O mito da ressocialização e a eterna luta por ela*

Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava.

— Doutor, no final do ano eu vou estar no direito, já poderei ganhar a liberdade, mas nunca estudei, não aprendi um trabalho, não sei fazer nada, não sei como vou me sustentar na rua, não sei o que vai ser de mim!

Eu estava na prisão para tratar de assuntos administrativos e não pretendia entrar nos pavilhões, mas no meio do caminho resolvi assim fazer, pois, alguém me sussurrara que seria importante minha presença. Após constatar os problemas que se repetiam e se agravavam, vi um rapaz que queria dizer algo, porém se calava. Pálido e magro, cabelo raspado no que devia ser “máquina número 2”, trajando puídas bermuda e camiseta amarelas, não devia ter mais de 20 anos.

Ele perdeu o receio e respondeu. A resposta está acima, no início deste texto.

Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava.

Entre as funções da pena, no estado democrático de direito, está a oficialmente declarada prevenção. A sanção seria justificada para ressocializar e reeducar o “delinquente”, intimidar os que não teriam como se ressocializar e finalmente neutralizar os “incorrigíveis”. Na realidade concreta, porém, a pena abandonou — ou nunca teve — sua função ressocializadora, mantendo apenas as funções intimidadora e neutralizante, como projeto político de controle dos indesejáveis.

Não se ressocializa quem nunca foi socializado, quem nunca teve oportunidades para crescer e viver como cidadão, sujeito de direitos e deveres, com inclusão social e econômica. O perfil dos presos no país, quase 900.000 homens e mulheres, para a metade das vagas, cujo racismo estrutural faz com que sejam em sua maioria negros e pobres — isso sempre precisa ser dito — é composto na quase integralidade por quem não concluiu o ensino fundamental ou médio. Muitos não desenvolveram habilidades para o trabalho e chegaram à maioridade, desprovidos da presença das instituições.

Essas pessoas, ao longo de suas histórias, acabaram empurradas para a margem, para a miséria, para a violência. Suas existências foram posicionadas num lugar de não ser, de inessencial, de objeto. Quando elas saíram da invisibilidade e se lançaram sobre os incluídos, então se confrontaram com o estado, um estado que se apresentou exclusivamente com seu braço penal, controlador, punitivo, que logo as trancafiou em calabouços e tatuou em suas testas o estigma eterno dos condenados.

Na prisão, entre ordens e disciplinas, as normas que objetivam algum resgate humano e de dignidade são ignoradas. Não há oferta de educação, de cultura, de formação. Quanto ao trabalho, nas poucas ocasiões em que algum é propiciado, trata-se de um ofício que serve, para além de qualificar, especialmente para reproduzir exploração durante e depois do retorno à liberdade.

Pode-se falar, portanto, em ressocialização no sistema penitenciário brasileiro? É certo que não!

Entretanto, já escrevia o poeta: “Os homens, com o auxílio das convenções, têm resolvido tudo com facilidade e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que precisamos ater-nos ao difícil” (Rainer Maria Rilke).

O difícil nisso tudo é que o mundo real não é uma palestra, uma tese acadêmica ou uma estatística. Quando eu vou à prisão, quando encontro os apenados, e deles ouço súplicas pelo cumprimento da lei e de ajuda da Justiça, não posso lhes dizer que o sistema é assim mesmo, uma máquina de moer gente, que minha luta é pela superação da cultura do encarceramento, por alternativas penais, num estado de bem-estar social, onde desde a primeira infância as oportunidades existam e a dignidade da pessoa seja inegociável, irrenunciável e respeitada.

Quem está preso, sem um colchão para dormir ou um sabonete para tomar banho, sem um remédio para aplacar uma dor de dente, precisa de respostas e ações imediatas, não de um juiz que diz não acreditar na prisão ou na ressocialização e que deseja um mundo sem prisões.

Por isso, exigir do estado que cumpra a lei de execução penal, que garanta um mínimo existencial para os encarcerados, reduzindo os danos do aprisionamento, é um dever inafastável ao juiz da execução penal.

— Você é novo e sempre é tempo de aprender — disse ao jovem — A vida é difícil, ainda mais para quem é egresso da prisão, mas é possível sair desse ciclo. Vou pedir que a direção veja se há alguma vaga para você na penitenciária, lá tem salas de aula e tem trabalho. Não há lugar para todos, muitos aqui estão na mesma situação que você, mas isso não é desculpa, está na lei, é seu direito estudar e trabalhar.

A ressocialização é um mito, mas como Sísifo, a quem, não é de hoje, sempre recorro, estou destinado a lutar por ela.


 *João Marcos Buch, juiz de direito e membro da Associação Juízes para Democracia - AJD.

 Artigo publicado originalmente no site Jornal GGN no dia 09 de novembro de 2020.