O estupro (culposo) do Direito

Dizem que os governantes ficam de orelha em pé quando um movimento social eclode em um país vizinho. Morrem de medo que a insatisfação popular ganhe asas e se espalhe mundo afora, vindo a atingir as nossas pacatas e incríveis democracias.

A história nos mostra que talvez eles estejam carregados de razão. Exemplos de insurreições que se espalharam, temos aos montes. Para o bem e para o mal.

Ultimamente, no entanto, temos presenciado um outro fenômeno: o espraiamento do antidireito, do Direito ao contrário. Esse movimento parece ter chegado para ficar.

Comecemos pelo “estupro culposo”. Essa expressão ganhou força e voz crescente nas redes sociais essa semana, mas a verdade é que ela não consta da sentença que absolveu o rapaz de Santa Catarina, acusado de estupro contra vulnerável, crime previsto no Código Penal.

Independentemente disso, a expressão parece ter feito sentido aos ouvidos de milhares de cidadãos, leigos em Direito, que assistiram, espantados, ao desenrolar de uma audiência virtual onde a vítima de estupro foi achincalhada e humilhada pelo advogado do acusado.

A notícia e os vídeos se espalharam com uma rapidez estonteante pelas redes e uma considerável parte dos internautas saiu imediatamente em defesa de mais uma vítima do machismo estrutural brasileiro.

E por que se revoltaram com o tal “estupro culposo”?

É porque tal figura teria um antecedente histórico. Sim, ele bem que poderia ser um parente da “legitima defesa da honra”, nascida no famoso caso de Doca Street e Angela Diniz na Praia dos Ossos, em Búzios. Quem viveu nos anos 80 sabe do que estou falando. O caso rumoroso do “dândi” que matou a namorada porque ela o traiu. Matou em defesa de sua honra aviltada. Os mais jovens podem não acreditar, mas foi essa a tese vencedora. Doca foi absolvido em primeira instância.

Da mesma forma que o tal estupro culposo, a legítima defesa da honra também não existia em nosso ordenamento jurídico. Mas não é que a ideia “pegou”?

Pois é. Estupro culposo seria o “primo” moderno da legítima defesa da honra. O antecedente comum? O ódio à mulher. Por isso fez tanto sentido na cabeça de tantos leitores. A mesmíssima ideia de que elas, as mulheres – ah, essas terríveis mulheres - provocam os piores instintos nos homens.

Lembramos da legítima defesa da honra, mas passamos recentemente também pela figura jurídica até então desconhecida da “propriedade de fato”, figura esta que “aprendi” quando do episódio de um certo tríplex.

Passeamos também pelo território do domínio dos fatos – porque a “literatura” assim parecia permitir. Invertemos a presunção da inocência e adentramos na nova presunção da culpa, em direito penal, para permitir a prisão em segunda instância. E voilà! Por que não chegaríamos ao estupro culposo? Seria o caminho esperado.

Enfim, os tempos recentes estão repletos de exemplos de agressões ao direito – e às mulheres, é claro.

Sabendo-se de antemão que tais movimentos se alastram rapidamente, já posso até esperar a criação das atenuantes para a nova modalidade desse novo crime. Em ordem decrescente de culpabilidade, poderíamos ter: o estupro consentido; o estupro tolerado; o estupro meramente admitido; o estupro de boa-fé e, finalmente, o estupro não merecido porque a mulher é feia (esta última atenuante inspirada em episódio recente envolvendo figuras públicas nacionais).

Ainda que o tal “estupro culposo” não tenha sido reconhecido na sentença, a verdade é que a tendência ao antidireito avança. A passos largos. Assim como as insurreições, essas ideias podem “colar”, se espalhar, tomar conta de fóruns, “iluminar” juristas e influenciar a opinião pública. Inspiradas sobretudo por um falso moralismo. Ou descarada má-fé.

Futuramente, talvez alguém diga: “o Direito foi violado, mas culposamente. Não tínhamos a intenção de violá-lo. Queríamos apenas melhorar o Brasil. Não fizemos por má-fé”.

Estejamos atentos. A figura da “má-fé culposa” está a caminho.


 * Juíza do Trabalho aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.