333º subsolo: o fundo do poço*

“...então, diga, velho corvo mal-humorado, que da noite escura e sombria vaga, que nome levas, por estas bandas ou trevas? – disse o corvo: nunca mais.” (Edgar Allan Poe, O corvo, 1845)

 

Caro leitor, é possível imaginar a decepção de um estudante subalterno do Direito que, ao abrir a primeira página do periódico local, depara-se com a seguinte pérola:

 

Acabou, porra! (Jair Bolsonaro, 28.5.2020)

Havia dois motivos, ao menos, para a frase chula de Sua Excelência. O primeiro, de ordem material, dizia respeito à investigação criminali contra o denominado “gabinete do ódio” – suposta organização criminosa veiculadora de “fake news” contra desafetos do presidente e de sua família. O segundo, de ordem formal, haja vista a discutível iniciativa da investigação ter partido do próprio STF o que, em tese, estaria em desconformidade com o princípio acusatório, cuja essência é a nítida separação entre a acusação e o julgador.

 Ao observador atento, porém, aquele palavrão presidencial revelava uma anomalia do sistema judicial que, na verdade, é anterior (muito) ao citado inquérito das “fake news” do STF.

Talvez remonte às eleições presidenciais de 2018, onde as “fake news” foram decisivas ii para o resultado final e claramente favorável ao ora ‘indignado’ presidente; ou ao próprio golpe de 2016, com a omissão do STF, legitimador do processo de impeachment sem a comprovação do cometimento de qualquer crime de responsabilidade pela então presidenta eleita; ou também às inumeráveis e discutíveis decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde atuava o “heroico” ex-juiz Sérgio Moro, entre outras perplexidades, quanto à competência territorial de diversas ações em tramitação; ou o uso excessivo do recurso administrativo da Correição Parcial, em Tribunais Superiores, para modificar decisões judiciais das instâncias ordinárias; ou a ainda mais excessiva instauração de pedidos de providência, pelo CNJ, para apurações das mais variadas manifestações de magistrados, nos mais variados meios, das mais variadas formas, como se estivéssemos, todos e a todo tempo, em verdadeiro universo controlado pelos olhos onipresentes de um ser superior e rancoroso.

Chegaria o dia em que todo o conjunto de decisões discricionárias transformar-se-ia em precedente: ‘óbvio’ que não seria na forma prevista na legislação processual, após a uniformização da jurisprudência, em decorrência de reiteradas decisões no mesmo sentido iii e em consonância com o ordenamento jurídico, cuja Constituição Federal é o ápice, na ‘pureza kelseniana’. Seria na homologação de um acordo teratológico e, quis o destino, numa Vara do Trabalho da capital de um estado com o nome mais terrivelmente evangélico de todo o país: o Espírito Santo.

O acordo, a despeito da evidente ilegalidade (aliás, a própria norma em abstrato iv teve a constitucionalidade questionada na ADI 5.766, em julgamento) da proposta, que deveria ser rechaçada de ofício pelo magistrado, atribuía ao devedor uma obrigação semelhante a uma das penas restritivas de direito v previstas no Código Penal. Mas havia uma perversidade ainda maior, pois a entidade a receber o serviço do devedor sequer era pública.

Muitos já escreveram vivii sobre os absurdos e ilegalidades das consequências dessa “transação” civil. E a constatação mais ‘óbvia’ possível de ordem antropológica: nunca antes neste país, durante o período democrático iniciado em 1988, algum cidadão pagou sua dívida civil mediante qualquer instituto de trabalho forçado. O primeiro tinha de ser um trabalhador, sob a chancela da Justiça do Trabalho.

Por que um trabalhador?

O que se exuma de nossa formação social e jurídica, doravante? Faz quase duas décadas que a reforma do judiciário, por meio da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, entre outras mudanças significativas, criou o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que, entre outras funções, tem a competência (poder-dever) para, segundo o art. 103-B, § 4º, VI:

Elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade de Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário.

Isso provocou uma sensível modificação na gestão administrativa dos Tribunais, todavia, com acentuada preocupação quantitativa, sem o necessário acompanhamento de outros determinantes fundamentais para a justa composição da lide (F. Carnelutti).

A eficiência, a celeridade, a segurança jurídica, a transparência, a independência judicial e tantos outros atributos da jurisdição são quimera se desacompanhadas do necessário e inafastável respeito aos direitos e garantias fundamentais, fundamentos, objetivos e princípios do Estado Democrático do Direito, quando da efetiva concretização da decisão judicial.viii

Há evidente escassez de doutrinadores do direito constitucional e do direito do trabalho a influenciar a reflexão crítica sobre a norma jurídica, em sua aplicação pragmática. Não há direito ideologicamente neutro, porquanto resultado da ordem econômica violenta da sociedade capitalista (E. Pachukanis).

Mas como e quando as motivações ideológicas da sentença e das decisões judiciais ultrapassaram todos os limites constitucionais, da legislação ordinária e do bom senso?

Não tenho dúvidas de apontar que, a partir de manifestações sensacionalistas e pirotécnicas, muitas vezes influenciando direta e dolosamente o processo político-eleitoral, o Poder Judiciário distanciou-se de seu papel de garantidor da ordem jurídica vigente, a qual, notadamente no texto constitucional, possui profunda sensibilidade social e densidade política (Aristóteles). E o pior: a usurpação do papel político, provocada por candidatos a “heróis” mancomunados a parte expressiva dos meios de comunicação, foi permitida e até incentivada pelos “pares”, numa falaciosa e pretensiosa busca pela moralidade e probidade da coisa pública.

No dia 25 de junho de 2020, dia da malfadada homologaçãoix, em que um trabalhador trocou a sua dignidade por um “prato de lentilhas”, chegamos ao último andar do subsolo da (in)Justiça.

A discutível condenação no pagamento dos honorários advocatícios estava suspensa, circunstância que deveria permanecer inalterada duplamente: ou até o STF julgar, em definitivo, a ADI 5766; e/ou, ex-vi lege, se, nos dois anos seguintes à condenação, houvesse sensível mudança econômica do trabalhador, que possibilitasse o pagamento da dívida, sem lhe dificultar a sobrevivência. Não havia motivo algum para a teratológica transação, Senhor!

É ‘óbvio’, assim, que não desceremos mais na escala da perversidade e da indiferença. Podemos e devemos melhorar. No fundo do poço, porém, ninguém enxerga nada, pois não há luz, somente trevas.


https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/acabou-porra-diz-bolsonaro-sobre-ordem-do-stf-para-operacao-policial-contra-aliados.ghtml

ii https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html

iii Arts. 926 a 928 do CPC.

iv Art. 791-A, § 4º, da CLT. v Art. 43, IV – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas.

vi https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita

vii https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/relacoes-trabalhistas-logica-e-barbarie/

ix Reclamação Trabalhista de nº. 0001007-68.2018.5.17.0011, da 11ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, em 25 de junho de 2020


 *Juiz do Trabalho Substituto