Artigo publicado originalmente no site do jornal O Estado de São Paulo no dia 13 de março de 2020.
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Os sinais de abandono de práticas democráticas em nosso país estão cada vez mais claros. Está em curso uma política de desrespeito a nossa soberania, bem representada pela fala de Bolsonaro, quando afirma concordar com a deportação sumária de brasileiros que tenham ingressado ilegalmente nos EUA; pela agenda de legislações que destroem direitos; pela inércia em relação à apuração de assassinatos como o de Marielle; pelo descaso com a pandemia mundial.
Em comunicado oficial, o presidente esquece suas funções e pede apoio, em lugar de indicar as medidas a serem tomadas para conter a disseminação do vírus. Mas não há espanto. Há uma espécie de anestesia, de adoecimento coletivo. Em lugar da indignação, o silenciamento que decorre da perseguição a quem publica opinião ou artigo com críticas ao governo, a quem julga com base na Constituição. Em lugar da ação, a censura às universidades, à imprensa, às artes.
É nesse estado de adoecimento social que o Brasil se defrontará com o coronavírus. O sucateamento do serviço de saúde, os escassos investimentos em ciência e tecnologia e a absoluta ausência de políticas públicas de distribuição de renda potencializarão a disseminação da doença. Como proteger quem vive na rua? Como evitar que os doze milhões de desempregados e os cinco milhões de desalentados paguem com a vida a não-política que vem sendo praticada em nosso país?
Quem ignora propositadamente direitos sociais, aposta no caos e atua para promovê-lo, não tem condições de agir em um quadro tão adverso. O coronavírus talvez não mate mais do que a fome, a miséria e até mesmo a violência de gênero no Brasil, mas sem dúvida evidencia ainda mais o adoecimento de nossa democracia, a inércia de nossas instituições e a urgência por mudanças estruturais profundas.
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Valdete Souto Severo é presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD)