"Ociosa, mas alargada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. [...]Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar suas ordens aos negros.." (Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala).
"Esse é o momento em que, tanto do ponto de vista prático, quanto ideológico e teórico, as classes dominantes e dirigentes, em escala mundial, apostam (e ganham) no retrocesso, no recuo das conquistas sociais e econômicas das classes subalternas." (L.G.Belluzzo, 2013:33).
O cenário de abertura é o da Casa Grande de uma sociedade escravocrata e patriarcal, organizada a partir de uma economia primário-exportadora, em que os direitos dos homens e das mulheres eram sonegados à grande maioria (COSTA, 1998). As citações de dois pensadores do Brasil, de períodos distintos, escolhidas como epígrafes, auxiliam a que se desvendem os imensos desafios ainda hoje colocados à caminhada de construção de uma sociedade menos desigual e mais justa, com normas de proteção social que assegurem um patamar civilizatório eficaz e que contribuam para concretizar os princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, estruturantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, incorporados pela Constituição de 1988.
A Abolição livrou o país de seus inconvenientes. Quanto aos negros, abandonou-os à própria sorte (COSTA, 1998). Deles não se ocuparam as elites e o Estado (BIAVASCHI, 2007). Assim, a relação entre escravo e senhor acabou, formalmente, por culminar no homem “livre”, sem terem sido superadas as condições instituintes da dominação e sujeição. A existência de dominantes e dominados marcou a ferro e fogo nossa estrutura social, tendo na desmoralização do trabalho uma de suas expressões (COSTA, 1998: 15). Vivem-se resquícios dessa herança: seja nas dificuldades para democratizar o acesso aos bens essenciais à dignidade humana como terra, renda, moradia, saúde e emprego decente; seja nas dificuldades para incluir os trabalhadores domésticos no campo de abrangência da CLT; seja na exploração do trabalho em condições análogas à de escravo e nos obstáculos à aprovação do Projeto de Emenda Constitucional, PEC 438/01, que autorizou a expropriação da propriedade quando evidenciada essa condição e, agora, nas reais dificuldades para regulamentá-la; seja na intolerância de parte expressiva da sociedade às políticas sociais redutoras das desigualdades que, aliás, a cada dia se aprofundam; seja no rechaço e nas formas de discriminação que, volta e meia, afloram com violência, tornando vivo os refrões do Rappa (BIAVASCHI, 2007)²: A carne mais barata no mercado/É a carne negra, ou Todo o camburão tem um pouco de navio negreiro.
Essas considerações são relevantes quando, em meio à greve dos petroleiros, e em cenário de desconstituição da coisa pública e da tela de proteção ao trabalho, duas decisões monocráticas de Ministros das Cortes superiores, um do Tribunal Superior do Trabalho, TST, e outro do Superior Tribunal Federal, STF, em sede liminar, atentam contra um direito duramente conquistado e incorporado como social fundamental pela Constituição da República de 1988: o direito de greve. E sendo a greve assegurada como direito social fundamental, conquista dos trabalhadores, as recentes decisões dos Ministros Ives Gandra Filho, TST, e Dias Toffoli, STF, violam preceitos fundamentais.
Mas, no descompasso entre essas decisões e a realidade da vida e apesar das duras ameaças dirigidas aos petroleiros, a greve se expande, atingindo cerca de 121 unidades da PETROBRAS. Trata-se de greve legítima, apoiada por notas de solidariedade de várias entidades de representação do mundo do trabalho, juristas, pesquisadores, enfim, e que reivindica, pasmem, o cumprimento de Acordo Coletivo de Trabalho ajustado em 2019 com a PETROBRAS e suas empresas, entre elas a Araucária Nitrogenados, homologado pelo Tribunal Superior do Trabalho, TST, onde o processo de negociação foi mediado. Nesse Acordo Coletivo, em uma de suas cláusulas (cláusula 26 do Acordo envolvendo a Araucária e cláusula 41 do Acordo com a PETROBRAS), a PETROBRAS e suas empresas assumiram o compromisso de não efetivarem despedidas em massa sem discussão com as entidades sindicais representativas dos trabalhadores. O estopim da greve foi justo a ameaça de despedida de cerca de mil trabalhadores da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados do Paraná, Fafen-PR, em desrespeito ao acordado em instrumento legal chancelado pelo próprio TST.
Assim, a legitimidade dessa greve que, em suas pautas prevalentes, inclui o cumprimento de tal cláusula, é incontestável. Ademais, greve é direito social constitucionalmente assegurado. Daí a inconstitucionalidade da decisão monocrática do Ministro Ives Gandra do TST que, de forma inusitada e, ela sim, abusiva, decretou a abusividade de uma greve em sede liminar, deslegitimando o que fora ajustado em processo negocial perante o próprio TST e, dessa forma, fragilizando tanto o instituto da negociação coletiva, quanto a tela pública de proteção social ao trabalho, bem como o papel das instituições do trabalho. Ademais, ações punitivas e antisindicais, além de aprofundarem o enfrentamento e acirrarem o conflito, podem impor sérias consequências à sociedade. Fere o sendo jurídico também a decisão do Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli que, igualmente em sede liminar, acolheu pedido da PETROBRAS, restituindo a validade de outra liminar do mesmo Ministro Ives Gandra, vencida por decisão colegiada da sessão competente do TST, a SDC, e determinando que os sindicatos mantenham nas unidades de produção 90% dos petroleiros em atividade. E assim, ao limitar a greve a 10% dos trabalhadores, acabou por violar preceito fundamental, negando o próprio direito que a Constituição assegura.
Vivem-se tempos de regresso das conquistas sociais. Realidade que se insere em um projeto maior em andamento que busca retirar o Estado da condição de coordenador do desenvolvimento econômico com inclusão social, ferindo a soberania nacional, os direitos sociais conquistados, a democracia e atingindo importante patrimônio dos brasileiros: a PETROBRAS.
Referências bibliográficas
BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil 1930-1932. São Paulo, LTr, 2007.
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O Capital e suas metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013.
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à República. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 25.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
ROSSI, P.; MELLO, G. “Choque recessivo e a maior crise da história: A economia brasileira em marcha à ré. Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica” - IE/UNICAMP. Nota do Cecon, nº. 1, Abril de 2017.
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¹Desembargadora aposentada do TRT4; pesquisadora no CESIT-IE UNICAMP e do CLACSO, professora convidada na pós-graduação do IE-UNICAMP e professora permanente do doutorado em Ciências Sociais do IFCH-UNICAMP.
²O Rappa é uma banda de rock-reggae, que nasceu na baixada fluminense, fruto do trabalho da FASE/RJ.