“Vidas Negras Importam”: mas a magistratura é formada por 82% de brancos*

A ONU lançou nota sobre a morte de João Alberto no Carrefour em Porto Alegre. Entre várias considerações, segundo a entidade, o fato “evidencia as diversas dimensões do racismo e as desigualdades encontradas na estrutura social brasileira”, o que deve ser urgentemente eliminado.

“Mas a ONU é comunista”, dirão uns, sem nada saber sobre comunismo. “Racismo no Brasil não existe, é infiltração ideológica”, bafejarão outros, carregados de ideologia.

De minha parte, não preciso saber que o comunismo é a pretensão, utópica para alguns, de uma sociedade igualitária, fundada na propriedade comum dos meios de produção, ou que ideologia é a integralidade de formas de consciência social, para ver que o Brasil é um país marcado pelo racismo.

Não preciso recorrer a estudos que demonstram que em nosso país vidas negras valem menos que vidas brancas, que os assassinatos de negros são muito superiores aos de brancos e que a morte violenta ocorre em praticamente sua totalidade contra pobres e periféricos. Não é pelas estatísticas que conheço as pessoas cujas vidas são ceifadas, eu as conheço pelo nome, quando julgo extintas punibilidades de apenados e egressos mortos. São tantos!

Também não é pelas estatísticas que sei que a cor do cárcere, entre os mais de 800.000 presos do sistema, é preta. Não sou daltônico – e também não sou preconceituoso com daltônicos, mas aproveito essa expressão, pois ela foi recente e equivocadamente usada. Quando entro nas prisões de norte a sul, leste a oeste, eu olho para os seres humanos que lá vivem, ou sobrevivem, eu os vejo e sei da sua cor.

A Constituição protege o cidadão em face do estado e em face de outro cidadão, mas o fato é que as violações dos Direitos Humanos continuaram no Brasil pós-Constituição e durante o processo de democratização. Houve um avanço, mas muito precário, que não criou raízes, e por isso na primeira oportunidade o autoritarismo retornou e as poucas conquistas no respeito aos direitos fundamentais cederam aos interesses de uma elite que sempre foi racista.

O racismo nunca foi superado, ele talvez apenas tenha recolhido suas garras por um breve momento e, agora, aproveita para saciar com voracidade seus traumas, fixações e complexos.

Numa época de eleições municipais, poucos foram os candidatos brancos que defenderam políticas reparatórias da dívida histórica para com as populações negras. Talvez porque a classe média e rica não deseje saber da ralé, como muito bem pontua o sociólogo Jessé de Souza, e queira continuar reproduzindo a escravidão, hoje retratada no subemprego e na subalternalização de milhões de brasileiros, que dormem em quartos escuros, abafados e minúsculos, para servir ao patrão e à patroa, em seus luxos hedonistas, replicados de Miami.

Por estas terras, os negros são impedidos de ocupar lugares de poder. Poucos são os que exercem cargos e funções de protagonistas dentro do estado e das políticas públicas.

Já no Poder Judiciário, sabe-se que a magistratura brasileira é formada por 82% de pessoas brancas. Onde estão os juízes negros?

E assim segue o “país do futuro”,

com pessoas negras não ocupando espaços de poder, porque as portas de acesso só se abrem às pessoas brancas; com corpos preponderantemente negros sendo aprisionados nas cadeias; e com vidas matáveis, vidas negras.

Por que isso não choca? Por que a nação não para diante de tanto horror? Estamos sedados?

Palavras não farão superar a dor da injustiça, especialmente quando essa injustiça é tão extrema que interrompe, de forma cruel e violenta, uma vida humana. O motivo pelo qual ora escrevo é porque existem coisas que não podem ser silenciadas. Não quero entorpecer o mundo, mas tentar espremer seu fígado.

Como branco, privilegiado, crescido com oportunidades infinitas, tenho o dever de conhecer nossa história racista, patriarcal e colonialista, saber mais da realidade, enxergar a opressão e o sofrimento, por séculos impostos aos negros.

Digo mais. Para mim não basta não ser racista, é preciso lutar contra o racismo, é preciso ser antirracista.

Os negros não voltarão para a senzala, queiram ou não os racistas.

Vidas negras importam!


*João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD 

 Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 25 de novembro de 2020.