Artigo publicado originalmente no site do jornal Folha de S.Paulo no dia 27 de janeiro de 2020.
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Em 2019 falou-se muito em diversidade e inclusão racial, pauta que vem sempre acompanhada do interesse por nossas histórias de sucesso. No entanto, estamos distantes do dia em que poderemos dizer que vivemos numa sociedade inclusiva. De fato, ascendemos, passamos a ocupar espaços e caminhamos rumo ao topo de diferentes carreiras profissionais. Práticas excludentes permanecem nos deixando de fora do protagonismo profissional, razão pela qual cada lugar ocupado é motivo de regozijo, demonstrando avanço (incipiente) em direção a um resgate histórico e civilizatório.
Mas permitam-nos falar para além de trajetórias de superação individual, que carregam dores, feridas, cicatrizes e não representam a complexidade de nossa existência, pois o destaque a histórias de exceção vividas por negros reforça a mensagem de que “se um conseguiu, todos conseguem”.
Ao contrário, preferimos questionar os motivos pelos quais uma sociedade compreende que os negros devem experimentar tantas adversidades para lograr êxito.
Uma das respostas a essa pergunta encontra-se no cerne do que é o racismo estrutural —ou seja, esse é o “fluxo natural” de funcionamento das coisas. Não é à toa que 131 anos após a abolição da escravatura a população negra brasileira ainda não atingiu representação proporcional nos poderes de Estado. Somos iguais “apenas” perante a lei!
Pretendemos falar sobre como a população negra sofre, chora, sangra e morre todos os dias em razão do racismo. Morre-se por necessidades básicas suprimidas. Morre-se por péssimos serviços educacionais, que não permitem competir com a população branca privilegiada. Morre-se pela exploração no trabalho e pela violência policial. Morre-se com a negação de capacidades, habilidades e conhecimentos próprios.
Morre-se com cada olhar discriminatório e preconceituoso, que agride, fere e destrói dentro de um sistema que negligencia vidas de determinadas pessoas em razão da cor da sua pele.
Morre-se diariamente pelos limites e obstáculos impostos por pessoas brancas, que devem estar dispostas a realizar mudanças estruturais, reconhecendo seu lugar de privilégio e, assim, sua responsabilidade nas tantas formas de opressão e exclusão dos negros.
Questionamos esses privilégios, clamando para que nossas histórias de superação e sucesso não se sobreponham às necessidades da população negra, que adoece, sofre e morre em decorrência do racismo.
Precisamos deixar de confortar a branquitude, que se vê aliviada por não precisar abrir mão de privilégios. Não queremos transmitir ao nosso povo a mensagem de que o caminho do sucesso inclui noites sem dormir, falta de alimento, dobro de horas de estudos para compensar as precariedades na educação recebida. Não queremos contar sobre a difícil escolha entre o pagamento da inscrição na universidade, ou de concursos e cursos, e o de contas essenciais para sobreviver.
Pelo contrário, queremos que entendam serem legítimos os desejos de estudar, formar, constituir famílias e escrever livros —e que essas aspirações são nossos direitos. É possível sonhar e viver!
Assim, nossos processos de conquista constituem-se em um fazer político que conclama todos a desconstruir a utopia de que o racismo não existe e incentiva os negros a lutar, a perseguir sonhos, a não se calar diante de injustiças para que as barreiras do sistema sejam quebradas, construindo uma sociedade inclusiva que nos fortaleça, nos valorize e nos respeite.
Neste ano que se inicia desejamos que a sociedade compreenda definitivamente que, toda a vez que uma pessoa negra sofre racismo, todos os negros sofrem juntos, e que, toda a vez que uma pessoa negra morre vítima de racismo, todos os negros, consequentemente, morrem também.
Assim foi no ano que passou. Muitos negros morreram por conta do sistema racista estrutural e institucionalizado em nosso país, o que nos motiva a protestar com veemência pelo despertar da nossa sociedade, para que juntos possamos reconstruí-la de forma plural e justa.
É essa a nossa esperança: que em 2020 negros e negras não morram, tampouco sobrevivam! Desejamos que possam contar com a dignidade que deve ser dada a todos os seres humanos, independentemente de cor e condição social. Que toda pessoa negra possa viver!
Karen Luise
Juíza de direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e membra da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD)
Robson de Oliveira
Advogado do escritório Demarest Advogados, é vencedor do Chambers Diversity & Inclusion Awards 2019 na categoria Future Leader - Minority Lawyers