Na ADI 3423 (e outras julgadas em conjunto)1, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade dos §§2º e 3º do art. 114 da Constituição, na redação da EC 45/2004.
A Corte utilizou como argumentos centrais aptos a sustentar a constitucionalidade da exigência do comum acordo para o dissídio coletivo de natureza econômica: (i) inexistência de violação ao acesso à justiça, pois se trata de criação de novo direito, e não de aplicação de direito pré-existente; (ii) a necessidade de reduzir a intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho.
Nesse contexto, não se pode deixar de apontar a grave incoerência da jurisprudência dos tribunais trabalhistas, inclusive do Tribunal Superior do Trabalho, com o que decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
O STF enaltece a liberdade dos entes coletivos e preconiza a supressão ou redução da intervenção estatal nos conflitos coletivos de trabalho, destacando que tal postura supostamente seria a mais democrática. Nesse diapasão, a única conclusão possível é a de que o Estado não pode igualmente intervir, em princípio, nos dissídios coletivos decorrentes de greve, pelo menos não com a intensidade que vem sendo adotada pelos tribunais trabalhistas.
Tome-se como exemplo a greve dos Correios realizada no ano de 2020. A decisão do Tribunal Superior do Trabalho, julgando o dissídio coletivo de greve2, pode ser assim sintetizada:
- (i) atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos de natureza econômica passou a ter contornos de arbitragem, em decorrência da necessidade do comum acordo entre os envolvidos;
- (ii) nos casos de dissídios coletivos de greve, o Judiciário Trabalhista poderia atuar mesmo sem comum acordo, “a bem da sociedade”. Por não ter sido, nessa hipótese, eleita pelas partes, o poder normativo da Justiça do Trabalho ficaria “restrito aos limites constitucionais e legais, preservando as normas convencionais pré-existentes, o que significa aquelas decorrentes do último instrumento normativo oriundo de negociação coletiva. Nessa hipótese, não é possível impor normas que venham a onerar economicamente a empresa, mas apenas cláusulas sociais que melhorem as condições de trabalho na empresa”;
- (iii) a Lei 13.467/2017, assim como a jurisprudência do STF, impedem a ultratividade de normas coletivas;
- (iv) no caso concreto, houve recusa patronal em negociar e a proposta formulada pela empresa foi “superlativamente redutiva de vantagens”;
- (v) por se tratar de greve de longa duração, admitiu-se a compensação de apenas 50% dos dias parados, com desconto de apenas 50% dos dias restantes;
- (vi) o Tribunal deferiu apenas as cláusulas econômicas aceitas pela empresa, e estabeleceu mais algumas cláusulas sociais que não implicavam ônus financeiro para o empregador. Foi deferido, também, reajuste salarial em percentual ligeiramente inferior ao INPC do período;
- (vii) composto o dissídio coletivo pela sentença normativa, o TST determinou a imediata cessação de greve e o retorno imediato dos trabalhadores ao serviço, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais) aos sindicatos promotores da greve, “uma vez que eventual paralisação posterior ao julgamento do feito já não se dirige mais contra a Empresa, mas contra a própria Justiça do Trabalho”;
- (viii) por fim, o acórdão autorizou a dispensa por justa causa do empregado que prosseguisse em greve no dia seguinte à data do julgamento.
Com o devido respeito à instituição Tribunal Superior do Trabalho, e aos seus integrantes, deve ser demonstrado com clareza que o julgado – que representa a jurisprudência trabalhista prevalecente sobre o tema – institui sistema absolutamente incoerente no trato das relações coletivas de trabalho, violando a diretriz jurisprudencial fixada pelo STF.
Veja-se que julgar as reivindicações econômicas da categoria sem o comum acordo das partes já constitui, por si só, violação ao art. 114, §2º, da CF, cuja higidez constitucional foi referendada pela Suprema Corte na ADI 3423.
Não é possível que o Tribunal Trabalhista decida o conflito econômico, se não houver o comum acordo, que é exigido pela Constituição para o processamento do dissídio econômico, vale dizer, para que se possa ter uma decisão a respeito das reivindicações econômicas da categoria. Entender diferentemente faria com que o requisito constitucional do comum acordo fosse facilmente burlado: bastaria, para tanto, deflagrar greve e, em seguida, ajuizar dissídio coletivo de greve, fazendo com que o Tribunal decidisse as reivindicações econômicas da categoria. No entanto, decidir as reivindicações da categoria constitui objeto específico do dissídio de natureza econômica3.
De duas, uma: ou se parte para um sistema de efetiva liberdade dos entes coletivos (sindicatos e empresas) para negociar coletivamente e assumir as consequências da greve; ou se admite o intervencionismo do Estado nos conflitos coletivos.
O que não se pode é estabelecer um intervencionismo seletivo e pela metade, apenas com o fim de coibir os movimentos grevistas a pretexto de resguardar um suposto “bem maior da sociedade”. Veja-se a manifesta incongruência: de um lado, diz-se que o Estado não pode intervir nos conflitos coletivos de trabalho pela via do dissídio coletivo, porque isso supostamente seria antidemocrático e paternalista; de outro, quando os trabalhadores resolvem assumir o risco do movimento grevista, com todo o desgaste daí decorrente – inclusive o corte de salários, placitado pela jurisprudência –, a Justiça do Trabalho intervém de forma incisiva, para determinar o imediato fim da greve, estabelecer pesada multa e autorizar a medida extrema da dispensa por justa causa pela mera continuidade da greve!
Além da incoerência, a decisão, objetivamente analisada, pratica uma espécie de cinismo judicial, porque diz uma coisa e faz outra. Afirma-se que o Judiciário não pode intervir, não pode asfixiar a autonomia privada coletiva, mas, ao mesmo tempo, profere-se decisão que impede o exercício do direito de greve, inviabilizando-o completamente em função das graves sanções cominadas.
Perceba-se que os trabalhadores ficam absolutamente impossibilitados de agir para a melhoria de sua condição social. Não podem recorrer ao Poder Judiciário, porque para que se exerça o poder normativo há necessidade do comum acordo, ou seja, da concordância do empregador, a qual sabidamente quase nunca ocorre; e também não podem fazer greve, sob pena de serem multados e dispensados por justa causa. Dá-se aos trabalhadores, portanto, apenas o “direito” de se submeterem às condições unilateralmente impostas pela empresa.
Quando os trabalhadores tentam fazer greve, e correm todos os riscos e agruras a ela inerentes, o Judiciário muda de postura e resolve julgar as reinvindicações econômicas, mas só defere os benefícios com os quais o empregador concordou. Perceba-se que o TST não apenas “lavou as mãos”, como Pilatos, mas agiu ativa e efetivamente para impedir que uma das partes (o sindicato profissional) pudesse continuar batalhando pela melhoria das condições sociais dos trabalhadores.
Há forte incongruência, ainda, com a Súmula 316 do STF, segundo a qual “a simples adesão à greve não configura falta grave”. O verbete superou a jurisprudência anterior, segundo a qual a participação em greve abusiva consistiria em falta grave4. O entendimento doutrinário5, bem como a jurisprudência atual dos Tribunais Regionais do Trabalho vinha sendo firme no sentido de que, ainda que a greve fosse declarada abusiva, descaberia cogitar de aplicação de justa causa decorrente da mera participação do trabalhador6-7-8. Por isso mesmo, é surpreendente a decisão adotada na greve dos Correios de 2020.
Se a greve persistir após a declaração de abusividade pelo Judiciário, ainda assim incide o raciocínio da Súmula 316 do STF, não se podendo concluir pela justa causa, por exemplo por suposto abandono de emprego. Isso porque o abandono de emprego pressupõe um elemento subjetivo, consistente na “intenção do empregado de não mais retornar ao trabalho até então exercido”9, o que certamente não está presente por ocasião de movimento coletivo de paralisação da prestação de serviços.
Dessa forma, é imperativo que seja revista a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, a qual atualmente admite que os tribunais trabalhistas apreciem as reivindicações econômicas da categoria no caso de deflagração de greve10. Igualmente, deve-se prestigiar o entendimento de que é não é possível que o tribunal determine aos grevistas o retorno ao serviço e que “autorize” a efetivação de dispensas por justa causa no caso de descumprimento da determinação. Essa é a única maneira de preservar a coerência com a diretriz firmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3423.
1 “Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Art. 1º, da Emenda Constitucional nº 45/2004, na parte em que deu nova redação ao art. 114, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. 3. Necessidade de “mutuo acordo” para ajuizamento do Dissídio Coletivo. 4. Legitimidade do MPT para ajuizar Dissídio Coletivo em caso de greve em atividade essencial. 5. Ofensa aos artigos 5º, XXXV, LV e LXXVIII, e 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Inocorrência. 6. Condição da ação estabelecida pela Constituição. Estímulo às formas alternativas de resolução de conflito. 7. Limitação do poder normativo da justiça do trabalho. Violação aos artigos 7º, XXVI, e 8º, III, e ao princípio da razoabilidade. Inexistência. 8. Recomendação do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho. Indevida intervenção do Estado nas relações coletivas do trabalho. Dissídio Coletivo não impositivo. Reforma do Poder Judiciário (EC 45) que visa dar celeridade processual e privilegiar a autocomposição. 9. Importância dos acordos coletivos como instrumento de negociação dos conflitos. Mútuo consentimento. Precedentes. 10. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI 3392, 3423, 3431, 3432 e 3520, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2020).
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2 PROCESSO Nº TST-DCG-1001203-57.2020.5.00.0000, Seção de Dissídios Coletivos, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, julgado em 21.09.2020.
3 BERNARDES, Felipe. Manual de Processo do Trabalho. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 697.
4 Como exemplo dessa tendência superada: “A greve ilegal é falta grave. A lei nº 9070 não contraria a Constituição” (RE 42916, Relator(a): CÂNDIDO MOTTA, Primeira Turma, julgado em 10/09/1959).
5 Segundo Süssekind, “o fato de a greve ser declarada abusiva não significa, por si só, que os seus participantes tenham cometido ilícito trabalhista, principalmente quando restar comprovado que a participação da empregada se deu pacificamente” (SÜSSEKIND, Arnaldo, op.cit., p. 465).
6 “RESCISÃO CONTRATUAL - JUSTA CAUSA APLICADA - PARTICIPAÇÃO EM GREVE DECLARADA ILEGAL - NULIDADE DA JUSTA CAUSA. A participação do empregado em movimento paredista, ainda que considerado abusivo pela autoridade competente, não pode acarretar a aplicação da sanção máxima da justa causa” (TRT-24 00247031320145240001, Relator: NICANOR DE ARAUJO LIMA, 1ª TURMA, Data de Publicação: 29/06/2015).
7 “RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA - JUSTA CAUSA - GREVE ABUSIVA - A princípio, a mera participação em greve, mesmo considerada ilegal, não autoriza, por si só, a dispensa por justa causa. Há de ser demonstrada a conduta reprovável e os atos lesivos ao patrimônio da empresa ou a terceiros, passíveis de enquadramento nas hipóteses previstas no art. 482, b, e, h (...)”. (Processo: RO - 0001170-09.2012.5.06.0191 Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 21/05/2014, Primeira Turma, Data de publicação: 01/06/2014).
8 “ADESÃO A MOVIMENTO PAREDISTA. APLICAÇÃO DA JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. A adesão à greve, por si só, não constitui falta grave, consoante a Súmula 316 do STF, não podendo, portanto, ser considerada motivo suficiente para a dação de justa causa. E diga-se que se a greve é um direito, não pode caracterizar falta grave a mera participação, daí porque o verbete tem aplicação nos casos de greves declaradas abusivas e ilegais, mesmo porque o art. 9o da Constituição da República assegura não só o direito de greve como também estabelece que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (TRT-3 - RO: 00544201014803003 0000544-74.2010.5.03.0148, Relator: Convocado Maurilio Brasil, Quinta Turma, Data de Publicação: 6/11/2010, 12/11/2010).
9 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa, op.cit., p. 641.
10 "I - RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. NOVA REDAÇÃO DO § 2º DO ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO ATUAL APÓS A PROMULGAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004. COMUM ACORDO. A Seção Especializada em Dissídios Coletivos deste Tribunal Superior do Trabalho firmou jurisprudência no sentido de que a nova redação do § 2º do artigo 114 da Constituição Federal estabeleceu o pressuposto processual intransponível do mútuo consenso das partes para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica. A EC nº 45/2004, incorporando críticas a esse processo especial coletivo, por traduzir excessiva intervenção estatal em matéria própria à criação de normas, o que seria inadequado ao efetivo Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição (de modo a preservar com os sindicatos, pela via da negociação coletiva, a geração de novos institutos e regras trabalhistas, e não com o Judiciário), fixou o pressuposto processual restritivo do § 2º do art. 114, em sua nova redação. Nesse novo quadro jurídico, apenas havendo "mútuo acordo" ou em casos de greve, é que o dissídio de natureza econômica pode ser tramitado na Justiça do Trabalho. No caso concreto, as entidades sindicais da categoria econômica arguiram, em contestação, a referida preliminar, impedindo a incidência do poder normativo sobre as relações de trabalho existentes entre as Partes. Recurso ordinário desprovido" (ROT-1672-42.2018.5.09.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 01/10/2020).
*Felipe Bernarde - Juiz do Trabalho - TRT da 1ª Região, autor e professor
Artigo publicado originalmente no site Instituto Trabalho em Debate - ITB no dia 02 de outubro de 2020.