DECISÃO - Absolvição, sem provas suficientes - RJ

Processo no omissis 

SENTENÇA 

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ofertou denúncia em face de omissis imputando-lhe a prática da conduta tipificada no artigo 157, parágrafo 2o, I do Código Penal, narrando os fatos contidos na petição inicial de fls. 02A/02B, que veio instruí- da pelos autos de Inquérito Policial de fls. 02/72 onde consta de mais relevante omissis 

Decisão recebendo a denúncia e indeferindo o pedido de prisão preventiva às fls. 76 e verso. 

Omissis 

É, em síntese, o relatório. DECIDO. 

Ao contrário do que sustenta o Ministério Público, não há prova suficiente nestes autos que dê ensejo à condenação do acusado, pois ainda que tenha a vítima narrado em pormenores a práti- ca delitiva e reconhecido o réu, tal isoladamente não se revela sufi- ciente para o decreto condenatório. 

De fato, ouvida em Juízo sustentou a informante omissis, em suma, o que segue: omissis 

Ocorre que, não obstante a clareza de suas declarações, a vítima, pessoa diretamente interessada no deslinde da demanda, é ouvida na qualidade de mera informante, sem prestar o compromis- so de dizer a verdade, devendo, justamente por isto, seu depoimen- to ser sopesado com redobrada cautela1, não bastando, por si só, para fundamentar uma condenação, sendo imprescindível que ve- nha aos autos respaldada em alguma outra prova. 

Aliás, neste sentido encontramos reiterado posicionamento doutrinário, cabendo fazer referência à lição de Weber Martins Ba- tista (grifei): 

Não havendo nenhum outro motivo capaz de le- var a vítima a querer prejudicar os réus – no ca- so, sequer os conhecia – pode-se duvidar da ve- emência com que os acusa, fruto da revolta pro- 

1 Não se está aqui afirmando que, no caso concreto, a vítima forçosamente mentiu: é na simples pos- sibilidade da mentira, ou de falsas memórias, que reside todo o problema como mais adiante veremos. vocada pelo crime, não da veracidade de sua afirmação ao apontá-los como autores do delito. Assim, para justificar a condenação, basta que a palavra da vítima esteja apoiada em outra prova qualquer, ainda que meramente indiciária, prova que existe no caso dos autos, pois os réus foram presos quando fugiam do local e a polícia apre- endeu as coisas roubadas com um deles. 2 

Certa jurisprudência vem repetindo, como num cansativo mantra, que a exclusiva vontade de lesados em crimes patrimoniais seria a de apontar o verdadeiro autor da ação delituosa que sofre- ram, não existindo maiores interesses envolvidos: não é verdade, bastando que se leia o artigo 63 do Código de Processo Penal para se concluir exatamente o oposto. Daí a correta advertência de André Nicolitt: 

Não há dúvida de que as declarações do ofendido constituem meio de prova. Na sua aferição, como sempre, faz-se mister cautela e deve ser feito o cotejo com os outros meios de prova, devendo-se ter sempre em mente o cuidado em perceber até que ponto o seu interesse na causa pode interfe- rir no conteúdo das declarações. 3 

Leonardo Marcondes Machado trás, igualmente, subsídios relevantes endossando o entendimento aqui esposado: 

Quanto à oitiva, em si, uma observação prelimi- nar bastante importante. Embora não haja qual- quer elemento de informação que mereça crédito absoluto ou valoração privilegiada, inegável que as palavras da vítima “devem ser recebidas com grande reserva”. Afinal de contas, se o injusto penal realmente tiver ocorrido, trata-se de sujeito diretamente afetado pela conduta criminosa e, portanto, com marcas importantes no âmbito da subjetividade. Há, por óbvio, uma expressão do relato da vítima a partir de seus próprios desejos, muitas vezes inconscientes, aflorados pela expe- riência conflitiva (o fato criminoso) e a necessi- dade de reprodução histórica sob a forma de de- claração no contexto da justiça criminal. 

2 BATISTA, Weber Martins. O Furto e o Roubo no Direito e no Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 460. 3 NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 666. 37a Vara Criminal da Capital - II - 

ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO Segundo Lopes Jr., não se pode ignorar a relação da vítima com o caso penal, do qual faz parte, o que gera interesses (diretos) na persecução cri- minal, os quais podem se manifestar em diferen- tes sentidos, tanto para beneficiar o imputado (ex.: por medo) como também para prejudicar um inocente (ex.: vingança pelos mais diversos motivos). Além desse comprometimento materi- al, existe, ainda, a disciplina processual, que de- sobriga o ofendido de prestar compromisso de di- zer a verdade, abrindo-se a porta para eventuais mentiras impunes. Nesse viés, há quem fale em "uma suspeita objetiva de parcialidade" quanto às declarações da vítima. A doutrina especializada aponta que a oitiva do ofendido é muito similar à do imputado, uma vez que está em jogo o mesmo interesse que o inves- tigado/acusado, porém em sentido contrário. O mais comum de se imaginar é que, se alguém formaliza uma notícia crime ou apresenta uma acusação em juízo com imputação delitiva a ter- ceira pessoa, manifestando interesse na persecu- ção penal, justo porque busca a condenação do imputado. Logo não pode figurar como testemu- nha. Ademais, tem-se na vítima um protagonista dos fatos em questão. Por consequência, flagran- te interesse na reconstrução narrativa do evento, o que já enseja por si só consideráveis riscos à instrução do caso penal, bastante semelhantes aos existentes por ocasião do interrogatório do investigado/acusado.4 

Ressalte-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem entendido de forma reiterada no sentido da insuficiência da palavra exclusiva da vítima para efeito de recebimento da denún- cia, que nesta hipótese carece de justa causa, cabendo citar a título meramente exemplificativo o seguinte aresto: 

0253264-18.2015.8.19.0001 - RECURSO EM SEN- TIDO ESTRITO Des(a). ANTONIO JAYME BOENTE Julgamento: 20/03/2018 PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL 

4 MACHADO, Leonardo Marcondes. É preciso muita cautela com a palavra da vítima na justiça criminal. Disponível em <undefined vitima-justica-criminal>. Acesso em 21/05/2019.

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. Crime de injúria. Forma qualificada. Decisão de rejeição da denún- cia por ausência de justa causa. Recurso ministe- rial. A jurisprudência tem respaldado a assertiva de que o exercício do direito de ação se queda à constatação de atipicidade do fato, da extinção da punibilidade do sujeito e quando a imputação não vier lastreada em um mínimo suporte proba- tório. In casu, a prova se resume à palavra da ví- tima. O segundo informante arrolado na denúncia é filho da vítima e, segundo o relato produzido em sede policial, a própria mãe lhe noticiou os supostos fatos. Suporte probatório mínimo para deflagração da ação penal que efetivamente não está presente. Desprovimento ao recurso. 

Assim é que, insuficiente para o mero recebimento da de- núncia, com mais razão ainda o é a palavra isolada da vítima, ainda que em Juízo, para consubstanciar um decreto condenatório, não se podendo proferir sentença que imponha tamanho gravame a um ci- dadão, sobretudo na hipótese de roubo, com base exclusivamente no que afirma uma única informante. 

Fiabilidade e corroboração são, na verdade, as duas pedras de toque para a análise adequada, sob o prisma da epistemologia jurídica, de informações de vítimas em situações como a do presen- te feito, não bastando que suas informações disponham de coerên- cia interna (ou fiabilidade) necessitando, para ensejar um decreto condenatório, que venha de alguma forma corroboradas por meio de prova externo, alheio à própria vítima. Nas palavras de José Luis Ramírez Ortiz (em tradução livre): 

(...) a aptidão probatória de um relato não se po- de verificar nem contrastar tomando por base o próprio relato; essa verificação há de encontrar apoio em elementos externos. 5 

Também esta é a lição de Vitor de Paula Ramos em livro especificamente voltado para a análise epistêmica da prova teste- munhal: 

(...) não se pode, como faz o Direito, simplesmen- te presumir que tudo o que diz a testemunha é 

5 No original: “(...) la virtualidad probatoria de un relato no puede verificarse ni contrastarse sobre la base del mismo relato; esa verificación ha de encontrar apoyo en elementos externos” – ORTIZ, José Luis Ramírez. El testimonio único de la victima em el proceso penal desde la perspectiva de género, p. 40. Disponível em < undefined Acesso em 18/06/2019.

verdadeiro, salvo prova em contrário. Afinal, a adoção de uma versão presuntivista do testemu- nho acaba por afastar o Direito de uma busca pe- la verdade rigorosa, colocando para dentro do processo uma série de “conhecimentos” sem qualquer qualidade epistêmica verificada ou veri- ficável. Partindo-se de uma lógica não presuntivista do testemunho, a valoração da prova testemunhal deverá dar-se sempre em cotejo com as demais provas dos autos(...).6 

E mais à frente prossegue: 

Feita a valoração individual da prova testemu- nhal, com efeito negativo, o seu valor não pode jamais ser avaliado individualmente, devendo tal prova sempre ser cotejada com os demais ele- mentos probatórios dos autos, quando presentes, a fim de que os fatos narrados sejam, quando possível, confirmados. Tudo mediante critérios de valoração racional. Quando não houver possibili- dade de confirmação daquilo que é dito pela tes- temunha, entretanto, a confiabilidade da infor- mação obtida será baixíssima, uma vez que não se poderá ter qualquer forma de controle seguro a respeito(...).7 

Neste mesmo sentido temos o posicionamento do e. Su- premo Tribunal Federal (grifei): 

EMENTA: DENÚNCIA. CRIMES DE PECULATO, CORRUPÇÃO PASSIVA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. ALEGAÇÕES PRELIMINARES DE CERCEAMENTO DE DEFESA: VÍCIOS NÃO CARACTERIZADOS. PRE- CEDENTES. PRELIMINARES REJEITADAS. PRECE- DENTES. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. ABSOLVI- ÇÃO. AÇÃO PENAL JULGADA IMPROCEDENTE. 1. É apta a denúncia que bem individualiza a conduta do réu, expondo de forma pormenorizada o fato criminoso, preenchendo, assim, os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. Basta que, da leitura da peça acusatória, possam-se vislum- brar todos os elementos indispensáveis à exis- tência de crime em tese, com autoria definida, de 

6 RAMOS, Vitor de Paula. Prova Testemunhal. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 135 7 Idem. Op, cit., p. 136

modo a permitir o pleno exercício do contraditó- rio e da ampla defesa. Precedentes. 2. O proce- dimento especial previsto no artigo 514 do Códi- go de Processo Penal não é de ser aplicado ao funcionário público que deixou de exercer a fun- ção na qual estava investido. Precedentes. 3. Não há cerceamento de defesa pelo indeferimento de diligências requeridas pela defesa, mormente se foram elas consideradas descabidas pelo órgão julgador a quem compete a avaliação da neces- sidade ou conveniência da prova. Precedentes. 4. Preliminares rejeitadas. 5. Os depoimentos e lau- dos acostados aos autos não apresentam ele- mentos de convicção suficientes para a formação de juízo de certeza sobre a responsabilização criminal do Réu pelos crimes de peculato, corrup- ção passiva e falsidade ideológica. Falta nos au- tos prova irrefutável a demonstrar a materialida- de e autoria dos crimes a ele imputados. 6. A de- lação de corréu e o depoimento de informante não podem servir como elemento decisivo para a con- denação, notadamente porque não lhes são exigi- dos o compromisso legal de falar a verdade. 7. Ação penal julgada improcedente. (AP 465, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribu- nal Pleno, julgado em 24/04/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014) 

No feito em exame, como acima dito, é certo que a vítima reconheceu o acusado em sala própria para tanto, estando ele posi- cionado ao lado de um dublê. Ocorre que tal se deu em sede inquisi- torial após vinte e cinco dias e em sede judicial decorridos oito me- ses desde a prática delitiva, dispondo a vítima, face ao dublê dispos- to ao lado do réu em audiência, de cinquenta por cento de chance de acerto – logo, também de erro. 

Gustavo Noronha de Ávila, profundo estudioso do tema, traz informação relevante que diminui ainda mais a credibilidade do reconhecimento isolado como prova suficiente para a condenação, ao enfatizar: 

Um dos mais fortes padrões a ser destacado foi o efeito negativo do tempo na taxa de identificação do suspeito. Isto é, a taxa de identificação do suspeito para roubos, quando o procedimento de identificação foi menos que um dia depois do crime, foi de 71,43%. Em contraste, se o intervalo de retenção entre o crime e a identificação foi de 7 a 34 dias ou mais que 34 dias, a taxa de identi- ficação caiu para 33.33% e 14.29% respectiva- mente. 8 

Ademais, no caso concreto, a “certeza” da vítima quanto à autoria adveio, como ela informa, de uma foto num jornal, que se foi possivelmente suficiente para iludi-la há oito meses, o é também para manter viva essa ilusão, pois se guardou o fotograma consigo dele se serviu para, na audiência, pautar o ato de reconhecimento, logo, se errou no passado ao reconhece-lo por fotografia, manteve- se em erro agora ao repetir o reconhecimento pessoalmente. 

Em suma, se alguns parcos fatores levam a suspeitar que o réu estaria envolvido com o crime ora apreciado, não há certeza, não há prova, enfim, por ausência de respaldo probatório idôneo não foi formado pelo Juízo o convencimento indispensável ao decre- to condenatório. 

Pelo que foi exposto e devidamente fundamentado, julgo totalmente improcedente o pedido formulado na denúncia para ab- solver, como de fato absolvo omissis da acusação de prática do deli- to tipificado no artigo 157, parágrafo 2o, I do Código Penal, com ful- cro no inciso V do artigo 386 do Código de Processo Penal. Sem cus- tas. 

P. Vista ao Ministério Público. 

Intime-se o acusado para ciência da sentença e do prazo recursal, devendo, outrossim, informar se pretende recorrer e, após, dê-se nova vista à Defensoria. 

Transitada em julgado, proceda-se às comunicações e ano- tações devidas, dê-se baixa e arquive-se. 

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2019. 

MARCOS AUGUSTO RAMOS PEIXOTO

JUIZ DE DIREITO 

8 ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: a Prova Testemunhal em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 130. 37a Vara Criminal da Capital - VII -