. Isto posto, DOU PROVIMENTO à Carta Testemunhável para jugar imediatamente o Recurso em Sentido Estrito, e DAR-LHE PROVIMENTO para receber a denúncia, nos termos da súmula 709 do STF, com base na fundamentação supra. É como voto. SIMONE SCHREIBER DESEMBARGADORA FEDERAL [1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Editora: Zahar; Edição: 1ª, p. 21, 2018. [2] Disponível  em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/publicacoes/coletaneas-deartigos/07_18_coletanea_de_artigos_justica_de_transicao. Acesso em: 9 de agosto de 2019. [3] STJ, RHC 109.737/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 28/05/2019, DJe 04/06/2019. [4] STJ, AgRg no AREsp 1275084/TO, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 28/05/2019, DJe 05/06/2019. [5] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. Editora: Revista dos Tribunais – 4ª ed, p. 160, 2016. [6] GOMES, Luiz Flávio. Crimes contra a Humanidade: Conceito e Imprescritibilidade (Parte II) Disponível em https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1633577/crimes-contra-a-humanidade-conceito-e-imprescritibilidade-parte-ii. 09 de agosto de 2019. [7] Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Sistema-Global.-Declara%C3%A7%C3%B5es-e-TratadosInternacionais-de-Prote%C3%A7%C3%A3o/convencao-sobre-a-imprescritibilidade-dos-crimes-de-guerra-e-dos-crimes-contraa-humanidade.html. Consulta em 06 de agosto de 2019. [8] O referido estatuto foi ratificado no ano de 2002 pelo Brasil e incorporado ao ordenamento jurídico interno por meio do Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. [9] Este entendimento não se mostra incompatível com o que fora decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RHC nº 121.835 e por mim sustentado nos Embargos Infringentes 0807725-91.2007.4.02.5101. Isto porque, na ocasião, o STF apenas proibiu que, antes da Lei 12.850/13, a Convenção de Palermo criasse um tipo penal (organização criminosa) e cominasse sanções sem um ato normativo formal interno.                                                                                                                                                                   [10] Cito, exemplificativamente, os seguintes documentos produzidos em âmbito internacional que identificaram o estupro e crimes sexuais cometidos de forma sistemática e generalizada, e empregados como parte da repressão estatal, contra a população civil como crimes contra humanidade: (a) 1945, Control Council Law n. 10, proclamada pelos Estados aliados logo após o final da guerra; (b) 1949, Convenção de Genebra (art. 27) e seu protocolo adicionais I de 1977; (c) 1998, Estatuto de Roma; (d) jurisprudência internacional nos julgamento dos crimes cometidos na ex-Iugoslávia e em Ruanda. [11] Embora o sequestro, em si, não seja expressamente mencionado nos Princípios de Nuremberg, enquadra-se perfeitamente no conceito aberto de “outros atos inumanos”. Da mesma forma, o Estatuto de Roma, em seu art. 7.1, k, possui uma cláusula ampla, a permitir o sequestro, quando praticado em contexto de violações sistemáticas dos direitos humanos. [12] Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf Consulta em: 09 de agosto de 2019. [13]Disponível em: https://undocs.org/es/A/RES/3074(XXVIII)&Lang=E&Area=RESOLUTION. Tradução nossa. Consulta em: 09 de agosto de 2019. [14] “A noção de jus cogens é definida pelo artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que estabelece que “É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. A norma de jus cogens é, portanto, uma norma de Direito Internacional à qual a sociedade internacional atribui importância maior e que, por isso, adquire primazia dentro da ordem jurídica internacional, conferindo maior proteção a certos valores entendidos como essenciais para a convivência coletiva. As normas de jus cogens são também conhecidas como “normas imperativas de Direito Internacional” ou “normas peremptórias de Direito Internacional” ou, ainda, “obrigações erga omnes”, visto que devem valer em todo o âmbito da sociedade internacional. A principal característica do jus cogens é a imperatividade de seus preceitos, ou seja, a impossibilidade de que suas normas sejam confrontadas ou derrogadas por qualquer outra norma internacional, inclusive aquelas que tenham emergido de acordos de vontades entre sujeitos de Direito das Gentes, exceto quando substituídas por outras normas imperativas de Direito Internacional. O jus cogens configura, portanto, restrição direta da soberania em nome da defesa de certos valores vitais. Outra característica importante do jus cogens é a aplicabilidade de suas normas para todos os Estados, ainda que estes não tenham expressamente manifestado sua anuência a respeito, o que se deve a sua importância maior para o desenvolvimento da vida da comunidade internacional.” (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e Direito Comunitário. Editora: JusPODIVM, p. 70-71, 2017.) [15] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Consulta em: 09 de agosto de 2019. [16] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/corte-reabrir-investigacao-herzog.pdf. Consulta em: 09 de agosto de 2019. [17] Id, 2016, p. 211. [18] Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Ed. 14 - São Paulo : Saraiva, 2013. [19] GOMES, Luiz Flávio. DONATI, Patricia. Denúncia Genérica versus Ampla Defesa, Contraditório e Dignidade da Pessoa Humana.  Disponível  em:   https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1628316/crimes-contra-a-humanidade-conceito-eimprescritibilidade-parte-i Consulta em: 09 de agosto de 2019.

Regras de Bangkok e estatuto da primeira infância: prisão domiciliar na execução penal

VISTOS ETC Urgente. Trata-se de execução penal em desfavor da reeducanda G.F.M., condenada à pena de 16 anos, 4 meses e 15 dias de reclusão, inicialmente em regime fechado, pela prática de crime de tráfico (23.5.12 - flagrante em sua residência, juntamente com seu marido com pouco mais de 10 gramas de crack, R$407,00), posse de munição de uso restrito (23.5.12 - 7 munições de arma de fogo), falsificação de documento público (7.7.11 – carteira de identidade falsa), estelionato (7.7.11 – aquisição com documento falso de bens eletrônicos em hipermercado) e furto (7.7.11 - subtração de bens de uma bolsa). Atualmente em regime fechado (fls. 219-20, item 3), pende deliberação sobre prisão domiciliar para cuidado dos filhos. Ao Ministério Público foi oportunizada vista ampla e integral dos autos no prazo legal, tendo postulado pelo indeferimento da prisão domiciliar. A Defensoria Pública, por sua vez, postulou pela concessão do benefício. É em síntese o relatório. Decido. Inicialmente, importante salientar que conforme estudo feito pelo Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ. Pela pesquisa, no Brasil são 367.380 – 6,4% da população prisional do país – maior parte dessas em regime fechado (44.7%), presa por tráfico de drogas (58%), jovens entre 18 e 28 anos (50%), solteiras (57%), cumprindo penas de até 8 anos (54%), sendo mais concentrado esse percentual entre 4 e 8 anos (35%). Conforme a pesquisa, ainda, no RJ, 70% é de ré primária e dentre as grávidas a maioria afirma não receber atendimento ginecológico, com pré-natal incompleto, sofrendo de carências como por exemplo falta d'água para banho, má qualidade da comida, precariedade da higiene local, além de reclamarem do uso indevido de algemas, inclusive no parto. E ainda, segundo o mencionado estudo, "A questão das mulheres encarceradas, especialmente aquelas que experimentam a gravidez e o nascimento de seus filhos na prisão, constitui um dos aspectos mais perversos da opção por uma política criminal repressiva, com foco preferencial na pena privativa de liberdade. Se a situação das mulheres presas configura um dupla sanção, por ser ela considerada como 'criminosa', que ousou violar a lei dos homens numa sociedades patriarcal, no caso de grávidas e de mães de filhos pequenos, estas ainda recebem mais uma punição: são também privadas da convivência com seus filhos, com todas as consequências sociais que decorrem desse distanciamento." Na espécie, está a apenada a pedir por prisão domiciliar para cuidados de quatro filhos, três deles menores de 12 (doze) anos. O Ministério Público ao manifestar-se pela negativa da domiciliar, consignou que "a existência de prole, por si só, não pode ensejar a soltura da Condenada, sob o risco de configurar verdadeiro salvo-conduto a todos os condenados que tenham filhos, de maneira indiscriminada e infundada" (fls. 289-92). Já a Defensoria Pública, por sua vez, ao requerer a concessão, invocou a absoluta prioridade da criança (fls. 298-302). Com razão a defensoria. O art.40, da LEP, exige de todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; sendo que o direito à saúde vem reafirmado no art.41, VII, do mesmo Diploma. Sobre prisão domicliar para cuidados de filho menor, certo é que o art.117 da LEP refere-se tão somente às detentas que cumprem pena em regime aberto, in verbis: "art. 117. Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: (...)III - condenada com filho menor (...).". Porém, o próprio Código de Processo Penal disciplina a prisão domiciliar para presos, sejam provisórios ou condenados. Dispõe o CPP: "Art. 317. A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial." (NR) "Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV – gestante; V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo" (NR) (grifou-se).Atente-se que o inciso V supra foi recém incluído no ordenamento pela Lei n.13.257/16 (Estatuto da Primeira Infância), cujo entrada em vigor foi em 9/3/16.Este Juízo tem a compreensão de que problemas sociais, comportamentais e de segurança pública são muito mais complexos, tanto que leis penais de emergência, recrudescedoras das penas, nunca conseguirão resolver. Porém, no caso deste novo dispositivo, com outro viés, veio a legislação na esteira das Regras de Bangkok, mais abaixo detalhadas, sobre o tratamento de mulheres presas, que complementam as regras mínimas para tratamento de reclusos. Sem confundir a situação da mulher encarcerada com segurança pública, o objetivo desse ordenamento é levar o estado a olhar a questão de gênero, sem discriminações. Muitas das mulheres presas, assim o estão por tráfico e associação para o tráfico, como resultado em boa parte do histórico de violência familiar, abandono material na maternidade e uso de drogas. Destarte, respeitadas opiniões diversas, andou bem a lei. Nada obstante, o que importa é que se antes a previsão de prisão domiciliar era apenas para reeducandos em cumprimento de pena em regime aberto (art.117, da LEP), agora é possível para os presos provisórios e por óbvio também a todos os demais presos, independentemente do regime, com requisitos como se vê mais flexíveis.Além disso, como bem salientou a Defensoria Pública, a Constituição Federal consagra o princípio da proteção integral da criança com absoluta prioridade, conforme art. 227, in verbis: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Sobre o tema, leciona ainda FARIAS[1]: A proteção integral serve, assim, como instrumento vinculante de todo o tecido infraconstitucional, impondo ao jurista compreender toda e qualquer situação concreta de acordo com o que o melhor interesse da criança e adolescente recomendar. Em cada caso concreto, exige-se a construção de soluções derivadas do melhor interesse infanto-juvenil, oxigenando clássicos institutos jurídicos (como a guarda, a filiação e, é claro, o poder familiar e os alimentos). Todo e qualquer instituto concernente a interesse de criança ou adolescente precisa estar sintonizado na frequência da proteção integral constitucional, pena de incompatibilidade com o sistema constitucional. Assim, verifica-se que não se trata de salvo-conduto, conforme aduzido pelo parquet, mas sim de efetivação de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos. No caso concreto, ressalte-se que recentemente, em 19.2.2016, a reeducanda sofreu aborto espontâneo, conforme o ofício de fl. 317. Em que pese não ser o foco principal desta decisão, por óbvio, a situação vivenciada pela reeducanda não pode deixar de ser considerada e merce registro. Especificamente no que se refere à prisão domiciliar, consta do estudo social de fls. 281-4, que a reeducanda possui quatro filhos, dos quais três menores de doze anos. Conforme o parecer técnico à fl. 284, "considerando os relatos apresentados, não existem outros familiares em condições de ter sob seus cuidados os filhos da reeducanda. Os irmãos e a mãe tem tido dificuldades em se responsabilizar pelas crianças, bem como de satisfazer as necessidades básicas, pela falta da mãe. Isso tem trazido consequências negativas no comportamento em casa e na escola, onde o desempenho também acaba prejudicado. Diante do exposto, consideramos que G. tem um vínculo adequado com os filhos, sendo sua principal referência. A presença dela em casa se faz necessária, para permitir que as crianças tenham um desenvolvimento adequado, com suas necessidades materiais e afetivas sendo atendidas de forma satisfatória". Frise-se, não ser viável que as crianças sejam alocadas com a mãe no Presídio Regional de Joinville, visto que o local não tem espaço adequado e é desprovido de condição sanitária satisfatória. Portanto, o único caminho a seguir é o da concessão da prisão domiciliar, haja vista a indiscutível e notória nocividade da privação do contato das crianças com a mãe. Nesse sentido: "Haverá prejuízo de qualquer forma, seja por permanecer na prisão, pelas próprias condições do local e dinâmica prisional, seja por sair do ambiente prisional, pela separação da mãe – que tem a aptidão de ser vivenciada pela criança como uma perda. [...] É necessário, por isso, focar na redução de danos, estudar e aplicar alternativas para as mães cumprirem suas penas ou mesmo aguardar a sentença em liberdade, evitando de todas as formas o encarceramento. Devemos analisar de forma complexa e multifatorial o destino de cada criança, a fim de evitar que os danos causados deixem cicatrizes profundas. Partindo-se da premissa de que os aspectos positivos do encarceramento centram-se no potencial protetivo frente aos cuidados da saúde da mulher e de seu filho e à manutenção do vínculo materno, deve-se questionar, necessariamente, até que ponto os mesmos benefícios não seriam obtidos fora das prisões [...]"[2]. Aliás, considerando a condição de mulher e mãe da reeducanda, importante registrar, a Regra nº 1 de Bangkok[3]: "A fim de que o princípio de não discriminação, incorporado na regra 6 das Regras mínimas para o tratamento de reclusos, seja posto em prática, deve-se ter em consideração as distintas necessidades das mulheres presas na aplicação das Regras. A atenção a essas necessidades para atingir igualdade material entre os gêneros não deverá ser considerada discriminatória". E mais especificamente as Regras 2, 45, 57 e 58: Regra 2: Antes ou no momento de seu ingresso, deverá ser permitido às mulheres responsáveis pela guarda de crianças tomar as providências necessárias em relação a elas, incluindo a possibilidade de suspender por um período razoável a medida privativa de liberdade, levando em consideração o melhor interesse das crianças. Regra 45: As autoridades penitenciárias concederão às presas, da forma mais abrangente possível, opções como saídas temporárias, regime prisional aberto, albergues de transição e programas e serviços comunitários, com o intuito de facilitar sua transição da prisão para a liberdade, reduzir o estigma e restabelecer contato com seus familiares o mais cedo possível. Regra 57: As provisões das Regras de Tóquio deverão orientar o desenvolvimento e a implementação de respostas adequadas às mulheres infratoras. Deverão ser desenvolvidas, dentro do sistema jurídico do Estado membro, opções específicas para mulheres de medidas despenalizadoras e alternativas à prisão e à prisão cautelar, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres infratoras e suas responsabilidades de cuidado. Regra 58: Considerando as provisões da regra 2.3 das Regras de Tóquio, mulheres infratoras não deverão ser separadas de suas famílias e comunidades sem que se considere devidamente a sua história e laços familiares. Formas alternativas de lidar com mulheres infratoras, tais como medidas despenalizadoras e alternativas à prisão, inclusive à prisão cautelar, deverão ser empregadas sempre que apropriado e possível. Nesse ponto, extrai-se do corpo do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, no HC nº 351.494/SP: "De início, impõe-se destacar a entrada em vigor, no dia 9/3/2016, da Lei n. 13.257/2016, a qual estabelece conjunto de ações prioritárias que devem ser observadas na primeira infância (0 a 6 anos de idade), mediante "princípios e diretrizes para a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano" (art. 1º), em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente. A novel legislação, que consolida, no âmbito dos direitos da criança, a intersetorialidade e corresponsabilidade dos entes federados, acaba por resvalar emsignificativa modificação no Código de Processo Penal, imprimindo nova redação ao inciso IV do art. 318 CPP, além de acrescer-lhe os incisos V e VI [...] É perceptível que a alteração e acréscimos feitos ao art. 318 do CPP encontram suporte no próprio fundamento que subjaz à Lei n. 13.257/2016, notadamente a garantia do desenvolvimento infantil integral, com o "fortalecimento da família no exercício de sua função de cuidado e educação de seus filhos na primeira infância" (art. 14, § 1º)" (grifou-se). Importante registrar também a recente notícia veiculada no site do Supremo Tribunal Federal: "2ª Turma: Prisão preventiva de grávida no final da gestação é substituída por domiciliarA Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a conversão em domiciliar da prisão preventiva de uma mulher que, no momento da apresentação da impetração do Habeas Corpus na Corte, encontrava-se com mais de sete meses de gravidez. A decisão foi tomada nesta terça-feira (2) no julgamento do HC 131760. O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, salientou que seu voto se baseou no dever constitucional de proteção do Estado à criança e no artigo 318 (inciso IV) do Código de Processo Penal (CPP), que permite a substituição da pena nesses casos.B.L.C. foi presa preventivamente com base em acusação de tráfico de drogas e associação para o tráfico. A defesa da acusada tentou converter a prisão preventiva em domiciliar, mas o pedido foi negado pelo juízo da 1ª Vara Criminal da Comarca de Carapicuíba/SP, uma vez que, à época, a acusada ainda não estava no sétimo mês de gravidez e, portanto, não se enquadrava no que dispõe o artigo 318 (inciso IV), que permite a substituição da prisão preventiva em domiciliar para gestantes com mais de sete meses ou com gravidez de alto risco. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça (TJ-SP) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em ambos os casos em decisões monocráticas.No STF, a defesa alegou que B.L.C. completou sete meses de gravidez em novembro de 2015, passando a se enquadrar no que dispõe o artigo 318 (inciso IV) do CPP. Disse, ainda, que sua cliente se encontra na penitenciária feminina que não conta com atendimento médico pré-natal. Proteção à criançaEm seu voto, o ministro Gilmar Mendes lembrou que, enquanto sob a custódia do Estado, são garantidos aos presos diversos direitos e garantias fundamentais. Entre esses direitos está o da dignidade da pessoa humana e o que garante às presidiárias que permaneçam com seus filhos durante o período de amamentação. Gilmar Mendes mencionou ainda os artigos 226 e 227 da Constituição, que explicitam o dever de proteção do Estado à criança.No plano das leis infraconstitucionais, o relator citou a Lei 11.942/2009, que alterou a Lei de Execuções Penais para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência – garantia que, segundo o ministro, pode ser estendido aos presos provisórios – e a Lei 12.403/2011, que alterou o CPP para permitir a substituição de prisão preventiva em domiciliar para gestantes com mais de sete meses de gravidez. O ministrou citou ainda disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sobre a matéria.“Não obstante a gravidade do delito, a concessão da prisão domiciliar encontra amparo legal na proteção à maternidade e à infância, como também na dignidade da pessoa humana, porquanto prioriza-se o bem-estar do nascituro, principalmente em razão dos cuidados necessários com o seu nascimento e futura fase de amamentação, cruciais para seu desenvolvimento”, destacou o relator.O ministro votou no sentido de não conhecer do habeas corpus, uma vez que a matéria de fundo não foi objeto de decisão colegiada do STJ, mas de conceder a ordem de ofício para converter a prisão preventiva de B.L.C. em domiciliar. Seu voto foi seguido por unanimidade.A decisão da Turma confirma liminar deferida pelo relator em dezembro do ano passado, que já havia permitido a substituição da segregação cautelar por prisão domiciliar."[4] Mutatis mutandis, conforme tem orientado o Supremo Tribunal Federal, "tendo em conta as precárias condições materiais em que se encontram as prisões brasileiras, de um lado, e, de outro, considerada a delicada situação orçamentária na qual se debatem a União e os entes federados, esta Suprema Corte concluiu que os juízes e tribunais estão autorizados a determinar ao administrador público a tomada de medidas ou a realização de ações para fazer valer, com relação aos presos, o princípio da dignidade humana e os direitos constitucionais a eles garantidos, em especial o abrigado no art. 5º, XLIX, da Constituição Federal" (STA 807/RJ; Relator: Ministro Presidente Ricardo Lewandowski; Julgamento: 23.11.2015). Com base nos fundamentos supra, resta com clareza meridiana a solução que melhor se amolda ao caso concreto: a concessão da prisão domiciliar. Isso nada mais é do que admitir e reafirmar, sempre, que a pessoa da condenada e sua família jamais perderão sua natureza humana e por este motivo serão sempre merecedoras de irrestrito respeito em seus diretos e garantias fundamentais. Este salto ético já foi dado e o atual padrão de civilidade assim exige, bem como a humanidade em paz agradece. Ex positis: Por estarem presentes os requisitos para o deferimento do pretendido, com base no art. 117, inciso III, art. 114, parágrafo único e art. 115, todos da LEP, c/c art. 317 e art.318, II, ambos do CPP, por analogia, DEFIRO A PRISÃO DOMICILIAR favor da reeducanda G.F.M., na seguintes condições: (1) recolhimento domiciliar em período integral, autorizando-se apenas eventuais saídas para acompanhamento e tratamento de sua saúde e dos filhos; (2) comparecimento em Juízo sempre que requisitado e (3) comunicação prévia de mudança de endereço. Deverá ainda a reeducanda informar seu endereço residencial no prazo de 10 dias. Cientifique-se o Assistente Social do Juízo, para confecção de relatório semestral. Requisite-se a imediata apresentação em Juízo. Intimem-se e comunique-se à Administração do ergástulo. Expeça-se o termo respectivo. No mais, aguarde-se o cumprimento da pena em regime fechado, cuja previsão para progressão ao regime semiaberto é a partir de abril de 2017, conforme cálculo de liquidação de penas de fls. 219-20 (item 3).Joinville (SC), 16 de março de 2016.João Marcos BuchJuiz de Direito

Prisão domiciliar concedida à detenta gestante

Autos n° 0034889-37.2011.8.24.0038Ação: Execução da Pena/PROCReeducando: B.E.R.Este Juízo, ao decidir pela prisão domiciliar da detenta, de 25 anos, primária, condenada por tráfico e associação ao tráfico juntamente com o companheiro, no sétimo mês de gravidez, que voluntariamente se entregou na Justiça para cumprir sua reprimenda, assim o faz porque compreende a responsabilidade histórica do Poder Judiciário para com o padrão ético decorrente da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim o faz porque compreende a necessidade de fortalecimento das instituições, no sentido de dar concretude aos direitos e garantias fundamentais. Assim o faz porque exerce sua prerrogativa constitucional irrenunciável da jurisdição.VISTOS ETC Urgente.Trata-se de execução penal em desfavor da reeducanda B.E.R., condenada à pena de 8 anos de reclusão, inicialmente em regime fechado, dos quais 5 anos pela prática de crime equiparado a hediondo e 3 anos por crime comum.Atualmente em regime semiaberto (fls. 107-8), pende análise de prisão domiciliar e de instauração de incidente visado à regressão de regime.Ao Ministério Público foi oportunizada vista ampla e integral dos autos no prazo legal, tendo postulado: 1) pela requisição de incidente disciplinar à unidade prisional e designação de audiência de justificação e; 2) pelo indeferimento, por ora, da prisão domiciliar, ao argumento de que inexiste atestado médico indicando que a gestação seja de risco, bem como em razão do regime de cumprimento da pena em que se encontra a reeducanda (semiaberto), que seria incompatível com a prisão domiciliar (fls. 223-4v).É em síntese o relatório.Decido.1. Prisão domiciliar em razão da gravidez:A apenada, atualmente com quase 25 anos de idade, primária, foi condenada à pena de 5 (cinco) anos de reclusão pela prática de tráfico, mais 3 (três) anos de reclusão pela prática de associação para o tráfico (arts.33 e 35, da Lei n.11.343/06), uma vez que juntamente com seu companheiro foi flagrada no lar praticando os referidos delitos.Tendo cumprido parte da pena, foi-lhe deferida a progressão de regime do fechado ao semiaberto e autorizadas saídas temporárias (fls.107-8 e 130-2). Na segunda saída, acabou não retornando no sétimo dia, sendo considerada evadida, com mandado de prisão expedido (fls.198-9). Seis meses após, em 16/11/15, compareceu voluntariamente na Justiça para se entregar (fl. 206), quando então o mandado de prisão foi cumprido e realizada entrevista social.Constatada a gravidez, já além da trigésima semana de gestação, com parto previsto para o dia 7.2.2016 (fl. 217), requereu a defesa a prisão domiciliar.Dito isto, cumpre avaliar o pedido.Sobre a evasão, a falta será deliberada em procedimento próprio, conforme item 3 abaixo. No momento, apenas registre-se que o retorno voluntário demonstra vontade em dar continuidade ao cumprimento da pena, o que é primordial aos objetivos da execução penal, dentre eles em especial a oferta de condições para a harmônica integração social do condenado (art.1º, da LEP).Já sobre a prisão domiciliar, dispõe o art. 117 da LEP: “Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de: I – condenado maior de 70 (setenta) anos; II – condenado acometido de doença grave; III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV – condenada gestante“ (grifou-se).Pois bem, o art. 40, da LEP, exige de todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; sendo que o direito à saúde vem reafirmado no art. 41, VII, do mesmo Diploma.E mais, atualmente o próprio Código de Processo Penal veio a disciplinar a prisão domiciliar para presos, sejam provisórios ou condenados.Dispõe o CPP:“Art. 317. A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial.” (NR)“Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I – maior de 80 (oitenta) anos; II – extremamente debilitado por motivo de doença grave; III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV – gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidezou sendo esta de alto risco. Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo.” (NR) (grifou-se)Destarte, antes a previsão de prisão domiciliar era apenas para reeducandos em cumprimento de pena em regime aberto (art.117, da LEP). Agora, com este dispositivo a prisão domiciliar será possível para os presos provisórios e por óbvio também a todos os demais presos, independentemente do regime, com requisitos como se vê mais flexíveis, inclusive para gestantes a partir do 7º mês de gravidez.Na espécie, portanto, este o único caminho a seguir, ou seja, da concessão da prisão domiciliar. Não seria prudente a manutenção da apenada no ergástulo até o parto. A precariedade de instalações no Presídio Regional de Joinville, cuja ala feminina é anexa à masculina (não há presídio próprio), frequentemente inspecionadas por este Juízo, objeto inclusive de procedimento próprio instaurado para efeito de eventual interdição do local (autos n. 0003521-05.2014.8.24.0038) é patente. O ambiente é insalubre e as dificuldades no atendimento das questões de saúde são notórias. Isto tudo leva a crer que a manutenção da apenada no ergástulo traria risco a ela e ao nascituro.Isso sem esquecer da nocividade, após o nascimento, seja da permanência do infante no cárcere, seja da privação de seu contato com a mãe.Nesse sentido:“Haverá prejuízo de qualquer forma, seja por permanecer na prisão, pelas próprias condições do local e dinâmica prisional, seja por sair do ambiente prisional, pela separação da mãe – que tem a aptidão de ser vivenciada pela criança como uma perda. […] É necessário, por isso, focar na redução de danos, estudar e aplicar alternativas para as mães cumprirem suas penas ou mesmo aguardar a sentença em liberdade, evitando de todas as formas o encarceramento. Devemos analisar de forma complexa e multifatorial o destino de cada criança, a fim de evitar que os danos causados deixem cicatrizes profundas. Partindo-se da premissa de que os aspectos positivos do encarceramento centram-se no potencial protetivo frente aos cuidados da saúde da mulher e de seu filho e à manutenção do vínculo materno, deve-se questionar, necessariamente, até que ponto os mesmos benefícios não seriam obtidos fora das prisões […]” [1].Por outro lado, é cediço que a Constituição Federal consagra o princípio da proteção integral da criança com absoluta prioridade, conforme art. 227, in verbis:Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.Leciona FARIAS [2]:A proteção integral serve, assim, como instrumento vinculante de todo o tecido infraconstitucional, impondo ao jurista compreender toda e qualquer situação concreta de acordo com o que o melhor interesse da criança e adolescente recomendar. Em cada caso concreto, exige-se a construção de soluções derivadas do melhor interesse infanto-juvenil, oxigenando clássicos institutos jurídicos (como a guarda, a filiação e, é claro, o poder familiar e os alimentos). Todo e qualquer instituto concernente a interesse de criança ou adolescente precisa estar sintonizado na frequência da proteção integral constitucional, pena de incompatibilidade com o sistema constitucional.Com base em tais fundamentos, constituindo-se inclusive direito subjetivo da presa gestante, conforme fundamentação supra, resta com clareza meridiana a solução que melhor se amolda ao caso concreto: a concessão da prisão domiciliar.É bom ressaltar no mais que, conforme estudo feito pelo Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ [3], a situação da apenada lamentavelmente não foge à regra nacional. Pela pesquisa, no Brasil são 367.380 – 6,4% da população prisional do país – maior parte dessas em regime fechado (44.7%), presa por tráfico de drogas (58%), jovens entre 18 e 28 anos (50%), solteiras (57%), cumprindo penas de até 8 anos (54%), sendo mais concentrado esse percentual entre 4 e 8 anos (35%). Conforme a pesquisa, ainda, no RJ, 70% é de ré primária e dentre as grávidas a maioria afirma não receber atendimento ginecológico, com pré-natal incompleto, sofrendo de carências como por exemplo falta d’água para banho, má qualidade da comida, precariedade da higiene local, além de reclamarem do uso indevido de algemas, inclusive no parto.E ainda, segundo o mencionado estudo, “A questão das mulheres encarceradas, especialmente aquelas que experimentam a gravidez e o nascimento de seus filhos na prisão, constitui um dos aspectos mais perversos da opção por uma política criminal repressiva, com foco preferencial na pena privativa de liberdade. Se a situação das mulheres presas configura uma dupla sanção, por ser ela considerada como ‘criminosa’, que ousou violar a lei dos homens numa sociedade patriarcal, no caso de grávida e de mães de filhos pequenos, estas ainda recebem mais uma punição: são também privadas da convivência com seus filhos, com todas as consequências sociais que decorrem desse distanciamento.”Por isto este Juízo, ao decidir pela prisão domiciliar da detenta, de 25 anos, primária, condenada por tráfico e associação ao tráfico juntamente com o companheiro, no sétimo mês de gravidez, que voluntariamente se entregou na Justiça para cumprir sua reprimenda, assim o faz porque compreende a responsabilidade histórica do Poder Judiciário para com o padrão ético decorrente da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim o faz porque compreende a necessidade de fortalecimento das instituições, no sentido de dar concretude aos direitos e garantias fundamentais. Assim o faz porque exerce sua prerrogativa constitucional irrenunciável da jurisdição.Aliás, mutatis mutandis, conforme tem orientado o Supremo Tribunal Federal, “tendo em conta as precárias condições materiais em que se encontram as prisões brasileiras, de um lado, e, de outro, considerada a delicada situação orçamentária na qual se debatem a União e os entes federados, esta Suprema Corte concluiu que os juízes e tribunais estão autorizados a determinar ao administrador público a tomada de medidas ou a realização de ações para fazer valer, com relação aos presos, o princípio da dignidade humana e os direitos constitucionais a eles garantidos, em especial o abrigado no art. 5º, XLIX, da Constituição Federal” (STA 807/RJ; Relator: Ministro Presidente Ricardo Lewandowski; Julgamento: 23.11.2015).Por fim, repita-se: é preciso admitir e reafirmar, sempre, que a pessoa do condenado jamais perderá sua natureza humana e por este motivo será sempre merecedora de irrestrito respeito em seus diretos e garantias fundamentais. Este salto ético já foi dado e o atual padrão de civilidade assim exige, bem como a humanidade em paz agradece.Ex positis:Por estarem presentes os requisitos para o deferimento do pretendido, com base no art. 117, inciso II (doença grave), art. 114, parágrafo único e art. 115, todos da LEP, c/c art. 317 e art.318, II, ambos do CPP, por analogia,DEFIRO A PRISÃO DOMICILIAR favor da reeducanda B.E.R., na seguintes condições: (1) recolhimento domiciliar em período integral, autorizando-se apenas eventuais saídas para acompanhamento da gestação e tratamento de saúde; (2) comparecimento em Juízo sempre que requisitado e (3) comunicação prévia de mudança de endereço. Deverá ainda a reeducanda informar seu endereço residencial no prazo de 10 dias.Cientifique-se o Assistente Social do Juízo.Requisite-se a imediata apresentação em Juízo.Intimem-se e comunique-se à Administração do ergástulo. Expeça-se o termo respectivo.2. Manutenção da prisão domiciliar após o nascimento do infante:Considerando a previsão para nascimento do infante em 7.2.2016 (fl. 217), aguarde-se até março/2016. Após, proceda-se ao estudo social, que deverá abranger a (im)prescindibilidade da reeducanda aos cuidados especiais do bebê.Juntada o documento, vista ao Ministério Público e, sucessivamente, à defesa. Prazo: 5 dias.3. Falta grave – não retorno de saída temporária:Designo audiência de justificação para o dia 15.1.2016 às 14h30min.Intime-se a defesa constituída para manifestar-se, querendo, em 5 dias.Intime-se a reeducanda por ocasião da assinatura do termo de compromisso da prisão domiciliar (item 1 supra).4. Oportunamente, resolvida a questão disciplinar, será deliberado sobre prognóstico de eventuais benefícios.Joinville (SC), 02 de dezembro de 2015.João Marcos BuchJuiz de DireitoNotas e Referências:[1] MELLO, Daniela Canazaro de. A prisão feminina : gravidez e maternidade : um estudo da realidade em Porto Alegre – RS/Brasil e Lisboa/Portugal – Porto Alegre, 2014. Disponível em: Acesso em: 2.dez.2015.[2] FARIAS, Cristiano Chaves de. A Possibilidade de Prestação de Contas dos Alimentos na Perspectiva da Proteção Integral Infanto-juvenil. Ano de 2010. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=582.[3] BOITEUX, Luciana et alli. Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro. RJ: LADIH, 2015.

Prisão domiciliar para idoso que não cumpre pena em regime aberto

Autos n° 0817911-44.2014.8.24.0038 Ação: Execução Provisória/PROC Reeducando: M.G. VISTOS ETC 1. Prisão domiciliar: Trata-se de pedido de prisão domiciliar formulado pelo reeducando M.G. em razão de contar atualmente com 80 (oitenta) anos de idade. O Ministério Público argumentou que a Lei de Execuções Penais somente prevê a concessão do benefício ao reeducandos que cumprem pena em regime aberto, o que não é o caso reeducando, havendo necessidade de realização de perícia médica oficial para flexibilização da norma, pugnando pela requisição de tal providência (fl. 65). É a síntese do necessário. Pois bem, não obstante o disposto no art. 117, da LEP, atualmente o Código de Processo Penal disciplina a prisão domiciliar para presos, sejam provisórios ou condenados, verbis: "Art. 317. A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial." (NR) "Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV - gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo." (NR) Ou seja, com este dispositivo a prisão domiciliar será possível para os presos provisórios e por óbvio também a todos os demais presos, independentemente do regime, com requisitos mais flexíveis. Na espécie, o pleito de prisão domiciliar é pautado no fato de contar o reeducando com 80 (oitenta) anos de idade, completados em 29.10.2014. Verifica-se que para o deferimento do pleito, necessária se mostra a verificação do binômio necessidade – inadequabilidade, onde a necessidade se consubstancia em questões de ordem humanitária (saúde e outros), observáveis somente concretamente, e a inadequabilidade carcerária na manutenção do reeducando nos ditames externados pela superveniência das novas condições oriundas da necessidade. Por óbvio que aquela se condicionará às condições desta. No caso em espécie, a necessidade é presumida em razão da avançada idade do reeducando. Por sua vez, a inadequabilidade, ao que consta, encontra-se demonstrada, pois é cediço que o ambiente carcerário não é adequado para bem atender às necessidades de uma pessoa de 80 (oitenta) anos, que, presume-se, possui saúde fragilizada em razão da própria idade. Ademais, o inciso I do artigo 318 do CPP não condiciona a concessão da prisão domiciliar a qualquer requisito que não a idade. Perícia médica oficial somente seria pertinente caso o reeducando estivesse a requerer o benefício em razão de doença grave, hipótese que se enquadraria no inciso II do mesmo dispositivo. Com efeito, pela situação prisional a que se acha submetido, quer parecer que há violação à norma constitucional que determina, ao estado e a seus agentes, o respeito efetivo à integridade física da pessoa sujeita à custódia do Poder Público (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). Principalmente, a amparar estes direitos, encontra-se o fundamento da dignidade da pessoa humana (art.1º, III), especialmente dos idosos. Ademais, o art.40, da LEP, exige de todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios; sendo que o direito à saúde vem reafirmado no art.41, VII, do mesmo Diploma. Finalmente, apenas a título de registro, observe-se que o delito ao qual o detento foi condenado não envolveu violência contra pessoa. Assim, outro caminho não resta, por uma questão humanitária assim, que não seja o da concessão da prisão domiciliar. EX POSITIS: Por estarem presentes os requisitos para o deferimento do pretendido, com base no art. 317 e art. 318, I, ambos do CPP, por analogia, DEFIRO O PEDIDO DE PRISÃO DOMICILIAR para o reeducando M.G., de 80 anos de idades, na seguintes condições: (1) recolhimento domiciliar em período integral, autorizando-se apenas eventuais saídas para tratamento de saúde; (2) comparecimento em Juízo sempre que requisitado e (3) comunicação prévia de mudança de endereço. Deverá ainda o reeducando informar e comprovar seu endereço residencial no prazo de 10 dias. Cientifique-se o Assistente Social do Juízo. Requisite-se a imediata apresentação em Juízo. Intimem-se e comunique-se à Administração do ergástulo. Expeça-se o termo respectivo. (...) Joinville (SC), 26 de março de 2015. João Marcos Buch Juiz de Direito

Porte de drogas para uso pessoal - reconhecimento de fato atípico

Remição em razão de aprovação no ENEM

Autos n° 038.10.032603-7 Ação: Execução PenalApenado: C.F.S VISTOS ... Trata-se de avaliação de remição em razão do trabalho e do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em favor da reeducanda C.F.S. O Presídio Regional de Joinville encaminhou grade de notas (fl.289), bem como informou que a reeducanda não estuda oficialmente no interior da unidade (fl.292). Outrossim, foi encaminhada grade de remição pelo trabalho, no total de 79 dias, o que corresponde a 26 dias de remição. Ao Ministério Público foi oportunizada vista integral dos autos (fl.297), requerendo a homologação de 26 dias. É o relatório. Dispõe o art. 1º, inciso IV, da Recomendação n.44, de 26 de novembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça: "IV – ha hipótese de o apenado não estar, circunstancialmente, vinculado a atividades regulares de ensino no interior do estabelecimento penal e realizar estudos por conta própria, ou com simples acompanhamento pedagógico, logrando, com isso, obter aprovação nos exames nacionais que certificam a conclusão do ensino fundamental Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou médio Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a fim de se dar plena aplicação ao disposto no §5º do art. 126 da LEP (Lei n.7.210/84), considerar, como base de cálculo para fins de cômputo das horas, visando à remição da pena pelo estudo, 50% (cinquenta por cento) da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino fundamental ou médio – art. 4º, incisos II, III e seu parágrafo único, todos da Resolução n.03/2010, do CNE, isto é, 1600 (mil e seiscentas) horas para os anos finais do ensino fundamental e 1200 (mil e duzentas) horas para o ensino médio ou educação profissional técnica de nível médio". Vale dizer, em caso de aprovação no ENCCEJA (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), que certifica a conclusão do Ensino Fundamental, a remição pode totalizar 133 (cento e trinta e três) dias [base de cálculo: 1600 horas dividas por 12]. Já no caso de aprovação no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), a remição pode totalizar 100 (dez) dias [base de cálculo: 1200 horas divididas por 12]. Na espécie, a reeducanda restou aprovada em 2 (dois) campos de conhecimento. De acordo com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, assim como o esforço demonstrado pela reeducanda que estuda só, independente do ensino oficial, o caminho mais judicioso é dar relevância à aprovação parcial. Assim, considerando 5 (cinco) campos de conhecimento avaliados no ENEM, cumpre salientar que a aprovação em cada um deles deve corresponder a 20 (vinte) dias de remição. Por outro lado, em havendo nova tentativa de aprovação total no ano seguinte, que as matérias já exitosas e homologadas no ano anterior não ensejarão em nova homologação. Evita-se desta forma o bis in idem, sendo o total máximo a se alcançar o período de 100 (cem) dias. Assim, com base no raciocínio supra, em tendo sido aprovada em 2 (dois) campos do conhecimento, merece a reeducanda ter 40 (quarenta) dias homologados. Ex positis: Com base no art. 126, §5º, da LEP e Recomendação nº. 44, de 26 de novembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, DECLARO remidos 40 (quarenta) dias da reeducanda C.F.S., relativos à aprovação em 2 (dois) campos do conhecimento no Ensino Nacional do Ensino Médio (ENEM). Com base no art. 126 da LEP, DECLARO remidos 26 (vinte e seis) dias da pena da reeducanda C.F.S., referente ao período laboral de novembro de 2013 a janeiro de 2014 (fl.296). Intimem-se. Requisite-se à Administração Prisional o cumprimento da providência elencada no art. 129, § 2º, da LEP. No mais, em razão da remição supra, aguarde-se o cumprimento da pena, cuja previsão de progressão ao regime semiaberto é a partir de novembro de 2014. Joinville (SC), 21 de fevereiro de 2014.João Marcos Buch Juiz de Direito

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Execução penal - concessão de progressão e direito de voto a sentenciado

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