Estado em conflito com a lei: branquitude e responsabilização dos trabalhadores infantis explorados pelo narcotráfico

Passados quase vinte anos da internalização de convenções internacionais, a justiça brasileira segue encarcerando trabalhadores infantis explorados pelo narcotráfico, uma das piores formas de trabalho infantil, segundo a Lista TIP da OIT. Pensar as razões dessa violência institucional, enquanto magistrada branca, é o que me proponho a fazer.

Na análise entre as normas protetivas e o processo socioeducativo previsto no ECA, dúvida não há de que a  imposição de medida socioeducativa resta sem força normativa, afastando, assim, qualquer pretensão de punir adolescente por ato infracional análogo ao de tráfico de drogas quando já se reconheceu que este sujeito é vítima de uma das piores formas de trabalho infantil (Decreto 10.088/2019, o qual manteve ratificações e decretos anteriores que internalizaram no sistema legal brasileiro o contido na Convenção 182 e na Recomendação 190, ambas da OIT).

Como responder a essa omissão estatal que joga no sistema socioeducativo trabalhadores infantis, em sua grande maioria, negros e empobrecidos?

No contexto sócio-histórico brasileiro, impõe-se analisar se e como o racismo, base política e ideológica do projeto colonial a partir do século XVI, persiste construindo subjetividades e decisões judiciais e políticas de agora.

Sabe-se que a partir da abolição da escravidão, os escravizados - cujos antepassados foram trazidos de África para essas terras, de modo forçado – viram-se sem qualquer reparação estatal. Nesse mesmo período, o Estado começa a criminalizar práticas sociais, culturais e religiosas negras, sem efetuar a reforma agrária e deixando de garantir, ainda, as mínimas condições de sobrevivência dessa população, como já muito bem pontuou BORGES[1].

A percepção do negro como estranho, inferior, subalterno, faz parte do contexto brasileiro, sobretudo, porque o racismo refere-se a uma prática estrutural baseada nas relações de poder concebidas nos sistemas de valores desiguais que se construíram no século XVI e que ainda fazem parte do imaginário coletivo, gerando, por isso, atos de racismo, discriminação, xenofobia, machismo, dentre outros, ainda mais quando se concebe a raça negra como algo interseccional. Assim, o racismo deve ser compreendido a partir desse processo histórico que (re)produz discriminação racial sistemática, concebe e aplica mecanismos de controle, classifica corpos negros de acordo com critérios políticos e sociais e os hierarquiza.

Como já sintetizou ALMEIDA[2]: “(…) Por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal sorte que se trata de um conceito relacional e histórico”. Ainda, ALMEIDA explicita que o racismo é sempre estrutural porque as relações existem dentro das estruturas política, jurídica, psíquico/subjetiva, interdependentes e interligadas, de modo que as instituições criam formas de reprodução do racismo.

Se branco/a, na sociedade brasileira, constitui-se dessa forma, o racismo estrutural tem como consequência a naturalização da condição de privilégio enquanto pessoa branca e portanto, branco/a não tem raça, pois é a norma; logo, ser negro/a constitui-se na exceção. O estudo da branquitude contribui para melhor entendimento desse fenômeno, pois, ao retirar o foco do/a negro/a afasta-se a perspectiva que o/a branco/a impõe sobre “o outro” não-branco e passa-se a analisar o/a branco/a enquanto pertencente ao grupo da raça branca; os espaços que ocupa, as relações assimétricas de poder que mantém com o/a negro/a, os privilégios e vantagens, materiais e imateriais que daí se extraem.

Ao silêncio da branquitude a respeito das desigualdades raciais, BENTO[3]  vai nomear de pacto narcísico da branquitude. O silenciamento das questões raciais que sustentam as opressões e desigualdades em todos os âmbitos, impede que se debata sobre a verdadeira causa, qual seja, o racismo estrutural; trata-se de um silêncio eloquente, de um discurso que omite a presença de outro discurso que foi excluído, mas que o constitui[4]. No caso dos trabalhadores infantis, estes são encarcerados e a questão racial não é pronunciada, a diferença racial, em tese, não tem qualquer impacto nas decisões tomadas.

Contudo, nesse contexto em que adolescentes, em sua maioria negros, são responsabilizados em razão do trabalho infantil no narcotráfico por decisões emanadas por magistrados brancos, o marcador social raça ressai como a grande chave de compreensão dessa dicotomia, ainda mais, quando, ao se analisarem diversos contextos e indicadores sociais, percebem-se índices alarmantes de desigualdade racial, como por exemplo, os dados que se referem ao analfabetismo, desemprego, pobreza, ocupação de cargos de chefia, violência obstétrica, homicídios e feminicídios, entre outros. A ausência de qualquer debate ou decisão reconhecendo que esses adolescentes são trabalhadores infantis parece se amoldar aos indicadores sociais representando não apenas um conjunto de jovens racializados, criminalizados, privados de liberdade, mas a face mais cruel desse país tão assimétrico, violento e racista.

Percebendo como o racismo estrutura a sociedade, escutando as experiências e vivências da população negra, tudo a demonstrar a hierarquização entre brancos e negros e, ao mesmo tempo, visibilizando esse quadro sistemático e silencioso de violação dos direitos dos adolescentes negros e periferizados, verifica-se como a raça também articula o sistema de justiça, de tal modo que brancos seguem enviando para os cárceres a população negra.

O Poder Judiciário brasileiro compõe-se de magistrados/as da raça branca; de 1990 a 2011, o percentual de participação, em nível brasileiro, variou entre 82 e 81% dos cargos ocupados por pessoas que se autodeclararam brancas, enquanto os não brancos ocuparam 18 e 19% dos cargos[5];  pretos/pardos correspondem a 54% da população brasileira, segundo o IBGE, tudo a demonstrar que não há proporcionalidade entre a maioria da população, negra e parda e a maioria dos cargos de magistrados ocupados por pessoas brancas.

Como se sabe, todos os indivíduos falam a partir de um determinado lugar, ou seja, cada ser integra um grupo social distinto e, assim, ocupa um espaço específico dentro da estrutural social. Por isso, importa verificar o quanto a magistratura está contaminada pelo racismo institucional, de modo que a estrutura racista (e não atos individuais) é que deve ser objeto de ações institucionais que visem a alcançar igualdade racial. Pensar o contrário seria tentar converter determinada ação individual – uma sentença racista, por exemplo, em um comportamento individual que deve ser superado por ações e declarações morais.

Por outro lado, MOREIRA, em sua obra Pensando como um negro - Ensaio de hermenêutica Juridica (2019), discorre sobre a importância de se visibilizar o marcador da raça no processo interpretativo das normas jurídicas. MOREIRA parte do pressuposto de que o lugar social do intérprete e as relações de poder que o definem determinam em grande medida a forma como vai compreender as funções do Direito, até porque, para juristas brancos/as, apresenta-se razoável a defesa da neutralidade racial, pois, por pertencerem à raça branca estão inseridos/as em um sistema hierárquico em que a lógica binária branco/superior negro/inferior os constitui e, por isso nunca são confrontados/as com questões relativas à classificação racial e aos tratamentos daí decorrentes. Em razão desse contexto de privilégio, juristas brancos, cientes das desigualdades sociais, atribuem à classe social a origem desses problemas.

Visibilizar a ausência de neutralidade racial nas decisões judiciais faz sentido quando se sabe do poder-dever do magistrado de efetuar o controle de convencionalidade e, a partir daí, tomar medidas que visem a proteger o trabalhador infantil, prática inexistente no contexto jurídico atual. Tendo em conta tais considerações é que se compreende que o recorte racial dos julgadores (brancos) e o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2002) têm relação com o fato de as Convenções Internacionais, ratificadas e internalizadas no Brasil, que protegem os direitos dos adolescentes trabalhadores (negros), não serem aplicadas.

Aí reside a contribuição da hermenêutica negra proposta por MOREIRA[6], pois, um trabalhador infantil ter seus direitos violados e, ainda assim, sofrer imposição de medidas socioeducativas, quando resta silenciado o debate sobre a raça dos atores envolvidos serve de exemplo da dimensão estrutural/institucional da questão: selecionam-se e combinam-se as normas que mais fazem sentido de acordo com os valores da branquitude. Assim, a aplicação do ECA, ignorando a existência das Convenções da OIT, ratificadas e com status hierárquico superior, constrói um panorama em que se visibiliza o quanto o órgão judicial está subordinado às normas preexistentes, às regras institucionais, aos valores, ideais, representações intelectuais, paixões, interesses concretos (ou inconscientes) da branquitude.

 

[1] BORGES, Juliana Borges. O que é Encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

[2] ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p.19.

[3] BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas  organizações empresariais e no poder público. Tese (doutorado). 169 p. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2002.

[4] BENTO (2002, p.167).

[5] Fonte: Justa – Democratizando a gestão pública da Justiça,  com cruzamento de dados elaborados pelo CNJ em 2018 e  dados coletados pelo IBGE em 2010, elaborado pela Justa. Disponível em:  undefined e ao final do trabalho (Anexo III). Acesso em 28/07/2020.

[6] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro. Ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.

 


 * A autora é juíza do 3° Juizado da Infância e Juventude de Poa-RS e associada da AJD. 

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 23 de setembro de 2020.