O STF, a prova ilícita e a violação dos corpos de mulheres*

O Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos mais um processo no qual fica clara a violação praticada pelo Estado no ambiente prisional e, mais uma vez, os olhos estão postos com a expectativa que o STF seja efetivamente o guardião da Constituição Federal.

Trata-se do ARE 959.620, com repercussão geral, que tem como cerne a revista vexatória realizada para ingresso em estabelecimento prisional e suas consequências para o plano probatório.

Para o ministro relator, Edson Fachin, que foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, a revista viola a dignidade humana e as regras de proteção constitucional e, por consequência, as provas dela decorrente são ilícitas. O ministro Alexandre de Morais abriu divergência e aguarda-se a devolução do processo pelo ministro Toffoli, que pediu vista no último dia 29.

A revista íntima, que é vexatória, é um procedimento cruel, desumano e degradante em que milhares de pessoas, majoritariamente mulheres, adolescentes, idosas e inclusive crianças, ficam nuas, obrigadas a expor as partes íntimas do corpo. Conduta massificada e naturalizada. Os parentes são considerados, a priori, autores de crime.

Caracteriza-se por atos de agentes estatais, com ordem de desnudamento total ou parcial, agachamento, saltos, movimentos corpóreos (como tosse, flexões, pressões contra a parede), observação de órgãos genitais nus e até procedimentos de toque corporal e utilização de espelhos.

Todos esses atos ferem a dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, assim estabelecido na nossa CF. Afrontam o direito à intimidade e à vida privada, à integridade física, psíquica e moral, à honra, ao devido processo legal, à inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito, aos princípios constitucionais da não autoincriminação e da intranscendência das penas, caracterizando-se por um tratamento cruel e degradante.

Além da nossa CF, temos a normativa de proteção internacional à qual o Brasil está sujeito, no exercício de sua soberania, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (regras de Mandela), as Regras de Bangkok, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de Belém do Pará.

Mas não é de hoje que a questão da revista vexatória é colocada em foco pelo Poder Judiciário. Muitos fecharam os olhos para essa violência, que ocorre desde sempre. Mas nem todos se mantêm omissos.

A título de exemplo, no âmbito correcional, temos o oficio da juíza corregedora da Vara de Execuções Criminais de Sergipe, de 9/8/1999, que relatou o que chegou ao seu conhecimento e ordenou: "Fica terminantemente proibida a exposição de corpos femininos nus, em macas, exames de toque na genitália feminina ou coisas correlatas".

No âmbito jurisdicional, temos inúmeras decisões que reconhecem a transgressão à normativa constitucional e legal e consideram a prova como ilícita.

Nesse sentido, a título de exemplo, na Apelação nº 1500264-28.2016.8.26.0536/TJSP, de 2018, da qual fui relatora, foi decidido que em razão da revista vexatória houve violação da normativa estabelecida pelo Brasil, e nessa medida a prova é ilícita, no ato originariamente realizado e seus subsequentes e, nesta medida, se impôs a absolvição.

A construção dos direitos humanos é dolorosamente lenta.

Faz longos anos que organizações sociais denunciam e cobram mudanças. Indicam a necessidade de usar a tecnologia para detectar metais e drogas, no controle de entrada das penitenciárias, fazendo o uso de expedientes eletrônicos, com raquetes, scanners e portais, e que a revista pessoal seja feita nos presos, após as visitas, e não nos visitantes.

Vieram à lembrança os diálogos travados pela rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, dos quais participei. Em outubro de 2003, no o II Encontro "A mulher no sistema carcerário", indicou-se o uso de meios mecânicos para realização da revista, em cumprimento da Resolução 1 de 21/3/2000 do CNPCP, ainda que prevendo a revista. Era um primeiro passo de regulamentação, que foi superiormente aprimorada com a resolução nº 5, de 28/08/2014, do mesmo conselho.

Também foram encaminhadas, pela Pastoral Carcerária da CNBB, em data já distante, informações ao Ministério Público-SP sobre revistas vexatórias procedidas em crianças.

Várias organizações — Cejil e a rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas — realizaram audiência temática e apresentaram relatório sobre encarceramento de mulheres, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com denúncia sobre essa prática recorrente em todo o país. Porém, não temos uma norma nacional ainda. Há o projeto de lei aprovado no Senado Federal (PLS 480/2013) que proíbe a revista vexatória, e que agora tramita na Câmara dos Deputados. Na sua justificação há referência ao relatório acima mencionado.

No 156º Período Ordinário de Sessões da CIDH, em 2015, foi realizada a audiência regional "Direitos Humanos e revistas corporais de visitantes de pessoas privadas de liberdade nas Américas", mencionada no acórdão acima. No relatório apresentado constou: "O caráter intrusivo alude ao fato de que a revista dos visitantes impõe-se diretamente sobre seus corpos ao exigir o pleno desnudamento e a inspeção de partes íntimas, sem qualquer respeito à privacidade. Além disso, a revista vexatória é um recurso rotineiro, empregado indistintamente e a despeito da existência de fato anterior que justifique seu cabimento ao caso concreto".

Já não há dúvida, que para além de abusiva, a prática não é capaz de garantir a segurança dos presídios.

No voto do ministro Fachin há menção a dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, de 2012. Foram 3.407.926 visitas e 493 apreensões, que podem ser detectadas por modos não indignos.

Informativo da Rede Justiça Criminal, de julho de 2015, apresenta dados de algumas penitenciárias de São Paulo. De um universo de cerca de 276 mil visitantes, nenhuma arma foi apreendida, foram 45 casos de drogas e 43 de celulares (eventualmente com a mesma pessoa).

Mais lembranças. Como procuradora do Estado de São Paulo, em 1988, vi o processo administrativo de um funcionário de uma penitenciária acusado de fazer ingressar cerca de oito quilos de maconha dentro de um botijão de gás.

É uma hipocrisia afirmar que as drogas ingressam no sistema através das visitas.

É certo que a legislação interna apresenta algum aprimoramento. Temos a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que determinou que os estabelecimentos penitenciários devem ter aparelho detector de metais. Em vários Estados há vedação expressa para a prática da revista vexatória e regulamentação, seja pela atuação do Legislativo, com edições de leis estaduais (Rio e São Paulo) ou por decreto legislativo (Maranhão) ou, ainda, com edição de portarias, na órbita do executivo (Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Sergipe, Tocantins e Rondônia), mas tudo ainda é insuficiente.

É preciso que todos nós façamos um exercício de alteridade, colocando-nos no lugar dos visitantes.

É preciso lembrar que os corpos violados são de mulheres, mães, idosas e crianças.

É necessário imaginar a violência sexual contra essas mulheres quando uma revista vexatória é realizada por agentes de Estado.

É preciso lembrar que o corpo humano é o solo sagrado de cada ser.

Foi um longo período até chegarmos a esse julgamento.

Neste momento, cabe ao Supremo Tribunal Federal atuar de modo a tirar os princípios e fundamentos constitucionais do papel e fazer deles realidade, superando a profunda negação de direitos que se faz presente para as mulheres que permanecem nas filas dos presídios brasileiros. Que o ritual abjeto não seja referendado pelo STF, sob pena de o Judiciário lançar sua assinatura na cultura que diz que tudo é permitido ao corpo de mulheres e que não há limites, nem para o Estado.


 Kenarik Boujikian* é desembargadora aposentada do TJ-SP e especialista em Direitos Humanos.

 Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 11 de novembro de 2020.