DECISÃO - Duração razoável do processo - RJ

Processo nº omissis

 

SENTENÇA

 

 

Omissis

 

Feito breve relatório, DECIDO.

 

De início é mister lamentar profundamente a total falta de razoabilidade na duração do presente processo, que vem tramitando há quase seis anos – isto só no primeiro grau de jurisdição – sem que até aqui tenha se encerrado com a entrega da prestação jurisdicional, em absoluta e clara vulneração ao princípio constitucional contido no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.04, que estatui: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramita- ção”.

Justamente por conta disso foi relaxada a custódia cautelar do denunciado por excesso de prazo (fls. 121/122), quando este já se encontrava há quase três meses preso em regime integralmente fe- chado, cabendo, entretanto, perguntar: isso basta? A tanto se encon- tra adstrita a garantia fundamental da duração razoável do processo? À soltura do réu, quando excedido o prazo de prisão cautelar? 1 En- tendemos que não, afinal, no dizer do ilustre magistrado Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho “a celeridade... não pode ser uni- camente deferida a réus presos. Os réus soltos também têm o direito de não ficar vinculados indefinidamente a um processo criminal”. 2

1 PENAL. PROCESSUAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. PRONÚNCIA. SUMULA 21 - STJ. EXCESSO DE PRAZO NO JULGAMENTO. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. CONCESSÃO "EX OFFICIO". "HABEAS CORPUS". RECURSO.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no Brasil através do Decreto 678/92, consig- na a idéia de que toda pessoa detida ou retida tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.

A jurisprudência tem sido rigorosa no que diz respeito ao excesso de prazo na instrução criminal, fican- do, porém, inerte no que pertine ao próprio julgamento.

Considerando que o Paciente aguarda seu julgamento, preso e sem data marcada, a pelo menos 1 (um) ano da data da Pronúncia, configurado está o constrangimento ilegal ao seu direito de ir e vir.

Recurso improvido. Concessão da ordem “ex officio”.

(RHC 5239/BA, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 07/05/1996, DJ 29/09/1997 p. 48228).

2 Castanho de Carvalho, L.G. Grandinetti. Processo Penal e Constituição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pág. 227;

 

Não é de agora (na verdade, vem desde Beccaria) que di- versos juristas se debruçam sobre o tema da lentidão da Justiça e, mais especificamente, sobre o grande drama que é a demora de um processo criminal para o acusado, verdadeira “espada de Dâmocles”, mantida sobre a cabeça do réu enquanto não decidida sua “sorte”.

Já o grande Rui Barbosa, na magnífica Oração aos Moços, sustentava – em passagem imorredoura: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdo- bra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”. 3

O fundamento maior deste preci(o)so posicionamento está em que a demora do processo não pode servir, ela própria, como forma de punição ao acusado. E se tal ocorreu, não deve ser sim- plesmente olvidado, mormente quando, agora, erigido em garantia fundamental do cidadão o direito à razoável duração do processo.

No dizer do eminente Luigi Ferrajoli, “é indubitável que a sanção mais temida na maior parte dos processos penais não é a pe- na – quase sempre leve ou não aplicada – mas a difamação pública do imputado, que tem não só a sua honra irreparavelmente ofendida mas, também, as condições e perspectivas de vida e de trabalho; e se hoje pode-se falar de um valor simbólico e exemplar do direito penal, ele deve ser associado não tanto à pena mas, verdadeiramente, ao processo e mais exatamente à acusação”. 4

Nas palavras do ilustre Aury Lopes Jr., “o processo penal en- cerra em si uma pena (la pena de banquillo), ou conjunto de penas se preferirem, que, mesmo possuindo natureza diversa da prisão caute- lar, inegavelmente cobra(m) seu preço e sofre(m) um sobre-custo in- flacionário proporcional à duração do processo”. 5

E continua o citado mestre do Rio Grande do Sul:

“A perpetuação do processo penal, além do tempo ne- cessário para assegurar seus direitos fundamentais, se

 


3
Barbosa, Rui. Oração aos Moços. São Paulo, Russel, 2004, pág. 47; 

4 Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, pág. 588;

5 Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro, Lumen Juris, vol. I, 2008, pág. 133;

 

converte na principal violação de todas e de cada uma das diversas garantias que o réu possui.

A primeira garantia que cai por terra é a da jurisdiciona- lidade insculpida na máxima latina do nulla poena, nulla culpa sine iudicio. Isso porque o processo se transforma em pena prévia à sentença, através da estigmatização, da angústia prolongada, da restrição de bens e, em muitos casos, através de verdadeiras penas privativas de liberdade aplicadas antecipadamente (prisões caute- lares). É o que CARNELUTTI define como a misure di soffrenza spirituale ou di umiliazione. O mais grave é que o curso da pena-processo não é meramente eco- nômico, mas o social e psicológico.

À continuação, é fulminada a Presunção de Inocência, pois a demora e o prolongamento excessivo do proces- so penal vão, paulatinamente, sepultando a credibilida-

de em torno da versão do acusado. Existe uma relação inversa e proporcional entre a estigmatização e a pre- sunção de inocência, na medida em que o tempo im- plementa aquela e enfraquece esta.

O direito de defesa e o próprio contraditório também são afetados, na medida em que a prolongação exces- siva do processo gera graves dificuldades para o exer- cício eficaz da resistência processual, bem como impli- ca um sobre-custo financeiro para o acusado, não ape- nas com os gastos em honorários advocatícios, mas também pelo empobrecimento gerado pela estigmati- zação social. Não há que olvidar a eventual indisponibi- lidade patrimonial do réu, que por si só é gravíssima, mas que, se for conjugada com uma prisão cautelar, conduz à inexorável bancarrota do imputado e de seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) não apenas gera pobreza, senão que a exporta, a ponto de a “intrascen- dência da pena” não passar de romantismo do Direito Penal.

A lista de direitos fundamentais violados cresce na mesma proporção em que o processo penal se dilata indevidamente.

Mas o que deve ficar claro é que existe uma pena pro- cessual mesmo quando não há prisão cautelar, e que ela aumenta progressivamente com a duração do pro- cesso. Seu imenso custo será ainda maior, a partir do momento em que se configure a duração excessiva do

 

processo, pois, então, essa violência passa a ser qualifi- cada pela ilegitimidade do Estado em exercê-la”. 6

Contudo, algumas questões preliminares se impõem à cons- tatação e decisão relativa à duração não razoável. A primeira delas concerne a o que se deve entender por  “duração do  processo”,  sendo que a resposta nos é fornecida pelo culto magistrado fluminense An- dré Nicolitt, nos seguintes termos: “...o marco para a análise da con- tagem do prazo é a determinação do sujeito que está sendo investi- gado, o que equivale ao nosso indiciamento. Assim, em nosso sistema processual penal, o prazo começa a correr quando surge a figura do indiciado na fase da investigação”, enquanto que “quanto ao termo final, cremos que coincide com o trânsito em julgado da sentença ab- solutória, condenatória, terminativa ou com a decisão de arquivamen- to do inquérito7, restando claro destas lições que, se o presente feito teve início há longo tempo, está ainda mais longe de terminar.

Mas, a partir de qual momento a duração deixa de ser razo- ável? Cumpre estabelecer aqui, na esteira dos ensinamentos do refe- rido colega André Nicolitt, duas premissas: “Primeiro, afirmar que a análise da duração razoável do processo deve ser feita em cada caso concreto, não sendo possível uma formulação de regra abstrata e ge- nérica sobre o tema. Em segundo, a análise da razoabilidade tanto pode se dar quando o processo estiver findo ou quando este ainda es- tiver em curso, ainda que a situação de retardo venha ser recupera- da”.8

Em seguida, esclarece: “...verificando-se uma dilação, ou se- ja, um evidente e manifesto prolongamento, passa-se à análise da ra- zoabilidade do prazo de duração, o que deve observar os seguintes aspectos: 1) a complexidade da causa; 2) a conduta dos litigantes; 3) o contexto em que se desenvolveu o processo; 4) a atuação das auto- ridades judiciais e 5) a importância do litígio para os demandantes”. 9

No caso concreto, estamos diante de processo simples, cuja instrução oral se encerrou pouco depois de passado um mês desde o recebimento da denúncia, sendo determinada a manifestação das partes em alegações finais três meses após a instauração do proces- so, aí se iniciando o calvário do réu, fruto de sucessivos pedidos de diligência do Ministério Público, e dos atropelos e desorganização de órgãos do Poder Executivo paralelos à prestação jurisdicional, tais como Delegacias de  Polícia e Instituto de Criminalística.  De  atropelo

6 Lopes Jr., Aury. Op. cit., págs 133/5.;

7 Nicolitt, André Luiz. A duração razoável do Processo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, pág. 71;

8 Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 72;

9 Idem. Op.cit., pág. 72;

 

em atropelo, de atraso em atraso, de protelação em protelação, se arrasta o feito há quase seis anos, i.e., há cerca de dois mil e cem di- as, ou, em suma: um processo que deveria obter sentença em três, ainda não a obteve em setenta meses.

O tempo no evolver da marcha processual é apontado por Aury Lopes Jr., em belíssimas palavras, como um paradoxo ínsito ao ritual judiciário: “um juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos pa- ra o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois históri- co, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julga- mento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente, no futuro, será um constante reviver do passado”. 10

Neste ponto não se deve olvidar que se trata o acusado de um cidadão que não voltou a cometer outros crimes desde aquele que lhe é imputado na denúncia ora apreciada, cidadão que se encon- tra plenamente adaptado ao livre e lícito convívio social, que foi en- contrado no endereço declinado nos autos mesmo anos após o início do processo (fls. 220), enfim: continua a ser processado por crime que não passa de mera reminiscência cartorária, que se resume a es- te amontoado de folhas abrangendo, ainda em tese, um pequeno momento da vida pregressa do réu – em nada condizente a sua situa- ção atual – e nada mais.

Lembremos  mais  uma  vez  Rui  Barbosa:  “justiça  atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”!

A pertinência desta lição avulta no caso concreto, principal- mente quando levamos em conta  que  “como bem identificou o Tribu- nal Supremo da Espanha na STS 4519... quando se julga além do pra- zo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgan- do um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de preven- ção específica e retribuição (muito menos da falaciosa ‘reinserção so- cial’)”. 11

Ou seja, passados quase seis anos, a ninguém mais interes- sa (ou deveria interessar) a condenação do acusado, o que somente traria prejuízo pessoal a ele próprio, e mesmo à sociedade que teria de suportar mais um cidadão sobre quem recairia a pecha de conde-

10 Lopes Jr., Aury. Op. cit., págs 137/8.;

11 Idem. Op.cit., pág. 137;

 

nado, que passaria a enfrentar dificuldades para empregar-se eis que estigmatizado como, e que possivelmente teria de recorrer novamen- te ao crime como derradeira alternativa para poder sobreviver. Não estaríamos, pois, buscando com o processo penal meios de ressociali- zar o acusado (que já está plenamente ressocializado), mas sim de entregá-lo novamente nas mãos do crime, o que reflete um absurdo contrassenso.

 

Por outro lado”, como bem colocam os cultos magistrados Rubens Casara e Mylène Vassal, “a demora irrazoável da relação pro- cessual e o, conseqüente, status de acusado ostentado pelo réu, atentam sobremaneira contra a dignidade da pessoas humana diante, dentre outros fatores, da inexorável estigmatização de quem respon- de a um processo criminal”. 12

Nos defrontamos aqui, em suma, indubitavelmente, com hi- pótese de injustificável duração não razoável do processo, com todas as premissas e consequências de sua caracterização.

Que fazer diante disto? Socorramo-nos, mais uma vez, nas lições de Nicolitt: “Na doutrina alienígena, as soluções encontradas para a violação do direito ao tempo razoável do processo em matéria penal têm sido muito variadas. As vias mais discutidas são: a) o indul- to; b) a liberdade condicional; c) a não execução da pena; d) a redu- ção proporcional da pena; e) a atenuante; f) a eximente; g) a remis- são condicional h) a nulidade e i) a prescrição por analogia13, sendo que “à luz do ordenamento jurídico brasileiro não podemos falar em uma solução... O que não podemos é deixar de dar efetividade à Constituição e negarmos um direito fundamental”.14 Assim, o brilhan- te magistrado sugere algumas opções, adequadas ao direito pátrio, quais sejam: perempção, perdão judicial, julgamento no estado do processo e aplicação de atenuante genérica, salientando alfim que “não há razão para negar vigência ao mandamento constitucional que instituiu o direito a um processo em tempo razoável. Ao contrário, de- vemos buscar interpretações projetivas que permitam dar vida e con- cretude ao projeto constitucional”. 15

Ressalte-se que o colendo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao menos em duas oportunidades, considerou o princípio da duração razoável do processo aplicando-o para ensejar a diminuição da pena por conta de atenuante inominada (5ª Câmara Criminal, Ape-

12 Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P. O Ônus do Tempo no Processo,in Revista do MMFD. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, pág. 123;

13 Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 118;

14 Idem. Op.cit., pág. 123;

15 Ibidem, pág. 127;

 

lação nº 700071000902, j. em 17/12/2003, Rel. Des. Luis Conzaga da Silva Moura), e para absolver o denunciado (6ª Câmara Criminal, Ape- lação nº70019476498, j. em 14/06/2007, Rel. Des. Nereu Giacomolli).

Sem embargo destas e de outras tantas opiniões da mais al- ta relevância em se tratando de tema vinculado a efetividade de ga- rantia fundamental do cidadão16, que não pode restar como letra mor- ta17 ou dispor de reflexos tão só em tema de prisão cautelar na falta de norma mais adequada a respeito18, e levando em conta que a “me-  ra” declaração de nulidade do feito por decorrência da vulneração ao princípio constitucional em tela (o que de fato se verifica, ressalte-se) não impediria a repetição da ação19, entendemos que a solução mais adequada, em termos processuais e materiais, face a não duração ra- zoável do processo será a extinção deste sem análise do mérito por decorrência da falta de condição da ação, qual seja, o interesse em agir.

De fato, se é correto que “o objeto do processo penal”, ao menos naquelas ações de natureza condenatória, nas palavras de Aury Lopes Jr., “é uma pretensão acusatória, vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz atra- vés de uma pena ou medida de segurança”, a utilidade da ação (en- tendida esta como um dos elementos constitutivos do interesse em agir, junto com a necessidade e adequação) somente se fará presente se, ao final, se vislumbre a possibilidade de aplicação de uma pena revestida de todas as suas “funções”.20 Por outras palavras: carecen-16 Nicolitt preconiza a adoção da perempção por analogia; Lopes Jr. sustenta a necessidade de extinção do processo por ilegitimidade do poder punitivo pela desídia do Estado;

17...apesar da previsão normativa, os operadores jurídicos não têm impedido ‘o triste espetáculo de inquéritos intermináveis e processos em que os imputados se vêem submetidos durante vários anos a uma dolorosa rotina, que os aproxima, juridicamente, a verdadeiros ´ausentes´(bem vivos nem mortos: nem inocentes nem culpados), o que um Estado de Direito não pode tolerar`”. Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P., op.cit., pág. 125;

18Diante desse quadro, volta-se a frisar, o ideal seria uma produção normativa interna que concretizas- se esses conceitos e dissipasse qualquer margem de arbítrio. A ‘ausência de regulamentação legal de um prazo absoluto de duração do processo penal viola o direito fundamental de todo acusado de ser julgado rapidamente sem dilações indevidas. A estipulação por lei desse prazo razoável funcionaria, dentro do ordenamento jurídico de um Estado de Direito, como garantia primária desse direito funda- mental’.

Na falta desse referencial normativo, exige-se uma atividade integradora da agência estatal, sob pena de negar-se a garantia em foco”. Casara, Rubens R.R., e Vassal, Mylène G.P., op.cit., pág. 129;

19Em que pese não haver dispositivo legal que indique a dilação indevida como causa de nulidade, tal óbice seria facilmente suplantado, vez que a nulidade teria fundamento na própria Constituição, dispen- sando assim qualquer outro dispositivo infraconstitucional.

Alguns autores ainda resistem à idéia de que o reconhecimento da nulidade não poderia conduzir a um pronunciamento automático de absolvição, o que daria margem a um novo ajuizamento, sendo certo que tal solução em nada resolveria vez que mais uma vez estaríamos diante dos problemas tempo e processo” – Nicolitt, André Luiz. Op.cit., pág. 124;

20 Não olvidando aqui a precisa lição de Maria Lúcia Karam: “Trabalhando-se com o ordenamento jurídi-  co-penal, como posto, conseqüentemente há de se trabalhar com os fins declarados da pena, fundados nas idéias de retribuição e prevenção positiva ou negativa, muito embora sem deixar de ter claro que tais fins declarados apenas encobrem a realidade de ser a pena mera manifestação de poder, sua real finalidade, assim encoberta, sendo tão somente a de manter e reproduzir as estruturas dominantes em

 

do, no caso concreto, a pena a ser em tese fixada destas “funções”,  torna-se inútil a ação que visa alcançá-la em tais termos. Ou ainda, e em suma: se a pena é de todo inútil, também inútil será a ação que a persegue.

 

“Modernamente”, ensina Paulo José da Costa Jr., “a doutrina adotou um posicionamento eclético, quanto às funções e natureza da pena. É o que se convencionou chamar de pluridimensionalismo ou de mixtum compositum. Assim, nos ordenamentos jurídico-penais mo- dernos, ocidentais ou socialistas, as funções retributiva e intimidativa da pena procuraram conciliar-se com a função ressocializante da san- ção”. 21

Ocorre que seja sob o prisma retributivista, seja sob a ótica utilitarista, ou mesmo com base no argumento ressocializante, cons- tatamos que a duração irrazoável do presente feito dá ensejo a que a pena a ser porventura fixada encontre-se totalmente despida de qualquer função.

Como não bastasse, portanto, ser oriunda de processo nulo por vulneração ao princípio constitucional da duração razoável do processo, a pena perseguida nesta ação mostra-se de todo inútil, pe- los mais variados aspectos, alguns deles já alhures referidos, cabendo citar:

a.) o acusado, passados quase seis anos desde a pretensa prática do crime descrito na inicial acusatória, não é mais a mesma pessoa que, em tese, perpetrou o delito, pelo que estaria o Estado re- tribuindo com um mal a alguém que, passado tanto tempo, vem se limitando a praticar o bem, e cujo mal em tese feito não mais passa do que uma mera reminiscência cartorária;

b.) o Estado já retribuiu ao acusado o mal que ele, em tese, perpetrou, submetendo-o a quase três meses de prisão cautelar cum- prida em regime integralmente fechado, bem como à angústia e ver- gonha de se ver processado perante a Justiça Criminal ao longo de quase seis anos;


c.) não mais praticando qualquer ilícito penal desde quase seis anos até a presente data, não há que se cogitar da necessidade de aplicação de uma prevenção especial em face do réu, que se pra- ticou aqueles crimes contidos na exordial, com o passar dos anos já  se encontra “redimido moralmente”, como diria S. Tomás de Aquino,

que este surge”. Direito Penal e Constituição,in Revista do MMFD. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, pág. 72;

21 Costa Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo, Saraiva, 2002, pág. 142.

 

e de todo afastado de práticas delitivas, ainda que tenha se mantido vinculado ao processo, residindo no mesmo endereço anos à fio mesmo depois de solto, demonstrando assim claro intuito de colabo- rar com a justiça;

d.) a pouca (ou nenhuma...) divulgação que teria uma sen- tença condenatória lavrada neste caso concreto, somada ao tempo decorrido desde o pretenso fato criminoso, do qual poucos (ou nin- guém... Talvez somente nós mesmos, operadores de direito, que aqui estamos a trabalhar...) se lembram, desveste por completo a pena de seu caráter de prevenção geral ou intimidatório;

e.) apenar o acusado em nada contribuiria para ressocializá- lo, pelo contrário: estaria a Justiça, em verdade, contribuindo para es- tigmatizá-lo, prejudicando suas “condições e perspectivas de vida e de trabalho” – no dizer de Ferrajoli – duramente conquistadas de ma- neira lícita ao longo de todo o tempo percorrido por este malfadado processo, levando-o a manter contato novamente com o mundo do crime, do qual se vê afastado (se é que nele se inseriu nalguma oca- sião), ensejando perda de emprego, de contato familiar – de autoes- tima, de esperança, da possibilidade de sobreviver condignamente sem ter de sequer pensar em cometer (de novo?) algum crime...

Enfim, numa única palavra, mais abrangente, precisa e pro- funda do que todas aquelas que até aqui utilizamos: eventual senten- ça condenatória nestes autos seria, “simplesmente”, injusta.

Repito: inútil a pena, inútil o processo que a persegue, e inú- til o processo, ausente o interesse em agir.

Ressalto por derradeiro que a e. 5ª Câmara Criminal do Tri- bunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já se debruçou sobre o tema, em acórdão da lavra do eminente Des. Geraldo Prado, acolhen- do os argumentos acima aduzidos e trazendo ainda (vários) outros, como se vê no Recurso em Sentido Estrito 2003.051.00073, de cujo voto vencedor se extrai as seguintes lições: “A própria sociedade, com o tempo, passa a atribuir ao fato outro nível de importância, normalmente menor, reduzindo os apelos coletivos por punição”, ra- zão pela qual “...a demora injustificada em dar resposta aos casos penais impõe que o Estado, por  inoperância  própria,  “abra  mão”  de seu direito de punir porque, na verdade, já o exerceu por meio da submissão do réu a intenso e prolongado sentimento de incerteza e angústia”.

 

Por tudo o que foi exposto e devidamente fundamentado, declaro extinto o presente processo sem análise do mérito com fun- damento no artigo 3º do Código de Processo Penal, c/c. o inciso VI do artigo 267 do Código de Processo Civil. Sem custas.

P.R.I. Vista ao Ministério Público e Defensoria Pública. Inti- me-se pessoalmente o acusado para ciência e, após, dê-se nova vista à Defensoria Pública. Transitada em julgado, oficie-se determinando a inutilização da arma apreendida, comunique-se, anote-se, dê-se baixa e arquive-se.

Nova Iguaçu, 21 de maio de 2013.

MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO

JUIZ DE DIREITO