Só há coragem quando existe escolha. Me sujeito à Constituição, nada mais

 

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Imagem: Salmo Duarte/Diário Catarinense / Arte: Justificando

A pandemia nos obrigou a repensar o mundo. Se de um lado há quem aja apenas por si e para si, de outro há muitos realizando ações que fortalecem o projeto coletivo de vida. No sistema prisional, o estado mantém o mote superencarcerador e acaba cedendo mais àquela primeira classe, a individualista e sectária. Os dias como juiz da execução penal por isso tornam-se ainda mais penosos. Há momentos em que a exaustão é tão grande, que quase nocauteia. Quando isso acontece, não luto contra, apenas deixo que passe, faço algumas atividades prosaicas, cotidianas, simples. 

Hoje deixei meu apartamento e o trabalho remoto para, de máscara, ir ao gabinete. Precisava efetuar alguns atos que apenas fisicamente eram possíveis. No caminho passei num café de amigos que sempre frequentei antes do isolamento social. Sob o pretexto de apanhar um punhado de grãos bem torrados, aproveitei para aliviar as saudades. O lugar, quando em funcionamento pleno, é daqueles que conduzem o cliente por um campo de agradáveis sensações e, especialmente, afetos.

Logo que cheguei, passados os cumprimentos iniciais, em seu novo formato, sem apertos de mão, soube que todos estão com boa saúde, assim como seus familiares. Conversamos brevemente sobre as dificuldades que o comércio tem sofrido. Então fui perguntado sobre meu serviço e me vi imediatamente falando da situação carcerária. Pontuei a respeito da suspensão das visitas nas unidades prisionais em Santa Catarina e na maior parte do país, o que seria uma necessidade de prevenção sanitária frente à Covid-19. Expliquei que como consequência houve também suspensão da entrega das bolsas de alimentos por familiares e que por isso, porque o estado não supria por si só à integral necessidade alimentar dos presos, havia fome na cadeia. Tempos antes esse fato me levara a escrever um texto, num comparativo entre a minha juventude acadêmica e bem alimentada e a juventude prisional e faminta, cuja publicação ensejou a doação junto à direção penitenciária de 3.000 pacotes de macarrão instantâneo, tendo o doador pedido anonimato. Ainda no Café, relatei que, ciente dessa fome que entrou na prisão sem pedir licença, demandei do governo o acréscimo de uma refeição à dieta diária dos presos, o que, a partir dos abnegados gestores acabou acontecendo.

Finalmente, com um pequeno farnel de grãos nas mãos, aplacado da saudade, continuei meu trajeto para o Fórum. Foi quando me dei conta que falara sobre a situação prisional aos meus amigos com uma ponta de orgulho, e perguntei-me o porquê disso. Que orgulho pode existir a qualquer fato relacionado ao tratamento que o estado dá, ou deixa de dar, às centenas de milhares de presos deste país? A superlotação é a tragédia. Por mais que se tenha boa intenção, jamais qualquer iniciativa sobre o sistema carcerário, que não vise ao desencarceramento, surtirá efeito para além de algumas sortudas almas confinadas, numa breve e muito restrita redução de danos. Além disso, particularmente, não costumo propalar feitos próprios, não no sentido de autossatisfação, no mínimo porque isso seria arrogância. Vejo meu proceder como algo devido, obrigatório a um juiz que busca fazer respeitar os Direitos Humanos. Há quem diga que isso é coragem. Não entendo assim, só há coragem quando existe escolha e no meu lugar ela não existe, pois me sujeito à Constituição, nada mais.

O interessante é que esse fato, de que os detentos passaram a receber uma refeição suplementar em razão não só de minhas demandas, mas a partir delas, foi apontado, dias antes, por um acadêmico de direito, numa palestra online que ministrei. No evento, após discorrer sobre superação da violência, direitos fundamentais, pandemia e seu enfrentamento no sistema prisional a partir da recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça e seus protocolos de saúde e diretrizes de prisões domiciliares, no momento das perguntas, que foram na maior parte críticas e reflexivas, um aluno explanou a admiração que tinha por meu trabalho, por este juiz que se preocupava com a fome dos presos, a ponto de exigir uma refeição a mais.

Depois de muito pensar, já na solidão do gabinete (a Justiça continua fechada para atendimento presencial e os servidores estão a exercer suas funções a partir de suas casas), concluí que talvez tenha exposto as dores do sistema prisional no Café, em razão da vontade de compartilhar situações que me são caras com pessoas que estimo. E também porque um estudante me viu como instrumento de busca de um mundo melhor e a partir daí eu também assim me vi. Nesses tempos de pandemia, de tantos desafios, tantas provações, cabe-me estufar o peito, olhar para frente e, junto de muitos outros, ser instrumento para um mundo melhor. Porque, como já disse o poeta alemão Reiner Maria Rilke, “deixe tudo acontecer a você, beleza e terror, apenas continue seguindo, nenhum sentimento é perene” (tradução livre).


Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 27 de maio de 2020.

* Juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD