Quando falamos em nostalgia há uma tendência em romantizar esse sentimento, considerando-o muitas vezes como algo inofensivo, como de fato, geralmente o é.
A nostalgia, entretanto, como qualquer outro sentimento, pode ensejar combinações perigosas, notadamente quando embala as crenças de um governo autoritário. Nesse caso, como adverte Svetlana Boym, “O perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o lar verdadeiro com o imaginário”.[1]
Para a autora, aliás, essa perigosa nostalgia pode ser encontrada nas “revivificações nacionais e nacionalistas do mundo todo, as quais se empenham na fabricação de mitos antimodernos de história, por meio de um retorno a símbolos e mitos nacionais e, ocasionalmente, com teorias intercambiáveis da conspiração”.[2]
Não é preciso muito esforço para que possamos identificar o momento pelo qual estamos passando em nosso país, onde uma perigosa nostalgia pretende levar-nos ao lar imaginário da ditadura militar de 1964, paraíso no qual não haviam torturas, mortes e desaparecimentos forçados.
Essa crença negacionista do passado, em uma perigosa combinação de autoritarismo e nostalgia, permite lembrar-nos acerca do risco que corre a nossa democracia, porque “O animal está à espreita, pronto a eliminar a camada terrivelmente fina de decoro convencional, antes destinada a ocultar o feio que a subjugar e conter o sinistro e sanguinário”.[3]
Essa nostalgia, no caso brasileiro, nunca foi disfarçada. Pelo contrário, é explícita, tanto que ao soberano de plantão tudo é possível, desde a adoração de um torturador – o único reconhecido como tal por decisão judicial –, até o ato de incentivar que instituições de Estado, no caso as Forças Armadas, comemorem o golpe de 64.
Esse escárnio oficial praticado pelo Estado brasileiro se passa, infelizmente e para perplexidade geral, a despeito do sofrimento imposto às vítimas e aos familiares das vítimas da ditadura militar e da circunstância de nossa Constituição consagrar a dignidade da pessoa humana e o respeito aos Direitos Humanos.
Diante desse caldo de cultura, não deixa de ser temerário que tenhamos entre nós, em pleno vigor, o entulho autoritário representado pela Lei de Segurança Nacional, ou seja, a Lei n. 7.170/83, que herdamos da ditadura militar.
Se o autoritarismo nostálgico está no ar, começo por versos de uma resistência nostálgica que só poderiam vir do talento de Chico Buarque para dizer que “Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento, na arquibancada pra a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa”.
Não custa lembrar que esse entulho autoritário, vigente e ainda aplicado em pleno 2020, se prestava, na época da ditadura militar, em nome de uma Doutrina de Segurança Nacional, à perseguição dos inimigos políticos.
Essa finalidade, mal disfarçada de “proteção à segurança” nacional, não mais se justifica em um Estado Democrático de Direito, tanto que o art. 5º, XLIV, de nossa Constituição Federal estabelece que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Soa evidente, nesse contexto, o descompasso entre a Lei de Segurança Nacional, concebida durante a ditadura militar, e a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático.
A esse respeito, Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, aponta não apenas a inconstitucionalidade de vários dispositivos contidos na LSN, mas, também, que seus valores se afastam “dos princípios e conceitos que inspiraram a reconstrução democrática do país[4]
Essa lei, portanto, há muito já deveria ter sido retirada de nosso ordenamento jurídico. Não cabe discutir, a essa altura, se isso ocorreu por descuido ou ingenuidade, pois a realidade é que não fizemos adequadamente o nosso dever de casa.
Por essa razão, passados 32 anos da promulgação da Constituição de 88, deixamos passar, e foi ficando entre nós, em pleno vigor e com renovada utilização, esse odioso entulho autoritário.
Coincidência ou não, em uma realidade de nostalgia autoritária, a utilização da Lei de Segurança Nacional para a instauração de inquéritos policiais vem experimentando um crescimento.
Possível constatar, a partir de notícia veiculada pelo site de notícias Brasil de Fato, não repercutida pela grande mídia, a informação de que, em 20 anos, a Lei de Segurança Nacional foi utilizada 155 vezes para a instauração de inquéritos.[5]
Desse total, como informa o Brasil de Fato a partir de dados obtidos mediante o uso da Lei de Acesso à informação, 41 inquéritos foram abertos após decorridos 18 meses do governo do Presidente Jair Bolsonaro, o que equivale a 26% dos procedimentos policiais que tem por objeto supostos crimes contra a segurança nacional.[6]
A pergunta que se impõe é se seria possível colocar na conta do atual Presidente da República esse considerável aumento na utilização da LSN. Por contraditório que possa parecer, a resposta que podemos dar é sim e não.
No caso, quem pode provocar a atuação da Polícia Federal, a quem cabe investigar os crimes da LSN, são o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal.
Assim, sem um mergulho nas informações disponibilizadas, não é possível saber se todos os inquéritos tiveram origem em solicitação do Ministro da Justiça e, portanto, podem ser atribuídos ao governo.
Isso não nos impede, entretanto, de considerar que o governo atual incentiva, desde antes de sua posse, um caldo de cultura nostálgico e autoritário em relação à ditadura militar (1964-1985).
Veja-se, a propósito, não apenas a referência do atual Presidente da República, tão logo eleito, ao envio de seus opositores à ponta da praia, sabidamente um local de tortura e morte no período da ditadura militar[7], a insistência em comemorar março de 64 nos quartéis e o culto à figura do único torturador assim reconhecido pelo Judiciário brasileiro.
Volto ao exame do noticiário para apontar dois fatos que refletem a utilização da Lei de Segurança Nacional pelo Ministério da Justiça durante o governo atual.
O primeiro diz respeito à manifestação do atual Ministro da Justiça acerca da solicitação da abertura de inquérito policial com base na LSN, em razão de charge elaborada por Renato Aroeira.[8]
O segundo corresponde à efetiva instauração de inquérito policial com base na LSN contra o jornalista Hélio Schwartsman, em razão de requisição do Ministro da Justiça, diante de crítica que teria sido endereçada à Bolsonaro.[9]
Aliás, a suspensão desse inquérito foi determinada liminarmente pelo Ministro Jorge Mussi, do STJ, por não constatar a presença de “motivação política, tampouco a lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito”.[10]
O que se constata, sem qualquer pretensão de adentrar no exame do conteúdo dos atos que ensejaram as requisições do Ministro da Justiça, é que o governo está lançando mão desse expediente de utilização da Lei de Segurança Nacional[11] em face atos que podem configurar ou não críticas endereçadas ao atual ocupante do Planalto Central.
Nesse passo, a retomada dessa prática sempre que matérias jornalísticas ou charges possam desagradar ao soberano de plantão, representa um perigoso retorno a um passado autoritário que traduz afrontoso desrespeito à Constituição.
Por outro lado, ao buscar a caracterização de um crime contra a segurança nacional em face do exercício da liberdade de expressão, o que por si só já seria descabido, esquecem os asseclas do soberano, bem como o próprio, deliberadamente ou por ignorância, que a Constituição Federal determina a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático, no que não se insere, por evidente, a honra do ocupante do cargo.
Atingir a honra do Presidente da República, portanto, não representa uma conduta que importe em ameaça à ordem constitucional ou ao Estado Democrático e, dessa forma, não justifica a utilização da ultrapassada (para dizer o mínimo), Lei de Segurança Nacional.
Isso não significa que o Presidente da República não mereça a proteção penal, mas sim que esta, ao menos em relação aos delitos contra a honra, deve ser buscada na legislação penal comum.
Com efeito, em uma democracia, na qual o Estado e a pessoa do soberano não se confundem, a proteção penal da honra do Presidente não difere muito daquela alcançada aos demais cidadãos.
A legislação penal comum, aliás, já prevê que é mais grave o ato de atingir a honra do Presidente da República, tanto que o Código Penal brasileiro estabelece a possibilidade de uma pena mais elevada em tal hipótese, ao contemplar uma causa de aumento de 1/3.[12]
Por certo que a opção pela Lei de Segurança Nacional, com toda carga simbólica que ela carrega e com a possibilidade de uma pena ainda mais elevada do que aquela estabelecida no Código Penal, indica a opção por aquela hipótese que detém maior poder de intimidação, dada a possibilidade de alcançar uma pena de quatro anos de reclusão.
Isso, evidentemente, em um contexto de nostalgia autoritária, não surpreende. Afinal, não custa nada, repetindo o passado venerado, experimentar uma tentativa de silenciar jornalistas e humoristas e eventuais dissidências pela intimidação decorrente da instauração de um processo com base na Lei de Segurança Nacional.
Essa tentativa é, contudo, além de antidemocrática, autoritária, situando-se, assim, muito próxima daqueles atos outrora patrocinados pela ditadura militar.
Já passou da hora, portanto, antes que tornemos a ver emergir o monstro da lagoa, enquanto aguardamos pela elaboração de uma legislação afinada com a Constituição, de estancar essa tendência autoritária.
É necessário, pois, buscar uma interpretação desse entulho autoritário chamado Lei de Segurança Nacional que obste a sua utilização para a intimidação daqueles que ousem pensar diferente ou criticar o ocupante do poder, seja ele quem for.
A democracia, embora combalida, agradece.
*Luiz Antônio Alves Capra é juiz de Direito- TJRS, membro da AJD e Professor de Direito Penal.
Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 21 de outubro de 2020.