O STF em 2020: matar no peito e fazer um golaço ou chutar a CF?

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 27 de fevereiro de 2020.

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“Se avexe não. Amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”.
(Letra da música “A natureza das coisas”, de Accioly Neto)

Só os poetas conseguem traduzir sentimentos e emoções inalcançáveis aos homens normais. Esse trecho citado acima é da música “A natureza das coisas”, de Accioly Neto e mais conhecida na interpretação do forrozeiro Flávio José, uma das vozes mais marcantes do forró, depois de Luiz Gonzaga. Outro trecho dessa bela canção: “Se avexe não. Toda caminhada começa no primeiro passo. A natureza não tem pressa, segue seu compasso. Inexoravelmente chega lá”.

Então, para falar sobre o que será do STF em 2020, nada mais apropriado do que imaginar que tudo pode acontecer, inclusive nada. De outro lado, toda caminhada começa no primeiro passo e, inexoravelmente, a história segue seu compasso, sem pressa. A história? A história “é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como já trovaram Pablo Milanés e Chico Buarque na “Cancion por la Unidade de Latino América”.

Também impossível imaginar o STF em 2020 sem considerar o que ele foi nos últimos anos, desde aquela fatídica profecia de um certo senador da República: “com o Supremo, com tudo”! O resultado, como se sabe, foi o impeachement sem crime político da ex-presidenta Dilma Roussef, com determinante apoio da questionada “Operação Lavajato”, a ascensão de grupos políticos que por diversas eleições não convenciam os eleitores através do voto e o início do desmonte das políticas sociais e do Estado Democrático de Direito. Ainda no início desse processo, quando instado, o STF negou seu papel de guardião da Constituição ou omitiu-se, permitindo que a Constituição fosse vilipendiada e ultrajada. O resultado dessa primeira fase, como a história precocemente escancarou, foi a submissão do STF aos caprichos e interesses pessoais de um grupo de procuradores e juízes endeusados pela grande mídia e apresentados como os redentores e construtores de uma sociedade livre da corrupção, falsamente julgada e condenada como a grande causadora das desigualdades sociais e da pobreza no Brasil.

Evidente que o STF teve papel fundamental na construção da narrativa anticorrupção, fácil de ser absorvida pela maioria esmagadora da população, mas o papel da grande mídia foi determinante para que multidões fossem às ruas e conferissem legitimidade ao golpe que destituiu uma presidenta honesta e democraticamente eleita. Em consequência, “com o Supremo, com tudo”, incluindo agora a denominada “República de Curitiba” e o Tribunal Superior Eleitoral, através de eleições influenciadas por métodos não muito convencionais e mais uma vez com o papel decisivo da grande mídia, o país elegeu um presidente de extrema direita e que está colocando em jogo o futuro de uma das nações que mais prometiam para os próximos anos com suas políticas de inclusão social, de distribuição de renda e fortalecimento da democracia na América Latina.

Pois bem, retornando ao nosso tema, o que podemos esperar do STF para este ano de 2020? Em primeiro, como se sabe, o Supremo terá duas fases ainda este ano: a conclusão da gestão do Ministro Dias Toffoli em setembro e o início da gestão do novo presidente. Mas até que um novo presidente assuma, teremos alguns meses com julgamentos extremamente importantes para o mundo jurídico e para o Estado Democrático de Direito.

Dentre esses temas, logo em 04 de março, o julgamento da ADI 5828, movida pela Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), do Mato Grosso do Sul, contra Decreto Estadual nº 14.827, de 28 de agosto de 2017, que restringiu o direito de reunião e manifestação na área denominada “Parque dos Poderes”, espaço territorial onde está concentrado o centro político administrativo do Estado de Mato Grosso do Sul. Essa ADI já conta com liminar deferida pelo Ministro Dias Toffoli e espera-se que o STF, no seu papel de guardião da Constituição, freie essa tentativa de violação ao artigo 5º, XVI, da CF.

Em 11 de março será a vez do julgamento da ADI 5543, movida pelo Partido Socialista Brasileiro contra o ato do Ministério da Saúde que dispõe sobre a “inaptidão temporária para indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo realizarem doação sanguínea nos 12 (doze) meses subsequentes a tal prática”. O Relator dessa ADI é o Ministro Edson Fachin e já conta com o voto favorável dos Ministros Barroso, Rosa Weber e Fux. Aguarda-se o voto do Ministro Gilmar Mendes. Imagine-se, portanto, que para a Portaria atacada, o fato de manter relações sexuais com pessoa do mesmo sexo torna essa pessoa impura e contaminada. É incompreensível que tal possa acontecer sob a égide de uma Constituição que tem como garantia fundamental exatamente a igualdade de todos perante a lei e sem distinção de qualquer natureza, bem como diante de um ordenamento jurídico que admite a união estável e também o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Supremo, portanto, é chamado, mais uma vez a barrar essa agressão à Constituição.

Também estarão na pauta do Supremo para o primeiro semestre de 2020 matérias econômicas, trabalhistas, tributárias, reforma do ensino médio, dentre outros. Existem dois julgamentos, no entanto, que estão ainda sem pauta, mas que são determinantes para a afirmação dos direitos fundamentais e da democracia: o habeas corpus em que o ex-presidente Lula questiona a imparcialidade do ex-juiz Sérgio Moro em seu julgamento e o Recurso Extraordinário 635.659, que tem como Relator o Ministro Gilmar Mendes, cujo objeto é a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28, da lei nº 11.343/06, a lei de drogas. Além desses dois casos emblemáticos, o Supremo precisa dar uma resposta à sociedade e ao Congresso Nacional acerca do Juiz de Garantias.

Para o segundo caso, evidente que a resposta não pode ser outra: o artigo 28 é claramente inconstitucional. A consequência desse reconhecimento implicará, certamente, no primeiro momento, em grande debate hermenêutico por juízes e tribunais acerca do alcance da decisão e da interpretação da lei 11.343/06 após o expurgo do artigo 28. Para o primeiro caso, o reconhecimento da parcialidade do ex-juiz, agora ministro do governo que tem um presidente eleito, dentre outras razões, por que o candidato condenado pelo então juiz foi impedido de concorrer, implicará no restabelecimento de um julgamento justo para o ex-presidente Lula, como tem defendido o Ministro Gilmar Mendes.

A segunda fase do STF em 2020 será a eleição do novo presidente. A seguir a tradição, o que deve acontecer, deverá ser eleito o Ministro Luiz Fux. Afirmou o eminente Ministro, em sua rápida biografia no site da UERJ, que em seus julgamentos primeiro busca uma solução justa e depois a roupagem jurídica para aquela decisão. O que se questiona, no entanto, é qual o critério ou parâmetro de sua excelência para definir o que seja uma solução justa? Evidente que esse “justo” só pode ser o resultado de seu lugar no mundo e de seu horizonte histórico, visto que o eminente Ministro não é um extraterrestre, mas um ser humano com todas as imperfeições, pré-conceitos e pré-juízos inerentes à espécie humana.

Comenta-se, por fim, que seria do Ministro Luiz Fux a emblemática frase de que para certo julgamento, ele “mataria no peito”. Muito bem. Mais do que isso, espera-se que o eminente Ministro, enquanto futuro presidente da mais alta corte de Justiça do Brasil, além de “matar no peito”, também drible os arroubos de autoritarismo que batem à porta do país, dê um toque de classe para o Estado de Direito, avance para receber a bola na frente e, ao invés de chutar a Constituição, faça dela o “manto sagrado” de seus julgamentos, desloque o goleiro do fascismo, chute forte no canto esquerdo e faça um golaço em favor da Justiça!!

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Gerivaldo Neiva é juiz de Direito no TJBA e membro da Associação Juízes para a Democracia