Cada vez mais nos deparamos com discursos pretensamente científicos ou jurídicos, em que o interlocutor faz afirmações apoiado no pressuposto: essa é a minha opinião.
Recentemente, ouvi também o argumento de que estamos disputando narrativas. E, em seguida, a frase sempre presente: não irei convencê-lo, não pretenda convencer-me, fiquemos cada um com nossas verdades. Essa frase revela, de modo emblemático, a crise de civilização que estamos atravessando. Uma espécie de revolta histórica contra o que construímos até aqui.
Pessoas estão morrendo e o isolamento físico é a única medida eficaz, de acordo com a OMS. Nossos números não revelam a agressividade da COVID-19, basta ver o aumento expressivo de óbitos em casa e de mortes por insuficiência respiratória ou pneumonia.
Nosso presidente não é médico, nem cientista.
Cloroquina é um remédio que causa problemas renais e por isso não deve ser administrado sem recomendação médica.
Sem universidade pública não há pesquisa capaz de nos permitir enfrentar a pandemia. Sem saúde pública não há como dar conta de nossos doentes. Mais de um milhão de brasileiros perderam o emprego apenas este ano, apesar da falsa solução da MP 936.
Reduzir salário promove endividamento e, consequentemente, redução de consumo. O dólar atingiu a marca de R$ 5,8. São fatos. Assim como é fato que nosso presidente, ao ser questionado sobre o aumento do número de mortos, respondeu "e daí?
Um governante, cuja preocupação primeira é blindar os próprios filhos de investigações. Corrupção, em seu sentido mais claro. Sua prioridade é editar medida blindando agentes públicos de suas responsabilidades. Sua prioridade é auxiliar bancos. Seu domingo é de diversão, andando de jet ski, enquanto covas coletivas são abertas em ritmo fordista, empresas nacionais são fechadas por falta de amparo estatal, pessoas passam fome.
O nosso mundo, que há muito é mais aparência do que essência, desmorona diante de nossos olhos.
E o eleito responde "e daí?". Diante dessa distopia muitos se afastam, não lêem notícias. Refugiam-se em livros, filmes ou práticas que os impeçam de enlouquecer. Não adianta.
Esse desmoronamento nos atingirá a todos. Um pacto de convívio social foi rompido. Não há retorno possível.
Então, nossa escolha fundamental é enterrar a cabeça na areia ou ser agente da formulação do que virá. Não há como saber o que nos aguarda, pois os efeitos dos estragos hoje praticados por escolha deliberada de pessoas que ocupam diferentes postos de poder serão profundos e permanecerão por muito tempo.
Mas podemos e devemos escolher pelo que queremos lutar.
É urgente reinventar um mundo possível, em que o consumo seja diverso, assim como diferente seja a forma de distribuição da riqueza, de apropriação dos resultados do trabalho humano e de interação com a natureza.
Não seremos mais o que já fomos e o que a partir de agora construiremos coletivamente depende de nós. Viver em sociedade precisa voltar a fazer sentido.
Artigo publicado originalmente no site Juca Kfouri no dia 17 de maio de 2020.
*Juíza do trabalho e presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia)