No teatro de egos quem perde é a população brasileira

Imersos até o pescoço em crimes e condutas anti-éticas, ex-ministro e presidente se atacam publicamente

 

“Nos dias de hoje esteja tranquilo
Haja o que houver pense nos teus filhos
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo”

– Música Cartomante, Ivan Lins

Ato I: um ministro que não suporta corrupção

Sergio Moro ignorou as regras sobre competência criminal durante a operação Lava-Jato. Desautorizou a decisão de um desembargador que estava respondendo pelo plantão, sem que para isso tivesse competência e enquanto estava em férias. Vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula, de forma ilegal. A seis dias do primeiro turno das eleições, retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci. Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, indicando as provas a serem ou não produzidas. Sentenciou em tempo recorde e após retirar o ex-presidente Lula da corrida eleitoral, aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, enquanto ainda atuava como juiz.

Sergio Moro aceitou ser ministro de alguém que tem como ídolo Ustra, um torturador. Alguém que durante a campanha disse que iria “fuzilar a petralhada” do Acre, e que enquanto atuou no parlamento empurrou e ofendeu sua colega deputada Maria do Rosário, dizendo-lhe que não “merecia” ser estuprada.

Na condição de ministro, Sergio Moro entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça. Durante o tempo em que atuou como braço direito de Bolsonaro, pediu a abertura de 12 investigações sobre possíveis crimes contra a honra do presidente, “mais do que todas as investigações sobre crimes a honra pedidas pelos ministros da Justiça que serviram a Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso somadas”.

O The Intercept apontou em reportagem que Sergio Moro deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, amigo da família Bolsonaro, “envolvido nas rachadinhas de Flavio, o filho 01, e possivelmente envolvido no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes Nóbrega”, executado em seguida pela polícia baiana. Também mandou a Polícia Federal investigar o porteiro do condomínio em que vivem Jair e Carlos Bolsonaro, depois de ele ter dito que Élcio Queiroz, motorista do carro usado para matar Marielle e Anderson, foi a casa do presidente no dia do crime”.

Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro já cometeu – antes mesmo da denúncia feita por Sergio Moro – pelo menos 15 atos passíveis de serem configurados como crime de responsabilidade: “deu declarações falsas; insultou jornalistas”; ameaçou fechar a Ancine caso não fosse possível filtrar o conteúdo das produções apoiadas pela Agência; publicou vídeo com conteúdo pornográfico durante o carnaval; exonerou o fiscal do Ibama que o havia multado; exonerou o diretor do INPE porque ele o criticou; em 2019 determinou que os quartéis “comemorassem” o golpe civil-militar de 1964, entre outras condutas que nunca mereceram atenção, repreensão ou atitude por parte do ministro Sergio Moro.

Mas há algo ainda mais grave.

Sergio Moro nada fez quando o presidente, contrariando a OMS e o Ministério da Saúde, minimizou a pandemia e sugeriu o imediato retorno do funcionamento das escolas e do comércio, mesmo diante do fato de que isso implicaria um crescimento exponencial dos adoecimentos e mortes em nosso país.

Também nada fez quando o presidente convocou para ato contra o parlamento ou participou de manifestação que pedia a volta do AI-5.

Não se pronunciou diante da escalada de mortes provocada pela COVID-19 e o descalabro de uma medida provisória autorizando extensão de jornada justamente na área da saúde. Enquanto os relatos de falta de equipamentos de proteção e de adoecimento entre as trabalhadoras e trabalhadores da saúde multiplicavam-se, Sergio Moro era só silêncio.

Afinal de contas, Sergio Moro acabou confessando o crime de corrupção passiva, ao dizer claramente haver negociado uma pensão. Ao se referir às exigências que comentaram terem sido por ele feitas, quando do convite para assumir o ministério, disse: “pedi que a minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão”. Ele, portanto, solicitou vantagem indevida para a ocupação do cargo de ministro, ato descrito como crime de corrupção em nosso Código Penal.

E não é só isso. Ao relatar que o presidente da República cometeu atos ilícitos e não apresentar denúncia formal, instruída com as provas de suas acusações, sua conduta pode vir a ser qualificada como crime de prevaricação.

Fato é que o ex-ministro que não suporta corrupção, admitiu tal prática em rede nacional.

Ato II: Um presidente magoado

Tão falsa quanto a preocupação de Sergio Moro com interferências políticas na Polícia Federal é a mágoa revelada em cadeia nacional pelo presidente da República. Em seu pronunciamento, na tarde do dia 24 de abril, Bolsonaro negou tenha tentado interferir nos inquéritos, mas nada disse sobre a falsificação da assinatura de Sergio Moro ou sobre a prática de corrupção através da concessão de vantagem (pensão) para que ele assumisse o cargo de ministro.

Em lugar disso, referiu o dia em que conheceu pessoalmente Sergio Moro. Disse estar decepcionado, magoado, chegando até a afirmar que ficou muito triste com a forma como Sergio Moro se comportou. Durante sua fala desconexa, referiu que quer sim poder “dialogar” com as pessoas do “primeiro escalão” de seus ministros, admitindo, portanto, a interferência política denunciada por Sergio Moro.

Mesmo supostamente magoado com a alta traição de seu principal aliado, Bolsonaro não deixou de referir que, ao saber de notícias sobre possível namoro de seu filho “Zero 04” com a filha de Ronie Lessa, investigado por suposto envolvimento na morte de Marielle e Anderson, resolveu confrontá-lo. Como resposta, segundo o presidente, o filho disse-lhe que não tinha como saber, pois já havia “saído com metade do condomínio”. A fala é de uma violência brutal.

Sem que houvesse relação alguma com as denúncias de Sergio Moro, sem que alguém houvesse perguntado a propósito, Bolsonaro fez questão de enunciar que seu filho “coleciona” mulheres, sem saber sequer quem são. Em um país que conta com números recordes de violência de gênero e em um momento no qual as denúncias de violência doméstica aumentaram 44,9% apenas em São Paulo, durante o período de isolamento físico, essa fala é um convite ao desrespeito. O tom utilizado, de quem conta vantagem sobre a virilidade de um de seus filhos é apenas mais uma evidência da sua completa incapacidade para exercer o cargo a que foi alçado pelo voto de 57 milhões de brasileiras e brasileiros.

A afirmação é tão repugnante quanto outra por ele feita, há alguns dias, de que se estiver contaminado, o problema é apenas seu, o que revela completo descaso com as vidas humanas, qualificando-se como uma fala genocida, pois seu corpo pode servir de veículo para a contaminação de pessoas que venham a falecer em razão da doença.

O ponto mais absurdo do discurso ocorreu quando Bolsonaro referiu expressamente que a sua vida de presidente da República vale mais do que a vida de Marielle, ao criticar o fato de a Polícia Federal, segundo ele, haver preterido as investigações sobre quem tentou assassiná-lo.

Invocar o nome dessa mulher negra, que tombou na luta contra a desigualdade e o milicianismo no Brasil, para exaltar a importância da própria vida, enquanto o país enfrenta uma pandemia que já atingiu, segundo números oficiais que não refletem integralmente a realidade, mais de 53.000 e vitimou mais de 3.700 pessoas, é desumano, além de machista.

A vida do presidente não vale mais dos que as vidas das pessoas mortas em razão de uma gestão pública de descaso para com uma doença da gravidade da COVID-19, sobre a qual, aliás, o discurso do presidente não dedicou sequer uma palavra. Certamente, sua vida também não vale mais do que a vida de Marielle Franco, assassinada covardemente no dia 14 de março de 2018.

Não há mágoa ou traição, portanto. O que existe é o desacerto entre dois sujeitos que não conseguem pensar e agir para além de seus interesses pessoais, e que sequer se importam de travar sua disputa de vaidades durante o enfrentamento de uma pandemia.

Ato III: “Cai o rei de espadas; Cai o rei de ouros; Cai o rei de paus; Cai não fica nada”

Jair Bolsonaro já havia trocado cinco ministros, quando afastou Mandetta.

O ministro da saúde, antes de iniciar a série de coletivas de imprensa vestindo colete do SUS, acabou com o Programa Mais Médicos e demitiu os médicos cubanos, deixando milhões de pessoas desassistidas.

Mandetta participou calado, assim como calado estava Sergio Moro, dos atos que promoveram cortes significativos em Universidades Federais e, portanto, no fomento de pesquisa científica capaz de descobrir formas de enfrentamento da doença, em todo o país. Também não se opôs aos cortes de verba do Bolsa Família, que determinaram o aprofundamento da miséria de milhões de pessoas.

Em 2016, Mandetta comemorou o impeachment de Dilma com um “tchau querida”, reforçando a conduta misógina que parece ser a marca desse governo.

Ao ganhar prestígio por adotar uma postura racional diante da ameaça da COVID-19 e ser anunciado como possível candidato nas próximas eleições presidenciais, foi descartado por Bolsonaro. Sua saída foi anunciada como “divórcio consensual”, mas o fato é que a troca foi determinada à revelia da vontade do ministro, pelo crescimento de sua popularidade.

É verdade que Mandetta resistiu em seguir o conselho de Bolsonaro, de acabar com o isolamento físico e ministrar cloroquina sem apoio em pesquisa científica séria. Mas essa é uma questão que seu afastamento não resolve. Basta ver que mesmo após a saída de Mandetta, segue valendo a realidade de que “não existem evidências sólidas da confirmação do efeito da cloroquina e a hidroxicloroquina na prevenção e tratamento da covid-19”, como anunciou o Conselho Federal de Medicina no último dia 23 de abril.

O que é preciso compreender é que nenhum dos dois motivos é técnico. Um diz diretamente com ameaças ao projeto de poder de Bolsonaro e o outro com o incômodo em se ver contrariado. Mas nada disso legitimou a adoção de alguma atitude por parte de Sergio Moro.

Aliás, a insistência de Jair Bolsonaro em referir a necessidade de uso de cloroquina no tratamento da COVID-19, enquanto vários estudos apontam o risco dessa prescrição, também pode configurar prática de crime de responsabilidade, na medida em que atenta contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, mais especificamente o direito à vida e o direito à saúde, e contra “a segurança interna do país”, ao promover adoecimento e morte em uma realidade na qual não há condições de atendimento médico para todos. Ainda assim, as falas do presidente e a demissão do colega Mandetta não mereceram atenção alguma de Sergio Moro.

Curioso é que, mesmo diante do silêncio eloquente do ministro da justiça em relação à evidente ausência de republicanismo na demissão do ministro da saúde, Mandetta se apressou em prestar solidariedade a Moro, quando soube do seu afastamento. Isso demonstra, uma vez mais, o verdadeiro mote de toda a encenação: disputa de egos e de projetos pessoais de poder, que estão absolutamente desconectados – todos eles – das necessidades vitais da população brasileira.

Ato final: fecham-se as cortinas

Imersos até o pescoço em crimes e condutas anti-éticas, ex-ministro e presidente se atacam publicamente

 

“Nos dias de hoje esteja tranquilo
Haja o que houver pense nos teus filhos
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
Nos dias de hoje não lhes dê motivo
Porque na verdade eu te quero vivo”

– Música Cartomante, Ivan Lins

Ato I: um ministro que não suporta corrupção

Sergio Moro ignorou as regras sobre competência criminal durante a operação Lava-Jato. Desautorizou a decisão de um desembargador que estava respondendo pelo plantão, sem que para isso tivesse competência e enquanto estava em férias. Vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula, de forma ilegal. A seis dias do primeiro turno das eleições, retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci. Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, indicando as provas a serem ou não produzidas. Sentenciou em tempo recorde e após retirar o ex-presidente Lula da corrida eleitoral, aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, enquanto ainda atuava como juiz.

Sergio Moro aceitou ser ministro de alguém que tem como ídolo Ustra, um torturador. Alguém que durante a campanha disse que iria “fuzilar a petralhada” do Acre, e que enquanto atuou no parlamento empurrou e ofendeu sua colega deputada Maria do Rosário, dizendo-lhe que não “merecia” ser estuprada.

Na condição de ministro, Sergio Moro entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça. Durante o tempo em que atuou como braço direito de Bolsonaro, pediu a abertura de 12 investigações sobre possíveis crimes contra a honra do presidente, “mais do que todas as investigações sobre crimes a honra pedidas pelos ministros da Justiça que serviram a Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso somadas”.

 

O The Intercept apontou em reportagem que Sergio Moro deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, amigo da família Bolsonaro, “envolvido nas rachadinhas de Flavio, o filho 01, e possivelmente envolvido no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes Nóbrega”, executado em seguida pela polícia baiana. Também mandou a Polícia Federal investigar o porteiro do condomínio em que vivem Jair e Carlos Bolsonaro, depois de ele ter dito que Élcio Queiroz, motorista do carro usado para matar Marielle e Anderson, foi a casa do presidente no dia do crime”.

Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro já cometeu – antes mesmo da denúncia feita por Sergio Moro – pelo menos 15 atos passíveis de serem configurados como crime de responsabilidade: “deu declarações falsas; insultou jornalistas”; ameaçou fechar a Ancine caso não fosse possível filtrar o conteúdo das produções apoiadas pela Agência; publicou vídeo com conteúdo pornográfico durante o carnaval; exonerou o fiscal do Ibama que o havia multado; exonerou o diretor do INPE porque ele o criticou; em 2019 determinou que os quartéis “comemorassem” o golpe civil-militar de 1964, entre outras condutas que nunca mereceram atenção, repreensão ou atitude por parte do ministro Sergio Moro.

Mas há algo ainda mais grave.

Sergio Moro nada fez quando o presidente, contrariando a OMS e o Ministério da Saúde, minimizou a pandemia e sugeriu o imediato retorno do funcionamento das escolas e do comércio, mesmo diante do fato de que isso implicaria um crescimento exponencial dos adoecimentos e mortes em nosso país.

Também nada fez quando o presidente convocou para ato contra o parlamento ou participou de manifestação que pedia a volta do AI-5.

Não se pronunciou diante da escalada de mortes provocada pela COVID-19 e o descalabro de uma medida provisória autorizando extensão de jornada justamente na área da saúde. Enquanto os relatos de falta de equipamentos de proteção e de adoecimento entre as trabalhadoras e trabalhadores da saúde multiplicavam-se, Sergio Moro era só silêncio.

Não há, pois, como acreditar na versão de um sujeito ético, indignado com práticas de corrupção.

Afinal de contas, Sergio Moro acabou confessando o crime de corrupção passiva, ao dizer claramente haver negociado uma pensão. Ao se referir às exigências que comentaram terem sido por ele feitas, quando do convite para assumir o ministério, disse: “pedi que a minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão”. Ele, portanto, solicitou vantagem indevida para a ocupação do cargo de ministro, ato descrito como crime de corrupção em nosso Código Penal.

E não é só isso. Ao relatar que o presidente da República cometeu atos ilícitos e não apresentar denúncia formal, instruída com as provas de suas acusações, sua conduta pode vir a ser qualificada como crime de prevaricação.

Fato é que o ex-ministro que não suporta corrupção, admitiu tal prática em rede nacional.

Ato II: Um presidente magoado

Tão falsa quanto a preocupação de Sergio Moro com interferências políticas na Polícia Federal é a mágoa revelada em cadeia nacional pelo presidente da República. Em seu pronunciamento, na tarde do dia 24 de abril, Bolsonaro negou tenha tentado interferir nos inquéritos, mas nada disse sobre a falsificação da assinatura de Sergio Moro ou sobre a prática de corrupção através da concessão de vantagem (pensão) para que ele assumisse o cargo de ministro.

Em lugar disso, referiu o dia em que conheceu pessoalmente Sergio Moro. Disse estar decepcionado, magoado, chegando até a afirmar que ficou muito triste com a forma como Sergio Moro se comportou. Durante sua fala desconexa, referiu que quer sim poder “dialogar” com as pessoas do “primeiro escalão” de seus ministros, admitindo, portanto, a interferência política denunciada por Sergio Moro.

Mesmo supostamente magoado com a alta traição de seu principal aliado, Bolsonaro não deixou de referir que, ao saber de notícias sobre possível namoro de seu filho “Zero 04” com a filha de Ronie Lessa, investigado por suposto envolvimento na morte de Marielle e Anderson, resolveu confrontá-lo. Como resposta, segundo o presidente, o filho disse-lhe que não tinha como saber, pois já havia “saído com metade do condomínio”. A fala é de uma violência brutal.

Sem que houvesse relação alguma com as denúncias de Sergio Moro, sem que alguém houvesse perguntado a propósito, Bolsonaro fez questão de enunciar que seu filho “coleciona” mulheres, sem saber sequer quem são. Em um país que conta com números recordes de violência de gênero e em um momento no qual as denúncias de violência doméstica aumentaram 44,9% apenas em São Paulo, durante o período de isolamento físico, essa fala é um convite ao desrespeito. O tom utilizado, de quem conta vantagem sobre a virilidade de um de seus filhos é apenas mais uma evidência da sua completa incapacidade para exercer o cargo a que foi alçado pelo voto de 57 milhões de brasileiras e brasileiros.

A afirmação é tão repugnante quanto outra por ele feita, há alguns dias, de que se estiver contaminado, o problema é apenas seu, o que revela completo descaso com as vidas humanas, qualificando-se como uma fala genocida, pois seu corpo pode servir de veículo para a contaminação de pessoas que venham a falecer em razão da doença.

O ponto mais absurdo do discurso ocorreu quando Bolsonaro referiu expressamente que a sua vida de presidente da República vale mais do que a vida de Marielle, ao criticar o fato de a Polícia Federal, segundo ele, haver preterido as investigações sobre quem tentou assassiná-lo.

Invocar o nome dessa mulher negra, que tombou na luta contra a desigualdade e o milicianismo no Brasil, para exaltar a importância da própria vida, enquanto o país enfrenta uma pandemia que já atingiu, segundo números oficiais que não refletem integralmente a realidade, mais de 53.000 e vitimou mais de 3.700 pessoas, é desumano, além de machista.

A vida do presidente não vale mais dos que as vidas das pessoas mortas em razão de uma gestão pública de descaso para com uma doença da gravidade da COVID-19, sobre a qual, aliás, o discurso do presidente não dedicou sequer uma palavra. Certamente, sua vida também não vale mais do que a vida de Marielle Franco, assassinada covardemente no dia 14 de março de 2018.

Não há mágoa ou traição, portanto. O que existe é o desacerto entre dois sujeitos que não conseguem pensar e agir para além de seus interesses pessoais, e que sequer se importam de travar sua disputa de vaidades durante o enfrentamento de uma pandemia.

Ato III: “Cai o rei de espadas; Cai o rei de ouros; Cai o rei de paus; Cai não fica nada”

Jair Bolsonaro já havia trocado cinco ministros, quando afastou Mandetta.

O ministro da saúde, antes de iniciar a série de coletivas de imprensa vestindo colete do SUS, acabou com o Programa Mais Médicos e demitiu os médicos cubanos, deixando milhões de pessoas desassistidas.

Mandetta participou calado, assim como calado estava Sergio Moro, dos atos que promoveram cortes significativos em Universidades Federais e, portanto, no fomento de pesquisa científica capaz de descobrir formas de enfrentamento da doença, em todo o país. Também não se opôs aos cortes de verba do Bolsa Família, que determinaram o aprofundamento da miséria de milhões de pessoas.

Em 2016, Mandetta comemorou o impeachment de Dilma com um “tchau querida”, reforçando a conduta misógina que parece ser a marca desse governo.

Ao ganhar prestígio por adotar uma postura racional diante da ameaça da COVID-19 e ser anunciado como possível candidato nas próximas eleições presidenciais, foi descartado por Bolsonaro. Sua saída foi anunciada como “divórcio consensual”, mas o fato é que a troca foi determinada à revelia da vontade do ministro, pelo crescimento de sua popularidade.

É verdade que Mandetta resistiu em seguir o conselho de Bolsonaro, de acabar com o isolamento físico e ministrar cloroquina sem apoio em pesquisa científica séria. Mas essa é uma questão que seu afastamento não resolve. Basta ver que mesmo após a saída de Mandetta, segue valendo a realidade de que “não existem evidências sólidas da confirmação do efeito da cloroquina e a hidroxicloroquina na prevenção e tratamento da covid-19”, como anunciou o Conselho Federal de Medicina no último dia 23 de abril.

O que é preciso compreender é que nenhum dos dois motivos é técnico. Um diz diretamente com ameaças ao projeto de poder de Bolsonaro e o outro com o incômodo em se ver contrariado. Mas nada disso legitimou a adoção de alguma atitude por parte de Sergio Moro.

Aliás, a insistência de Jair Bolsonaro em referir a necessidade de uso de cloroquina no tratamento da COVID-19, enquanto vários estudos apontam o risco dessa prescrição, também pode configurar prática de crime de responsabilidade, na medida em que atenta contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, mais especificamente o direito à vida e o direito à saúde, e contra “a segurança interna do país”, ao promover adoecimento e morte em uma realidade na qual não há condições de atendimento médico para todos. Ainda assim, as falas do presidente e a demissão do colega Mandetta não mereceram atenção alguma de Sergio Moro.

Curioso é que, mesmo diante do silêncio eloquente do ministro da justiça em relação à evidente ausência de republicanismo na demissão do ministro da saúde, Mandetta se apressou em prestar solidariedade a Moro, quando soube do seu afastamento. Isso demonstra, uma vez mais, o verdadeiro mote de toda a encenação: disputa de egos e de projetos pessoais de poder, que estão absolutamente desconectados – todos eles – das necessidades vitais da população brasileira.

Ato final: fecham-se as cortinas

A música Cartomante, com letra de Ivan Lins, é reflexo de um desejo. Lançada em 1978 na voz de Elis Regina, tem o claro propósito de conferir esperança diante do sofrimento gerado pelo regime civil-militar. Se naquela época a frase “não lhes dê motivo porque na verdade eu te quero vivo” representava o medo da violência estatal, hoje ganha novos contornos.

Ao medo da violência promovida pelo Estado, que segue sendo praticada principalmente contra a população negra e pobre desse país, soma-se o medo da morte causada pelo novo coronavírus. Um medo que não se justifica apenas em razão da novidade de uma doença que mata em poucas horas, mas também em face da consciência de que somos um país, cujos sistemas de saúde e de seguridade foram sucateados, com milhões de pessoas miseráveis, sem condições mínimas de saneamento básico, sem possibilidade alguma de sobrevivência digna, especialmente se colocadas em contato com o novo coronavírus.

A necropolítica que permite aprovação de regras como a EC 95 de 2016, que congela gastos sociais, gerando uma perda de R$ 20 bilhões em investimento na saúde só em 2019, não é novidade no Brasil, mas sem dúvida torna-se ainda mais perversa em um ambiente de pandemia. O congelamento aprovado no governo Temer teve como resultado uma significativa piora nas condições de oferta e qualidade do SUS, o retorno de doenças que já estavam praticamente erradicadas como sarampo e dengue, o aumento da mortalidade infantil e materna e da mortalidade precoce em doenças crônicas como câncer.

A “reforma” trabalhista, em 2017, liberou a terceirização e promoveu a maior descostura já sofrida pela CLT, tendo como efeito o atingimento de recordes históricos em número de desempregados e desalentados.

Nada disso foi desfeito ou combatido por Mandetta, Moro ou Bolsonaro.

Ao contrário, a política do atual governo aprofundou ainda mais a aposta na miséria e na morte da população brasileira.

A EC 103 de 2019, chamada “reforma” da previdência, estimula a capitalização e praticamente impede acesso a benefícios como a aposentadoria. A lei da “liberdade econômica” precarizou ainda mais as condições de trabalho. O sucateamento e a privatização de órgãos públicos como a DATAPREV impede concretamente que benefícios irrisórios como o emergencial de R$ 600,00 cheguem às mãos de quem deles necessita.

A edição de uma medida provisória (MP 927/2020) para estabelecer a possibilidade de extensão praticamente ilimitada da jornada de 12 horas para quem atua na área da saúde coloca em risco de morte pessoas, cujo trabalho é indispensável para o enfrentamento da COVID-19. Pessoas que estão trabalhando em condições inseguras, sem os equipamentos de proteção necessários. As inúmeras denúncias nesse sentido também não mereceram atenção de Sergio Moro ou Luiz Henrique Mandetta.

Enquanto esse último sofreu a dispensa sem desagradar seu chefe e aplaude Moro; enquanto Moro pousa de vítima das circunstâncias embora admita prática de corrupção; enquanto Bolsonaro profere discursos misóginos e incentiva a contaminação, o número de pessoas desalentadas, desempregadas e desesperadas em razão da política econômica, do sucateamento da saúde e da COVID-19 cresce de forma assustadora.

Não existem heróis, nem mesmo verdadeiros opositores, entre os atores das últimas cenas desse teatro político indecente. Existem pessoas cujas escolhas são determinadas por seus projetos de poder e que insistentemente revelam um descaso obsceno, em relação ao caos socias que ajudam a produzir.

A esperança é que uma hora “cai o rei de espadas; cai o rei de ouros; cai o rei de paus; cai não fica nada”. A partir daí, a (re)construção de um projeto de nação será urgente e necessária. Dependerá das escolhas que fizermos e deverá ter como principal objetivo a consolidação da solidariedade como parâmetro intransigente de convívio social.


Artigo publicado originalmente no site da Carta Capital no dia 27 de abril de 2020.