Nesta terça-feira, 16 de junho, o projeto de lei de conversão da MP 927 está na pauta de votação da Câmara de Deputados enquanto o projeto de lei de conversão da MP 936 está na pauta do Senado. As duas medidas foram editadas em 2020, com o argumento de combater a pandemia, manter renda e preservar empregos.
A MP 936 autoriza redução de salário e jornada, por acordo individual, oferecendo em troca um valor indenizatório de complementação emergencial de renda. O resultado concreto dessa MP é que mais 1,2 milhão de pessoas perderam emprego no Brasil nos últimos três meses. Metade das pessoas que trabalham com carteira assinada sofreram redução de salário, o que concretamente significa aumentar o endividamento das famílias brasileiras, que já estava, em 2019, no patamar de 66%.
A MP 927 estimula o teletrabalho, autoriza o adiantamento de feriados e das férias em período de isolamento físico, em uma realidade de extrema desigualdade social, na qual pelo menos 9 milhões de lares não têm sequer acesso à rede de esgoto ou moradias adequadas. Suspende a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares; posterga a exigibilidade do recolhimento do FGTS e o andamento dos processos administrativos por infrações cometidas no ambiente de trabalho. Permite aos estabelecimentos de saúde, por acordo individual, prorrogar a jornada para além de 12h por dia, sem pagamento, com “compensação” em até 18 meses. A extensão da jornada para profissionais da saúde implica maior exposição à COVID19 e, portanto, mais adoecimento. Provoca mais recurso a benefícios previdenciários, faz com que menos pessoas consigam atuar para cuidar da saúde em um tempo de pandemia, o que resultará mais mortes. Até o dia 14 de junho já contávamos, em números oficiais, 83.118 profissionais da saúde contaminados e 169 mortos.
Nenhuma dessas MP’s prevê proteção maior a quem atua na área da saúde, proíbe despedidas ou faz transferência de renda digna para quem vive do trabalho e para quem emprega. Portanto, as MP´s 927 e 936, com suas redações originais, não enfrentam a crise sanitária. São um mal em si. Retratam uma lógica de exploração da força de trabalho, em parâmetros desconectados daqueles fixados na ordem constitucional de 1988. Ainda assim, são prioridades em nosso parlamento.
Ignora-se o fato de que sem salário não há alimentação adequada, nem consumo. Ou de que não há acordo de vontades numa realidade de crise aguda, em um país que conta com praticamente 13 milhões de pessoas sem emprego. Todas essas discussões foram solapadas pelo discurso hipócrita do mal menor.
Mas isso não esgota o problema. Tanto no texto da MP 927, quanto naquele da MP 936, foram enxertados novos dispositivos. Na MP 936, alguns artigos da MP 905/2019 – aquela revogada pelo governo em seu último dia de vigência, em uma tentativa de fugir à regra do parágrafo décimo do artigo 62 da Constituição – retornam. As matérias estranhas à MP 936, incluídas no texto do PLC 15/2020 são: 1) alteração do critério de correção monetária de débitos trabalhistas, que passariam a ser atualizados apenas a partir da data da condenação; 2) a modificação da forma de cálculo dos juros de mora dos débitos trabalhistas, que passariam a corresponder aos juros de poupança; 3) fragilização ainda maior da garantia representada pelo depósito recursal com estímulo à realização de contrato bancário de seguro-fiança; 4) majoração da jornada dos bancários; 4) retirada do caráter salarial da alimentação concedida direta ou indiretamente pelo empregador; 5) autorização de renúncia fiscal e 6) privatização do INSS.
Essas inserções atendem claramente interesses de um setor específico da economia: o dos donos de instituições financeiras, cujos critérios de correção e juros são bem diversos daqueles pretendidos para a Justiça do Trabalho. Instituições que, enquanto pequenos empreendedores quebravam e as famílias brasileiras perdiam capacidade de consumo, lucraram 18% a mais em 2019 (em relação ao ano anterior), somando R$ 81,5 bilhões de reais e que se ressentem de uma perda, em 2020, de 28% nesses lucros, pois nos primeiros meses deste ano, enquanto trabalhadoras e trabalhadores estavam sem renda alguma ou com seus salários reduzidos, lucraram “apenas” R$ 16,8 bilhões.
A permissão para que entidades fechadas de previdência complementar se encarreguem de requerer e pagar benefícios previdenciários atende ao mesmo setor, pois promove a abertura de um nicho de exploração econômica para as empresas gestoras de previdência privada. Os dez maiores fundos de previdência do país são administrados pelo Banco do Brasil (BrasilPrev), Bradesco e Itaú.
Trata-se de um saque aos direitos sociais, promovido pelos vikings da contemporaneidade, diretamente auxiliados pelos poderes de Estado.
O presidente da Câmara defendeu publicamente nos últimos dias a redução dos salários dos servidores públicos, como forma de manutenção do auxílio emergencial por um período maior de tempo. O argumento não muda, mas a perversidade aumenta: quem vive do trabalho deve ser sacrificado, levado ao endividamento (com as instituições financeiras!), como se esse fosse o único caminho para que alguma renda seja alcançada a quem está na miséria.
Segundo a Agência Brasil, o consumo das famílias é o grande motor da economia brasileira. Não há aí novidade. Não existe economia de produção que subsista sem consumo. Em uma população como a nossa, na qual a maioria das pessoas vive da remuneração que recebe do trabalho que realiza, aí incluídos empregados, autônomos, pequenos “empreendedores” e servidores públicos, é a classe trabalhadora que movimenta a economia através de seu consumo. No Brasil, o consumo das famílias representa mais de dois terços do PIB. E caiu 2% nos três primeiros meses deste ano, como afirma o IBGE, não apenas em razão do coronavírus, mas sim da ausência de uma gestão da crise a partir de efetiva distribuição de riqueza e proteção da saúde e da vida, único modo de conter a ameaça real dessa doença fatal e de manter o consumo diante do isolamento.
O ataque aos direitos fundamentais que vem sendo intentado desde 2019, com a MP 905, e que retorna agora através das MP´s 927 e 936 e dos enxertos nelas promovidos, poderia ser neutralizado se os outros poderes do Estado assumissem o compromisso de fazer valer a ordem constitucional. Participar de atos pelo fechamento do STF ou do parlamento ou minimizar a pandemia é tão grave quanto chancelar ou aprovar leis inconstitucionais que beneficiam apenas os bancos e impedem a circulação da riqueza através do consumo.
A aprovação dos textos de conversão das MP´s 927 e 936 fará com que o parlamento brasileiro entre para a história como agente fundamental de uma política escravista e genocida, que promove empobrecimento e eliminação das pessoas que vivem do trabalho, destrói qualquer projeto de nação e compromete, talvez de modo irreversível, nossa economia interna. Mas ainda há tempo. Rejeitar essas e outras medidas que promovem miséria e concentração de renda é a atuação concreta e necessária de um parlamento comprometido com os objetivos de nossa República, de garantir desenvolvimento, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e, especialmente, promover o bem de todas e todos.
Artigo publicado originalmente no site Estadão no dia 16 de junho de 2020.
* Juíza do Trabalho e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD)