Superencarceramento e Covid-19: entre a necropolítica e a necrojurisdição

Imagem: Luiz Silveira/Agência CNJ

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 2 de abril de 2020.

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Com a grave pandemia do Coronavírus (COVID-19), que se espalha em progressão geométrica, conforme amplamente noticiado, advém a premente necessidade de retardar, ao máximo, a contaminação em massa com consequente sobrecarga da infraestrutura complexa do sistema público de saúde para o enfrentamento dos casos agravados da doença.

Na maioria dos casos (80%), a doença não apresenta maiores gravidades. Mas, dependendo da faixa etária e das comorbidades dos pacientes, a letalidade pode atingir 15% dos infectados, como ocorre com idosos, sobretudo os maiores de 80 anos, os imunossuprimidos, os portadores de doença pulmonar crônica, os portadores de doença crônica que afetam os grandes sistemas corporais.

No Brasil, entretanto, pode haver o rejuvenescimento da Covid-19. Segundo Margareth Dalcolmo, pneumologista da ENSP, “a média de idade dos pacientes em estado grave no Brasil está, por ora, entre 47 anos e 50 anos.” (DALCOLMO, 2020)

Um quadro de profunda seriedade que se incrementa com a projeção do número absoluto de pacientes com evolução agravada da patologia, necessitando de tratamento em regime intensivo, frente ao insuficiente número de vagas em CTIs e UTIs no nosso sistema de saúde, tanto o público quanto o privado.

Ainda que todas as vagas fossem destinadas exclusivamente para o tratamento dos pacientes acometidos da COVID-19, não há leitos suficientes.

A imensa demanda judicial pelo fornecimento de vagas em UTIs e CTIs evidencia que já não há vagas para atender à demanda ordinária da rede pública de saúde. Assevera Ligia Bahia que

o drama cotidiano de todas as instituições envolvidas com a saúde pública e com parte da privada no Brasil é o de tentar evitar a morte de uma pessoa e prejudicar tantas outras que também aguardam por cuidados emergenciais.(BAHIA, 2020)

Nesse quadro, muitas medidas restritivas foram recomendadas pela OMS, com quarentena e isolamento para as pessoas incluídas nos grupos de risco visando o mínimo de circulação nas ruas.

O Sistema Penal, nesse contexto, evoca seriamente a preocupação com a disseminação do novo coronavírus, tanto no ambiente intramuros, como no meio aberto.

As unidades prisionais superlotadas têm déficit de 70% de vagas nas cadeias do Estado do Rio de Janeiro, conforme Mapa de Estabelecimentos Prisionais no site do CNJ (“GEOPRESIDIOS – CNJ”, 2020), sendo classificadas como ruins ou péssimas 40 unidades num universo de 56, ou seja 71,83% das prisões.

A grande maioria dos presos está em locais superlotados. Conforme asseverado por Buch (2020),

A superlotação de mais de 800.000 pessoas presas para a metade de vagas, leva os detentos a ficarem confinados em celas úmidas, sem saneamento e sem insolação, nelas permanecendo em média 22h por dia, com duas horas apenas de banho de sol. Isso tudo, aliado à falta de alimentação adequada, higiene, água potável e pouco acesso a equipes de saúde, faz com que a imunidade da pessoa presa decline drasticamente. (BUCH, 2020)

Por tudo isso, foi declarado o estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347.

Não à toa, doenças graves são frequentes entre as pessoas privadas de liberdade, sendo a Tuberculose o exemplo mais emblemático, como denunciado por Dalcolmo (2020):

Um exemplo é o caso da tuberculose, uma doença que é fator de agravamento da Covid-19. O Brasil tem uma taxa elevada, cerca de 30 casos por 100 mil habitantes. Em cidades como o Rio de Janeiro, ela já é muito alta, de 70 a 75 casos por 100 mil. Mas na Cidade de Deus, onde houve um caso, na Rocinha e em Manguinhos, por exemplo, ela explode para 280 a 300 por 100 mil. E nos presídios chega a absurdos 2.500 casos por 100 mil. Cerca de 80% dos casos de tuberculose são pulmonares. Quando a Covid-19 encontrar a tuberculose teremos uma mortalidade absurda. (DALCOLMO, 2020)

Todos esses fatores incrementam o risco de aceleração da propagação do vírus na população carcerária que é repleta de pessoas inseridas no risco de letalidade do COVID-19.

Note-se que, a julgar pela incidência da Tuberculose, conforme acima mencionado, será catastrófica a entrada, no ambiente carcerário, do Coronavírus, cujo poder de contaminação ocorre em escala geométrica, alastrando-se exponencialmente entre as pessoas livres.

Entre os presos, diante de sua peculiar condição de vulnerabilidade sanitária, dadas as epidemias que já os acometem e a baixa imunidade, a velocidade de contágio será incontavelmente maior. Não há como concluir de forma diversa.

Tais circunstâncias merecem a atenção das pessoas livres, pois os agentes penitenciários e demais trabalhadores do sistema carcerário são vetores que não apenas levam o vírus para o interior das cadeias, mas também o trazem de lá, num ciclo vicioso que contribuirá para disseminar mais rapidamente a doença no meio extramuros.

Não bastasse a superlotação carcerária contribuir importantemente para o risco de contágio às pessoas livres, também a incidência de agravamento dos casos de COVID-19 será exponencialmente maior, dadas as precárias condições físicas dos presos, sobrecarregando o sistema público de saúde e utilizando vagas de UTI e CTI que poderiam ser destinadas a outras pessoas, se houvesse êxito em diminuir essa incidência.

Diminuir a população carcerária é a única forma de contribuir para que o Sistema Penitenciário não seja fator de incremento da disseminação da Covid-19 e de sobrecarga com consequente colapso do Sistema de Saúde em prejuízo para todos os usuários.

Ciente de todo esse estado de coisas, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020 para a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

O ato expressa a vontade constitucional de que a prisão provisória tem caráter excepcionalíssimo, sendo a liberdade a regra no nosso ordenamento jurídico.

Alguns magistrados atendendo à recomendação do Conselho Nacional de Justiça, seja na competência da instrução e julgamento das ações penais, seja na execução penal, passaram a reavaliar as prisões provisórias e definitivas conforme os critérios expressos no ato administrativo. Muitos já o fizeram antes mesmo de o CNJ baixar a recomendação que foi referendada pela ONU (“Nações Unidas difundem recomendação do CNJ sobre coronavírus em prisões”, 2020).

Porém, ainda que as prisões estejam sendo reavaliadas, o encarceramento não sofreu impacto, não sendo divulgada significativa diminuição dos números para reduzir o risco de explosão generalizada da pandemia.

Manter a população carcerária nos números astronômicos que temos hoje terá sim consequências nefastas na evolução da pandemia da Covid-19 no Brasil, e não apenas para os presos, repito.

Vale dizer que manter o quantitativo carcerário nos níveis atuais equivale a condenar presos à vedada pena de morte (artigo 5º, XLVII, a, da CR), sem possibilidade de acesso rápido sequer a tratamento.

É responsabilidade do Estado assegurar a saúde e a vida à pessoa privada de liberdade, que se encontra sob cautela estatal e, por isso, não pode se defender e buscar, por conta própria, acesso a atendimento médico-hospitalar.

O magistrado precisa compreender a sua responsabilidade pelas pessoas que encarcera e por aquelas que, mesmo livres, podem ser contaminadas em decorrência da superlotação penitenciária.

Como bem salientou Buch (2020), “Estamos falando de vidas! Vamos correr o risco de deixar pessoas morrerem por falta de coragem?”

Já é demais o Presidente da República ter minimizado uma pandemia que parou o mundo todo e mata vorazmente, ao incentivar a circulação e aglomeração de pessoas, em completo descaso pela vida dos brasileiros, especialmente os mais vulneráveis social e economicamente. (GIELOW, 2020)

A decisão é entre assumir como política pública a morte de milhares de pessoas encarceradas, negando-lhes assistência médica, em aplicação sumária, espúria, inadmissível e inconstitucional de uma vedada pena de morte, ou diminuir a população carcerária visando, inclusive, não impactar e colapsar a rede pública de saúde brasileira.

O Poder Judiciário não pode exercer o papel de algoz enveredando perigosamente para o que a Desembargadora Federal do Rio de Janeiro, Simone Schreiber, perfeitamente denominou de “Necrojurisdição”.

Assumir como aceitável a morte de uma só pessoa, privada ou não de liberdade, é sujar as mãos de sangue.

Temos de ser muito maiores do que isso.

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Simone Nacif é juíza de direito, mestra em Saúde Pública. Membra da AJD e da ABJD