Indeferimento de imissão de posse em imóvel ocupada por idosa e doente

SENTENÇA

XXXXXXXXXXX propôs ação de Imissão na Posse em face de YYYYYYYYYYYYYY.

Alega que arrematou judicialmente o imóvel descrito na inicial, porém não foi imitida na posse do bem.

A ré se defende afirmando que reside no imóvel há 40 anos, tendo alugado da antiga proprietária. Com o falecimento da locadora, passou a efetuar o pagamento dos aluguéis ao filho do de cujus. Ocorre que a ré é pessoa idosa e foi acometida de doença que a incapacita para o trabalho, de modo que foi autorizada a residir no local sem pagar a contraprestação desde 2006.

Réplica às fls. 105/111.

Prolatada decisão saneadora às fls. 188 que restou preclusa (fls. 190).

É O RELATÓRIO. PASSO A DECIDIR.

A causa está madura para o julgamento, sendo suficientes os elementos probatórios para permitir a cognição da demanda, uma vez que a questão de mérito é exclusivamente de direito.

A autora busca a imissão na posse de bem arrematado em hasta pública judicial em processo de execução de sentença que condenou a proprietária formal ao pagamento de cotas condominiais.

Analisando os autos, verifico que restou incontroverso nos autos a posse ininterrupta, mansa e pacífica da ré desde julho de 1976 (fls. 87).

A ré alega que sua posse, que se iniciou de forma precária, num contrato de locação e, portanto, com a implícita cláusula de desocupação do bem, passou a ser exercida plenamente, como se proprietária fosse.

Os documentos anexados aos autos evidenciam a existência de um contrato de locação (fls. 86/88) e recibos de aluguéis adimplidos até dezembro de 2001 (fls. 89/102).

É verdade que a ré utiliza do imóvel para fins de moradia, garantia fundamental e direito social de segunda dimensão, previsto no caput, do artigo 6º, da Constituição Federal, dotado de sensível densidade social que impõe ao Estado uma conduta comissiva de adoção de políticas públicas para o fim de sua efetiva concretização.

Como ensina o Professor Miguel Baldez:

“Não há dúvida, entretanto, de que uma leitura mais competente da Constituição, ou do que dela resta, e dos conceitos gerais do direito permite construir o direito à moradia como direito público subjetivo, portanto exigível. Assim, combinando-se o art. 5º da Constituição Federal, que garante ao cidadão e aos residentes no país, “a inviolabilidade do direito à vida”, com os fundamentos também constitucionais de solidariedade, dignidade da pessoa humana, e não se tendo como pensar a vida humana fora das relações sociais, deve concluir-se que a mulher e o homem só exercem a vida, ou tem vida em sentido social, quando praticam com o exterior atos de posse.”[1] (Sem grifos no original)

De outro viés, há que se ter sempre em mente que os direitos fundamentais, além de sua eficácia vertical, que os torna exigíveis do Estado, também apresentam uma aplicabilidade horizontal. Vale dizer, os direitos fundamentais, de que é exemplo o direito à moradia, devem ser aplicados e observados nas relações privadas.

Ou seja, os direitos fundamentais não só servem de paradigma para o controle vertical de constitucionalidade de leis e atos administrativos, mas também possuem uma eficácia horizontal que impõe a observância das garantias constitucionais nas relações de direito privado.

Nesse ponto, impossível deixar de destacar a publicização do direito privado, amplamente reconhecida nas decisões dos Tribunais Superiores:



STF, Segunda Turma

RE 201.819/RJ

Relator Ministro Gilmar Mendes:

“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.(...)”.

Desse modo, não é demais afirmar que todos estamos obrigados a observá-lo nas relações sociais e jurídicas, incluindo-se a Administração Pública, os Legisladores, o Poder Judiciário e os particulares.

Isso porque a crescente participação do exercício do poder econômico nas relações em sociedade impõe que se estabeleçam limites contra os mais fortes, pois é exatamente nos conflitos de interesse entre os detentores do poder social e econômico e os menos abastados que as liberdades se apresentam especialmente ameaçadas.

É bem de ver, então, que a moradia, definida como direito fundamental no artigo 6º da Constituição da República, configura-se critério inarredável de interpretação de normas jurídicas e de incremento da função social da posse.

Ressalte-se, nesse passo, que não se discute propriedade nos presentes autos, mas tão-somente a posse sobre o imóvel em pretensão deduzida em processo de clara natureza dúplice.

O âmago da questão é a posse ad interdicta, ou seja, aquela que concede a seu titular a prerrogativa de defendê-la através do desforço imediato, utilizando dos meios moderados e necessários, bem assim mediante o manejo das ações possessórias previstas no ordenamento jurídico pátrio, como no caso em análise.

No deslinde da causa, impõe-se aferir se a ré exerce a posse legítima de forma contínua e pacífica ou se a autora, ao adquirir a propriedade formal do imóvel tem um direito melhor do que o da ré a justificar o deferimento judicial da imissão na posse.

Vale dizer que, de um lado, há a propriedade registral adquirida pela autora que objetiva tomar posse do bem. E, de outra parte, há a posse materialmente exercida pela ré para o fim de moradia que consiste na destinação de maior densidade social que se pode conferir a um direito.

É evidente que a mera formalidade da aquisição da propriedade registral não pode se sobrepor ao direito humano de uma mulher de residir num imóvel que ocupa como residência há mais de 40 anos e, apesar disso, não foi sequer chamada ao processo de cobrança das cotas condominiais que culminou com a alienação judicial.

Certamente a autora, ao adquirir a propriedade do imóvel, também teve inserida na sua esfera jurídica a posse indireta do bem. Porém, a posse direta densamente exercida pela ré é legítima e protegida pelo ordenamento jurídico-constitucional.

Afigura-se patente que a posse da ré se revelou de tal forma densa socialmente que não pode ceder à pretensão da autora em se imitir na posse do bem.

Os alegados prejuízos sofridos pela autora em decorrência da aquisição formal da propriedade do imóvel deverão ser solucionados no campo em que desde sempre se circunscreveu a questão: o econômico e patrimonial.

O que não se pode admitir é privilegiar o poder econômico representado pela propriedade registral, no caso, em detrimento da existência digna de uma mulher ao exercer a posse para fim de moradia.

Pelo exposto,JULGO IMPROCEDENTE o pedido, na forma do artigo 487, I, do CPC.

Condeno a parte autora ao pagamento das custas do processo e dos honorários advocatícios, que fixo em R$ 1.000,00 (mil reais), com fundamento no 85, § 8º, do Código de Processo Civil.

P.R.I.


Rio de Janeiro, 11 de julho de 2016.


SIMONE DALILA NACIF LOPES

JUIZ DE DIREITO


[1] BALDEZ, Miguel, in: http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=50&id_publicacao=156&id_indice=1033