O juiz garantista?

Imagens: Lionsgate e Agência Brasil – Arte: Gabriel Pedroza / Justificando

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 4 de março de 2020.

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A Constituição Federal de 1988 inaugurou um panorama calcado na maior proteção do ser humano frente às ingerências do Estado, operando uma virada copérnica quanto ao catálogo dos direitos fundamentais.

A título de exemplo, para não pecar no vício da prolixidade que infelizmente persegue esse articulista, tem-se que a matéria passou a ser tratada logo no início do texto constitucional pelo legislador constituinte originário de 1988, ao passo que em experiências anteriores o trato do tema se dava ao final, talvez por se colocar em patamar de desimportância ou nítido nominalismo o plexo de valores mais intrínsecos do ser humano pelo próprio Estado.

Tal aspecto é revelador da fixação do compromisso de todos os poderes quanto à densificação/concreção dos direitos e garantias fundamentais e, no caso do Poder Judiciário, da atribuição da missão institucional de proteção do ser humano frente ao arbítrio estatal. No processo penal, a incidência de direitos essenciais como a presunção da inocência, devido processo legal, vedação a tratamento cruel ou degradante, entre outros, torna ainda mais impositiva a obrigação de o membro do Poder Judiciário atuar como verdadeiro tutor das regras do jogo e da plena eficácia dos direitos fundamentais, como fator de atribuição de legitimidade de uma eventual intervenção do Estado no bem maior da liberdade individual.

O sistema acusatório encontra-se fincado na dicção do art. 129, inciso I, da Constituição Federal, dispositivo esse recentemente concretizado por meio do art. 3º-A, do Código de Processo Penal, após o advento da Lei nº 13.694/19. A junção do referido sistema com a normatividade do princípio da presunção da inocência resultariam na atribuição da cargas probatórias ao órgão acusatório, fixando-lhe a tarefa/ônus de comprovar os elementos da sua hipótese acusatória. E, quando não existente base probatória suficientemente apta para a afirmação da responsabilidade criminal do réu, não se exigiria maior carga de fundamentação, mesmo porque a sua inocência é presumida, não sendo necessária maior digressão para sua afirmação.

Embora tudo isso pareça ser uma obviedade, posto que decorrente da própria interpretação do plexo de valores trazidos pela ordem constitucional vigente, o estado real das coisas é demonstrativo da existência de uma sociedade que clama por punição a qualquer custo. E, transgredindo a sua concepção de instância contra-majoritária, não raras vezes o membro do Poder Judiciário inspira-se nas vozes das ruas (o canto da sereia de Homero), a admitir voluntarismos que desvirtuam a sua missão institucional, culminando numa inversão de valores que resulta na demonização do juiz que segue a Constituição Federal e as leis vigentes, como se tal agente político fosse um entrave para o clímax do gozo da punição clamada pelo corpo social.

No afã de punir a qualquer custo, o julgador incorpora o personagem Dredd dos quadrinhos, aglutinando as funções de investigar, acusar e julgar, num claro exemplo de sistema pós-acusatório tão bem mencionado por GLOECKNER (GLOECKNER, 2018, p. 24). Na dúvida, não simplesmente absolve – deixando de aplicar o princípio da presunção da inocência como regra de julgamento – mas persegue uma verdade e uma vontade construída no seu psiquê, rompendo com toda a liturgia que um sistema que adota a separação de funções fixa, incorporando-se à arena processual como se jogador fosse e não como árbitro (ROSA; LOPES JUNIOR).

O juiz garantista, por sua vez, ainda preocupado com a integridade do texto constitucional e o sistema de proteção inaugurado como decisão política fundamental, optaria por cumprir as regras vigentes, sem protagonismo, sem holofotes, sem anseios de satisfação do sentimento majoritário populacional. Observador da produção da prova, quando viesse a se deparar com uma acusação infundada, sem ressonância probatória para a submissão do cidadão a uma reprimenda penal, não deveria se envergonhar de absolver, sendo que poucas palavras deveria externar para tanto, já que não precisaria fundamentar exaustivamente a respeito da inocência da pessoa.

Entretanto, como diz o culto professor Lênio Streck, aplicar a Constituição nos dias atuais é um ato revolucionário. Diante de uma sociedade que clama por mais e mais punição, a iniciativa de cumprir o manto de valores plasmado no texto constitucional, através de decisão de cunho libertário, principalmente quando emanada por um juiz que se alinhe a um perfil garantista, acaba por exigir, paradoxalmente, maior carga de fundamentação, tanto como forma de autodefesa institucional por parte de quem assina o decisório, como meio de, através do constrangimento argumentativo, apontar o caos que se insere o estado de coisas atual e reafirmar os valores da ordem constitucional vigente.

A primeira razão justificadora para a emanação de uma fundamentação exauriente libertária diz respeito a uma instintiva autoproteção do agente emanador do decisório. É que, diante do pensamento majoritário relativizador das garantias fundamentais, a culminar, vez por outra, na admissão de fundamentação condenatória com base probatória rarefeita, o juiz garantista, numa atividade parecida como um exorcismo argumentativo, aponta exaustivamente as razões para uma absolvição ou soltura do cidadão, de modo a deixar inquestionável que exerce a sua função com base nas leis vigentes e não por mera preferência pessoal ou filosófica.

Quanto a isso, não é demais lembrar que julgadores com perfil mais garantista já foram alvo de questionamentos em instâncias correcionais em razão do conteúdo libertário das suas decisões. É sempre importante citar os casos dos juízes Roberto Luiz Corciolli Filho e Kenarik Boujikian, os quais responderam a processos administrativos disciplinares fundados em inconformismos derivados do perfil decisório, sendo que o primeiro chegou a ser punido com sanção disciplinar de censura pelo Órgão Especial do TJSP, enquanto que a segunda, após ter sido também censurada pelo mesmo órgão, felizmente teve revertida a punição pelo Conselho Nacional de Justiça.

Superada a vertente da autoproteção, o agir revolucionário citado por Streck impõe que o juiz garantista aponte as falhas da atuação dos órgãos da persecução penal, tanto como forma de apresentar uma decisão de perfil argumentativo constrangedor ao excesso de arbítrio estatal, assim como para reafirmar exaustivamente a plena eficácia dos direitos fundamentais que devem ser observados na justiça criminal. Na missão contramajoritária de garantir a integridade do texto constitucional, o excesso argumentativo, ainda que em sede de decisão de cunho libertário, expõe as mazelas de um sistema pós-acusatório ou neoinquisitorial, reajustando os ponteiros da bússola protetiva que sempre deveria guiar a prestação jurisdicional.

Trata-se de postura comprometida com os valores entrincheirados em 05 de outubro de 1988, quando promulgada a Constituição Federal atualmente vigente. Ao Poder Judiciário o legislador constituinte originário fixou prerrogativas (art. 95) visando a sua independência funcional para fins de concretizar o texto constitucional e não para desfigurá-lo, de modo que, se o que inspira o julgador é o sentimento majoritário, a via legítima de deixar a toga e aventurar-se pelo Poder Legislativo ou Executivo é mais adequada para tanto.

Oxalá um dia não se necessite mais fundamentar exaustivamente decisões que ofertem a devida eficácia aos direitos fundamentais, pois isso se constituirá como um atestado de que finalmente internalizou-se o espírito emancipatório que inspirou a sua edição. Enquanto isso não acontece, o paradoxo permanece.

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GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal [recurso eletrônico] : uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1 / Ricardo Jacobsen Gloeckner. -1. ed. – Florianópolis [SC] : Tirant Lo Blanch, 2018.

MORAIS DA ROSA, Alexandre; LOPES JR., Aury. “Afinal, se no jogo não há juiz, não há jogada fora da lei”, disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jul-05/limite-penal-jogo-nao-juiz-nao-jogada-fora-lei, acesso em 02/03/2020.

STRECK, Lênio. Entrevista disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581764-aplicar-a-constituicao-hoje-e-um-ato-revolucionario-entrevista-com-lenio-streck, acesso em 02/03/2020.

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Matheus Martins Moitinho é juiz de direito do TJBA, membro da Associação Juízes pela Democracia e IBADPP.